Acórdão nº 226/23 de Tribunal Constitucional (Port, 21 de Abril de 2023

Magistrado ResponsávelCons. Joana Fernandes Costa
Data da Resolução21 de Abril de 2023
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 226/2023

Processo n.º 258/2023

3.ª Secção

Relatora: Conselheira Joana Fernandes Costa

Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. No âmbito dos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que é recorrente A. S.A. e recorridos Ministério Público e Anacom – Autoridade Nacional de Comunicações, foi interposto recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (seguidamente, «LTC»), do acórdão proferido por aquele Tribunal, em 8 de fevereiro de 2023, que julgou parcialmente procedente o recurso interposto pela ora recorrente da sentença proferida em 1.ª instância pelo Tribunal da Propriedade Intelectual e da Concorrência, Regulação e Supervisão, em 17 de novembro de 2022, condenando-a numa coima de €57.000,00 (cinquenta e sete mil euros) pela prática de: (i) cinco contraordenações pelo incumprimento dos objetivos de densidade da rede postal e de ofertas mínimas de serviços fixados nos pontos, IV.8.b) (entre o 4.º trimestre de 2014 e o 2.º trimestre de 2015), 111.1., IV.6 (no 2.º trimestre de 2015) e 11.5. e IV.2. (no 3.º trimestre de 2015) do Anexo à Deliberação da ANACOM de 28 de agosto de 2014, em violação, na forma negligente, do disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 17/2012, de 26 de abril; e (ii) nove contraordenações pela não publicitação nos estabelecimentos postais da informação dos indicadores de qualidade de serviço («IQS») realizados em 2013 em nove casos (verificados no 4.º trimestre de 2014), sobre os IQS realizados em 2014 em treze casos (verificados nos 2.º e 3.º trimestres de 2015) e sobre os preços em vigor em sete casos (verificados no 2.º trimestre de 2015), em violação, na forma negligente, do disposto no artigo 11.º, n.º 2, da mesma Lei.

2. Através da Decisão Sumária n.º 177/2023, proferida ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, decidiu-se: (i) não julgar inconstitucional a norma do artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, interpretado no sentido de que a causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional aí prevista é aplicável aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência; e (ii) não conhecer do objeto do recurso no segmento remanescente.

Tal decisão tem a seguinte fundamentação:

«[…]

3. O recurso interposto no âmbito dos presentes autos funda-se na previsão da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC e incide sobre o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 8 de fevereiro de 2023.

A recorrente pretende ver apreciadas as duas seguintes questões de inconstitucionalidade: (i) «inconstitucionalidade da norma que se extrai do disposto no artigo 7.º n.º 3 da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, quando interpretada no sentido de que a suspensão da prescrição aí prevista é aplicável aos processos contraordenacionais em que estejam em causa alegados factos ilícitos imputados ao arguido praticados antes da data da sua entrada em vigor, por violação do princípio da proibição de aplicação retroativa da lei penal in malam partem (artigo 29.º n.ºs 1, 3 e 4), o princípio da igualdade (artigo 13.º n.º 1) e os limites materiais da declaração do estado de emergência (artigo 19.º n.º 6)»; e (ii) «inconstitucionalidade da norma extraída da conjugação dos artigos 11.º n.º 2 e 49.º n.ºs 1 alínea b), 3, 6 alínea e) e 10, todos da Lei Postal e dos artigos 15.º e 40.º do CP, ex vi artigo 32.º do RGCO, quando interpretada no sentido de que constitui violação negligente imputável a pessoa coletiva do dever de prestar de forma adequada e de fornecer regularmente aos utilizadores e aos prestadores de serviços postais informações precisas e atualizadas sobre as características do serviço universal oferecido, designadamente sobre as condições gerais de acesso e utilização do serviço, preços e níveis de qualidade a mera indiciação de que as indicações escritas emitidas pela pessoa coletiva sobre esta matéria não seriam claras e de que a inspeção teria sido deficiente».

4. Em relação à primeira questão de inconstitucionalidade, verifica-se que a norma sindicada é idêntica àquela que foi apreciada no Acórdão n.º 500/2021, desta 3.ª Secção.

