Acórdão nº 214/23 de Tribunal Constitucional (Port, 20 de Abril de 2023

Magistrado ResponsávelCons. Gonçalo Almeida Ribeiro
Data da Resolução20 de Abril de 2023
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 214/2023

Processo n.º 519/2022

3.ª Secção

Relator: Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro

Acordam na 3 . ª secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra – Juízo Local Criminal da Figueira da Foz, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., foi interposto o presente recurso ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, referida adiante pela sigla «LTC»), da sentença daquele Tribunal, de 7 de fevereiro de 2022.

2. O aqui recorrido impugnou judicialmente a decisão da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, datada de 5 de agosto de 2020, que decretou a cassação da carta de condução n.º C-684219 de que aquele era titular, em virtude de ter perdido todos os pontos de que dispunha, nos termos do artigo 148.º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada, na redação dada pela Lei n.º 116/2015, de 28 de agosto.

Através da sentença ora recorrida, o Tribunal a quo decidiu recusar a aplicação da norma do artigo 148.º, n.º 2, do Código da Estrada, conjugado com os artigos 281.º, n.º 3 e 282.º, n.º 3, ambos do Código de Processo Penal, quando interpretados no sentido de que «o arquivamento do Inquérito após Suspensão Provisória do Processo em que houve cumprimento de injunção de proibição de conduzir veículos com motor determina a subtração de pontos ao condutor e cassação do título de condução em caso de subtração da totalidade dos pontos», com fundamento em inconstitucionalidade material, por violação dos artigos 32.º, n.º 2 e 202.º, n.os 1 e 2, da Constituição. Em consequência, julgou procedente a impugnação judicial, revogando a decisão administrativa impugnada.

Com interesse para o caso, pode ler-se na fundamentação da sentença:

«No presente caso, como se viu, a retirada de pontos teve subjacente duas situações distintas: uma condenação em processo crime (Abreviado) e um arquivamento após suspensão provisória do processo com cumprimento da injunção de proibição de conduzir veículos com motor (Inquérito).

Se a retirada de pontos subsequente à condenação em processo crime não levanta dúvidas, como se assinalou, o mesmo não se passa quando essa mesma subtração se verifica na sequência do cumprimento de uma injunção de proibição de conduzir veículos com motor, no âmbito da suspensão provisória do processo.

O recorrente alerta para existência de inconstitucionalidade material sob duas perspetivas diferentes: «Deve entender-se que as disposições conjugadas do art.º 281.º do Código de Processo Penal e dos art.ºs 148.º n.º 2, 149.º n.º 1 al. c) e n.º 2 do Código da Estrada e os art.ºs 4.º n.º 1, al. e), n.º 3 al. e) e 6.º n°s 5 e 6 do DL 317/94, devem ser consideradas inconstitucionais, quando aplicadas a arguido em processo penal sujeito a suspensão provisória do processo, na medida em que lhes é aplicada uma sanção não promovida velo Ministério Público, sem que lhes sela conferido o exercício do contraditório e sem intervenção do juiz de instrução criminal, por violação do princípio da proteção da confiança, do acesso ao Direito e aos Tribunais, do acusatório e do contraditório, designadamente do disposto nos art.º 2.º, 2º° n.º 1, 32.º n.ºs 1, 4, 5 e 1.º, 2º2°n°2 e 219°n° 1 da Constituição» e

Por todo o exposto, são inconstitucionais as normas conjugadas do artigo 148.º n.ºs 1 e 2, 149.º n.ºs 1 al. c) e 2 do Código de Estrada, o art.º 281.º n.º 3 do Código de Processo Penal e os art.ºs 4.º n.º 1 al. e) e f) n.º 3 als. e) e aa), 6.º n.ºs 2, 5 e 6 do DL 317/94, na interpretação segundo a qual a mera aplicação da suspensão provisória do processo com a injunção de proibição de conduzir, determina a subtração de pontos da carta de condução, que decorre necessária e automaticamente sem que seja aquilatada a sua necessidade no caso concreto ou da culpa do condutor ou que estejam previstos os seus pressupostos, por violação do disposto no artigo 2.º, 18.º n.º 2, 29.º n.ºs 1 e 4, 3.º n.º 4 e 32.º n.ºs 1, 5 e 1 da Constituição da República Portuguesa.»

Cremos, porém, que a inconstitucionalidade reside antes na violação dos princípios da reserva da função jurisdicional (art.º 202.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa) e presunção de inocência (art.º 32.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa).

Vejamos.

A cassação do título de condução consubstancia uma medida de segurança "sui generis" que se encontra umbilicalmente ligada a condenações anteriores, no âmbito das quais são, obrigatoriamente, impostas sanções acessórias de inibição de conduzir (ou, no âmbito do processo penal, injunções ou penas acessórias), sendo o decretamento da cassação do título de condução a "sanção final", resultado do somatório de todas elas, ou, mais rigorosamente — e em face do sistema atual —, da subtração dos pontos correspondente a cada uma delas.

