Acórdão nº 233/20.3T9MTS.P1 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 17 de Maio de 2023

Magistrado ResponsávelJOÃO PEDRO PEREIRA CARDOSO
Data da Resolução17 de Maio de 2023
EmissorCourt of Appeal of Porto (Portugal)

Processo: 233/20.3T9MTS.P1 Acordam, em conferência, na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto: 1. RELATÓRIO No processo nº 233/20.3T9MTS do Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos J1, foi em 16.11.2022 proferida decisão instrutória de não pronúncia da arguida AA, pela prática do crime de violência doméstica que lhe era imputado na acusação.

-Não se conformando com essa decisão, dela veio o assistente BB interpor recurso, formulando as seguintes conclusões que se transcrevem: 1.ª Vem o presente recurso interposto da douta decisão instrutória proferida nos autos que não pronunciou a arguida AA, determinando o arquivamento dos autos.

  1. Salvo o devido e muito respeito, o Assistente entende que o Tribunal não decidiu bem, padecendo o despacho em crise, desde logo, da nulidade decorrente da violação do disposto nos arts. 308.º, n.º 2, e 283.º, n.º 3, b), do CPP.

  2. Com efeito, a decisão recorrida limita-se a tecer considerações genéricas acerca da (não) existência de indícios suficientes para considerar provável a condenação da Arguida, sem descrever e especificar quais os factos considerados, ou não considerados, suficientemente indiciados.

  3. Na verdade, o art. 308.º, n.º 2, do CPP estabelece que à decisão instrutória é aplicável o disposto no art. 283.º do mesmo Código, cujo n.º 3, al. b), estatui que a acusação contém, sob pena de nulidade, a indicação, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança.

  4. Conforme assinala a melhor doutrina e a jurisprudência supra citada, o despacho de não pronúncia configura uma decisão de mérito, que tem força vinculativa dentro e fora do processo em que foi proferida, constituindo caso julgado, cujo alcance só é fixado pela fixação dos factos que em concreto não se consideram suficientemente indiciados.

  5. Tal vício deve ser qualificado como nulidade insanável, que aqui expressamente se argui, em decorrência do disposto no art. 283.º, n.º 3, b), do CPP (para que remete o art. 308.º, n.º 2, do mesmo Código), à luz relevância sistémica do princípio do caso julgado material, não podendo ficar dependente de arguição.

  6. In casu, tal vício da decisão dificulta a tarefa recursiva do Assistente e dificultará a apreciação da existência de indícios do crime imputado ao Arguido, devendo o despacho de não pronúncia recorrido ser revogado e substituído por outro que supra a apontada omissão de enumeração dos factos indiciados e não indiciados.

  7. Por outro lado, e sem prescindir, o Assistente não se conforma com a consideração de que não existem indícios suficientes da prática dos factos vertidos na acusação, desde logo porque o Tribunal recorrido fez tábua-rasa da prova coligida em sede de inquérito e de instrução, a que não dedica uma palavra que seja! 9.ª O Tribunal recorrido socorre-se quase exclusivamente da convicção formada por um outro tribunal, no julgamento de outros factos (Proc. 1160/18.0GAMAI), no sentido de se terem como pouco credíveis as declarações prestadas pelo aqui Assistente, ao invés do que se considerou do depoimento da ora Arguida.

  8. A verdade é que a maior ou menor credibilidade atribuída naquele outro processo a uma ou outra parte no confronto de duas versões contraditórias dos factos não pode ter qualquer peso nestes autos, em que se discutem factos absolutamente distintos e em relação aos quais Assistente e Arguido invertem os seus papéis.

  9. Acresce que, para além da tomada de declarações ao Assistente e à Arguida, foram inquiridas variadíssimas testemunhas, 5 das quais se mostram arroladas na acusação e outras 6 foram oferecidas com o Requerimento de Abertura de Instrução, o que é completamente omitido na decisão em crise.

  10. Do que vai dito resulta que a tarefa do Assistente no presente recurso, na procura de contrariar o entendimento do tribunal de instrução, mostra-se muito dificultada, sendo até impossível escalpelizar mais profundamente os fundamentos da decisão recorrida, que não conhece verdadeiramente, pois o Tribunal não tomou qualquer posição sobre os concretos factos vertidos na acusação e no RAI, tal como não analisou as diferentes provas produzidas.

  11. Ora, o princípio da livre apreciação da prova previsto no art. 127.º do CPP impõe que a prova seja apreciada segundo as regras da experiência, pela utilização de raciocínios indutivos e de juízos de probabilidade.

  12. Acresce que o juízo de probabilidade razoável de condenação enunciado no n.º 2 do art. 283.º do CPP, aplicável pronúncia ou não pronúncia, consabidamente não equivale ao juízo de certeza exigido ao juiz de julgamento na condenação, desde logo porque a lei opta aqui pelo conceito de indícios “suficientes” e não “fortes”.