No referido aresto, o Tribunal não julgou inconstitucional «o artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, interpretado no sentido de que a causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional aí prevista é aplicável aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência». O juízo negativo de inconstitucionalidade assentou nos seguintes fundamentos:

«(…)

16. A segunda questão de constitucionalidade colocada pelo recorrente incide sobre «o complexo normativo formado pela Lei n.º 1-A/2020, de 19.03, com a redação conferida pelo artigo 2.º e 6.º, n.º 2 da Lei n.º 4-A/2020, de 06.04 e artigos 8.º e 10.º da Lei n.º 16/2020, de 29.05, quando determina a aplicação aos processos pendentes da suspensão do prazo substantivo de prescrição do procedimento contraordenacional neles prevista»; ou, numa formulação alternativa, sobre os «artigos 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, 6.º, n.º 2, da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril, e 8.º e 10.º da Lei n.º 16/2020, de 29 de maio, em concatenação normativa com os artigos 29.º do Código Penal e 5.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, estes por remissão do estatuído nos artigos 32.º e 41.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, quando determinem a suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional relativo a [factos] anteriores à sua vigência e com isso determinarem a aplicação em modo retroativo de lei mais gravosa para o agente do ilícito a quem são imputados atos antecedentes à sua entrada em vigor».

Nas alegações que apresentou, o próprio recorrente reconhece que se trata, na verdade, de duas «formulações essencialmente homogéneas» da mesma norma jurídica, cuja constitucionalidade pretende ver apreciada; isto é, a norma que determina a aplicação da causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional introduzida pela Lei n.º 1-A/2020 (artigo 7.º, n.º 3 e 4), mantida sem alterações pela Lei n.º 4-A/2020, que produziu efeitos a 9 de março de 2020 (artigo 6.º, n.º 2), e revogada pela Lei n.º 16/2020 com efeitos a 3 de junho (artigos 8.º e 10.º), aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência. É esta a proposição prescritiva que o recorrente considera violar a proibição de aplicação retroativa da lei penal de conteúdo desfavorável e o princípio da igualdade, constantes, respetivamente, dos artigos 29.º, n.ºs 1, 3 e 4, e 13.º, n.º 1, da Constituição, bem como o n.º 6 do respetivo artigo 19.º, parâmetro aditado em alegações.

Para melhor compreender a solução impugnada, é útil começar por enquadrá-la no âmbito da sucessão de diplomas que foram aprovados, quer pela Assembleia da República, quer pelo Governo, para responder à emergência de saúde pública de âmbito internacional originada pelo surgimento do coronavírus SARS-CoV-2 e da doença Covid-19, declarada pela Organização Mundial de Saúde no dia 30 de janeiro de 2020 e qualificada como pandemia no dia 11 de março de 2020.

16.1. Antes ainda da declaração do primeiro estado de emergência em Portugal, ocorrida através do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março de 2020, o Governo adotou um primeiro conjunto de «medidas excecionais e temporárias relativas à situação epidemiológica do novo Coronavírus - COVID 19», de carácter transversal, através do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março. Em matéria de atos e diligências processuais e procedimentais, estabeleceu-se aí, em termos que ainda hoje vigoram, a suspensão dos prazos para a prática de atos processuais ou procedimentos que devessem ser praticados junto de tribunais, designadamente judiciais, cujas instalações tivessem sido encerradas ou nas quais o atendimento presencial tivesse sido suspenso, por decisão de autoridade pública com fundamento no risco de contágio do COVID-19, enquanto perdurasse tal encerramento ou suspensão (artigo 15.º, n.º 1).

O diploma entrou em vigor no dia 14 de março (artigo 36.º), produzindo efeitos a 3 de março de 2020 relativamente, entre outras, às normas previstas para atos e diligências processuais e procedimentais (artigo 37.º).

16.2. Ao Decreto-Lei n.º 10-A/2020 seguiu-se a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março — publicada, portanto, no dia seguinte ao decretamento do estado de emergência —, que complementou a disciplina constante daquele primeiro diploma através da aprovação de um novo conjunto de medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e pela doença COVID-1.

Produzindo «efeitos à data da produção de efeitos do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março» (artigo 10.º) — efeitos estes que ratificou (artigo 1.º, alínea a)) — a referida Lei veio estabelecer, no seu artigo 7.º, um conjunto de medidas relativas a prazos e diligências. Assim, os «atos processuais e procedimentais que dev[essem] ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos» a correr termos, designadamente, nos tribunais judiciais passaram a estar sujeitos ao «regime das férias judiciais até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19» (n.º 1), «em data a definir por decreto-lei, no qual se declara[ria] o termo da situação excecional» (n.º 2). Paralelamente, esta passou a constituir «igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos» (n.º 3), prevalecendo tal regra «sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de...

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