Tal "sanção" deve, pois, ter por base "condenações anteriores" decorrentes, pois, de sentença ou decisão administrativa transitada em julgado - o que não sucede no caso de arquivamento do Inquérito após suspensão provisória -, sob pena de violação dos aludidos princípios.

Com efeito, nos termos do art.º 32.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação (...). E de acordo com o art.º 202.º n.º 1 os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, acrescentando-se no n.º 2 que na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados.

O primeiro princípio, inscrito também no art.º 6.º § 2.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, é um princípio de inspiração jusnaturalista iluminista que assenta na dignidade do ser humano e na defesa da sua posição individual perante a omnipotência do Estado.

Já do segundo princípio decorre a reserva da função jurisdicional aos tribunais, competindo a estes e só a estes a administração da justiça, ou seja, "dirimir os conflitos de interesses públicos e privados" e, portanto, decidir os litígios deles emergentes.

Como se aludiu no AUJ 4/2017, de 16 de junho, (...) a imposição, com o correlativo acatamento, de injunções e regras de conduta, surge pois como manifestação de anuência, sendo indiferente, na perspetiva do arguido, que a fonte da injunção seja uma escolha do MP ou a lei. Em qualquer dos casos estamos perante condições "sine qua non " da suspensão, que podem ou não ser aceites pelo arguido e, naquele caso, se lhe impõem. Diferentemente se passam as coisas com a condenação surgida na sequência de um julgamento, por ser algo a que o arguido não pode fugir. Tal como, já não tinha dependido de si, a detenção ou a escolha da medida de coação privativa de liberdade antes aplicada. Quanto à confluência do acordo do juiz de instrução, para ser possível a suspensão, por certo que não é tal confluência que faz da suspensão um ato de julgamento, quer em sentido material quer formal. Surge, simplesmente, pelo facto de as injunções e regras de conduta poderem contender com os direitos fundamentais do arguido, e por, na perspetiva do Tribunal Constitucional (TC), dever o juiz fiscalizar a legalidade da opção do MP encerrar o inquérito por essa via (...) (negrito nosso).

E acrescenta-se: (...) A suspensão do processo resulta de critérios que são de "legalidade aberta" ou de "oportunidade regrada", a que o MP lança mão, sendo ele, e não o juiz, que decide da sua utilização. Ora, o facto de a opção pela suspensão do processo ser do MP e a escolha das injunções e regras de conduta serem do mesmo MP, só por si, impede que se esteja qui a falar de sanções penais, designadamente de penas. Não fora assim, cair- se- ia em grosseira inconstitucionalidade, tendo em conta o que dispõe o art.º 202.º, n.º 1 da CR. (...). Mas, salienta-se: (...) O facto de se tratar de medidas processuais que impõem atos ou condutas, ativos ou passivos e não de penas (nem sequer "encapotadas"), não obsta a que condicionem a normal atividade do arguido ou representem para ele um sacrifício. A suspensão é, apesar de tudo, uma reação ao crime cometido, integrada no sistema repressivo penal. Numa linha de "diversão ", têm que se ter no horizonte, sempre, a prevenção geral e especial. Porque a injunção ou regra de conduta não são penas é que o arguido continuará a presumir-se inocente, e nunca se poderá considerar a aceitação da suspensão, como uma confissão sua (...) (negrito nosso).

Pois bem, não sendo a injunção de proibição de conduzir veículos com motor (art. 281.º n.º 3 do Código do Processo Penal) decorrente de uma sentença condenatória ou de uma decisão administrativa transitadas em julgado - nas quais houve verificação dos factos e se concluiu pela prática do crime/infração - não pode a mesma servir de base a uma ulterior cassação do título de condução. Se assim for estar-se-á a atribuir à injunção o mesmo valor de uma pena, sendo certo que não foi aplicada por um juiz, mas pelo Ministério Público, desta forma se invadindo a reserva da função jurisdicional; e, simultaneamente, a considerar praticado o crime/infração, lançando mão de uma espécie de ficção, pois não houve sentença ou decisão transitada em julgado [No caso da decisão administrativa, apesar de não haver intervenção judicial, esta encontra-se prevista, com a possibilidade de recurso] comprovativas dessa prática, assim se colidindo com o princípio da presunção de inocência.

Embora se considere que o sistema de pontos tem um carácter pedagógico, já que estimula o condutor a ter comportamentos estradais positivos, não deixa de ser um sistema alicerçado na prática de infrações - e não um mero registo de sanções —e a verificação destas, salvo...

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