  13. O significado de suficiência dos indícios deve, pois, ser interpretado de harmonia com o conceito de acusação “manifestamente infundada”, previsto no art. 311.º, n.º 2, al. a), do CPP, hipótese legal em que o juiz de julgamento pode rejeitar liminarmente a acusação, perante a evidência de que os factos nela descritos, mesmo que porventura viessem a ser provados, não preenchem qualquer tipo legal de crime – o que não é o caso dos autos.

  14. A instrução configura unicamente um momento de “controlo” da conformidade e legalidade da atividade do Ministério Público que culminou com a decisão de acusar e nada mais, não sendo o momento para efetuar o julgamento dos factos sob discussão.

  15. Resta, assim, concluir pela indiciação dos factos relativos aos elementos objetivos e subjetivos do crime de violência doméstica praticado pela Arguida, sob a forma de atos injuriosos e de humilhação que atentaram contra a dignidade e a saúde física e psíquica do Assistente, e sendo tais indícios suficientes da verificação dos pressupostos de aplicação à Arguida de uma pena, impõe-se a sua pronúncia, nos termos do art. 308.°, n.º 1, do CPP. 18.ª Face ao exposto, a decisão recorrida violou de forma manifesta o disposto no art. 152.º, n.º 1, al. a), e n.ºs 2, 4, 5 e 6 do CP, bem como o previsto nos arts. 127.º, 283.º, n.º 2, 308.º, n.º 1, al. a), e 311.º, n.º 2, do CPP, razão pela qual não deve ser mantida.

Termos em que deve ser dado provimento ao recurso e, em consequência, ser a douta decisão em crise revogada e substituída por outra que especifique os factos considerados suficientemente indiciados e não indiciados, e que pronuncie a Arguida pelos factos e crime imputados na acusação do Ministério Público, remetendo-se o processo para julgamento”.

--Por despacho foi o recurso regularmente admitido, sendo fixado o regime de subida imediata nos autos e efeito não suspensivo.

--Respondeu o Magistrado do Ministério Público junto do tribunal a quo, sustentando não se verificar a nulidade arguida por falta de especificação dos factos indiciados e não indiciados, pugnando no mais pela manutenção da decisão instrutória de não pronúncia.

Também a arguida respondeu, sustentando não se verificar a nulidade arguida por falta de especificação dos factos indiciados e não indiciados, pugnando no mais pela manutenção da decisão instrutória de não pronúncia, tanto mais que o recorrente “não explica as razões de facto e de direito pelas quais discorda da decisão recorrida (cfr. art. 412º, n.º 1, 1ª parte, do CPP). O Recorrente não faz qualquer alusão aos factos constantes na prova produzida que foram incorretamente apreciados, nem aos factos que comprovam a existência de indícios suficientes, limitando-se apenas a indicar que «nos autos foram inquiridas variadíssimas testemunhas», como lhe impõe o regime consagrado no artigo 412º, nº 3 e nº 4, do CPC. Sem discriminar aquelas que são pertinentes para a sua motivação, sem fazer referência ao consignado na ata, e sem indicar “as passagens em que se funda a impugnação”. O Recorrente não cumpriu o dever de correta e concretamente, indicar os factos em que se baseia a pretendida existência de indícios suficientes”.

--Subiram os autos a este Tribunal da Relação, onde o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que se reporta o art. 416.º do Código de Processo Penal, defendeu dever ser julgada procedente a arguição de nulidade da decisão instrutória por falta de descrição dos factos que considerou, ou não, suficientemente indiciados, embora inexistindo indícios bastantes que conduzissem à pronúncia da arguida.

-Na sequência da notificação a que se refere o art. 417º, nº 2, do CPP, procedeu-se a exame preliminar e foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.

*2. FUNDAMENTAÇÃO Conforme vêm considerando a doutrina e a jurisprudência de forma uniforme, à luz do disposto no art. 412º, nº 1, do Código Processo Penal (ao qual respeitam os normativos adiante indicados sem indicação da respetiva fonte legal), o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extraiu da sua motivação, em que resume as razões do pedido, sem prejuízo, naturalmente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.

Das conclusões supra transcritas emergem as seguintes questões a resolver: - Da nulidade da decisão instrutória por falta de narração dos factos indiciados e não indiciados; - Da existência de indícios suficientes da verificação do crime de violência doméstica.

--Importa reproduzir o teor da decisão instrutória de não pronúncia, objeto do presente recurso, proferido pelo Sr. Juiz de Instrução Criminal, na sequência do debate instrutório realizado: Despacho de não pronúncia “A arguida AA veio requerer a abertura da instrução por não se conformar com a acusação pública registada a fls. 145 a 147 dos autos, que lhe imputa a prática de um crime de violência doméstica previsto e punível pelo artigo 152.

2, n.

Q 1, al. a), e n.

Qs 2, 4, 5 e 6, do Código Penal.

Alegou o que melhor consta do seu requerimento de fls. 158 a 176 no sentido da sua inocência.

Realizaram-se as diligências consideradas necessárias bem como o debate instrutório.

Inexistem quaisquer questões prévias ou incidentais que ora cumpra conhecer.

Como é sabido a...

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