Acórdão nº 221/23 de Tribunal Constitucional (Port, 20 de Abril de 2023

Magistrado ResponsávelCons. Afonso Patrão
Data da Resolução20 de Abril de 2023
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 221/2023

Processo n.º 129/2023

3ª Secção

Relator: Conselheiro Afonso Patrão

Acordam, em conferência, na 3.ª secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Central Administrativo Norte (“TCA Norte” ou “TCAN”), em que é recorrente A. e recorrido a Autoridade Tributária, foi interposto o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na redação que lhe foi conferida, por último, pela Lei Orgânica n.º 1/2022, de 4 de janeiro (Lei do Tribunal Constitucional [LTC]).

2. Através da Decisão Sumária n.º 103/2023, decidiu-se, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, não tomar conhecimento do objeto do recurso, com a seguinte fundamentação:

«4. O recorrente enuncia, como objeto do recurso:

(i) «a interpretação do disposto no artigo 244.º, n.º 2, do Código de Procedimento do Processo Tributário, na redação introduzida pela Lei n.º 13/2016, de 23 de maio, segundo a qual naquele dispositivo legal apenas se prevê a proteção do imóvel que seja habitação própria e permanente do devedor/executado ou do seu agregado familiar, não sendo abrangido, em tal norma, o imóvel que não é propriedade do devedor fiscal, mas é a sua habitação permanente e do seu agregado familiar, viola o princípio da legalidade, consagrado no artigo 18°, n.° 2, da Constituição da República Portuguesa»; e

(ii) «a interpretação do disposto no artigo 244.º, n.º 2, do Código de Procedimento do Processo Tributário, na redação introduzida pela Lei n.° 13/2016, de 23 de maio, segundo a qual em tal dispositivo legal apenas se prevê a proteção do imóvel que seja habitação própria e permanente do devedor/executado ou do seu agregado familiar, não sendo abrangido, em tal norma, o imóvel que não é propriedade do devedor fiscal, mas é a sua habitação permanente e do seu agregado familiar, viola o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da CRP, na sua vertente de generalidade ou universalidade, na medida em que trata de forma desigual o que é igual.» (sublinhado acrescentado).

5. Constitui jurisprudência firme deste Tribunal que os recursos interpostos no âmbito da fiscalização concreta da constitucionalidade têm uma função instrumental, o que significa que apenas poderá conhecer-se do respetivo objeto nos casos em que o julgamento da questão de constitucionalidade seja suscetível de se repercutir, de forma útil e eficaz, na solução jurídica do caso concreto. Sempre que a resolução da questão de constitucionalidade for insuscetível de confrontar o tribunal a quo com a necessidade de reformar o sentido do seu julgamento, o conhecimento do objeto do recurso carecerá de utilidade.

Tal exige que o objeto material do recurso coincida com a ratio decidendi da decisão recorrida, de modo que um eventual provimento daquele obrigue a modificar esta última (cfr. o artigo 80.º, n.º 2, da LTC). A utilidade do recurso de constitucionalidade encontra-se liminarmente afastada quando, designadamente, o critério normativo sindicado não coincide com o que foi aplicado pelo tribunal a quo. Em consonância, o Tribunal Constitucional tem os seus poderes de cognição em fiscalização concreta da constitucionalidade limitados à norma que a decisão recorrida, conforme os casos, tenha aplicado ou a que haja recusado aplicação (cfr. o artigo 79.º-C da LTC).

Este é o entendimento pacificamente acolhido na jurisprudência constitucional, como decorre, entre muitos, do Acórdão n.º 286/91 (acessível, assim comos os demais referidos, a partir da ligação http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/):

«[A]tenta a natureza instrumental do recurso de constitucionalidade, haverá o Tribunal Constitucional de analisar se a decisão que possa vir a ser proferida sobre a questão de (in)constituciona1idade poderá ainda assumir qualquer relevância para o "desfecho do incidente" ou, se, pelo contrário, poderá ser uma “res inutilis”, “coisa vã” (formulações do acórdão n.º 250/86 […].

De facto, como se escreveu no acórdão n.º 86/90 deste Tribunal […]:

"O julgamento da questão de constitucionalidade desempenha sempre, na verdade, uma função instrumental, só se justificando que a ele se proceda se o mesmo tiver utilidade para a decisão da questão de fundo. Ou seja: o sentido do julgamento da questão de constitucionalidade há-de ser suscetível de influir na decisão destoutra questão, pois, de contrário, estar-se-ia a decidir uma pura questão académica."»

Ou segundo o Acórdão n.º 556/98:

«[O] recurso de constitucionalidade está também sujeito às regras gerais do Código de Processo Civil que definem os pressupostos processuais, nomeadamente em matéria de interesse e utilidade dos recursos (cfr. artigo 69º da LTC).

Assim, atenta a natureza instrumental do recurso de constitucionalidade, sempre que a decisão do mesmo seja insuscetível de produzir qualquer efeito útil no processo, faltará o pressuposto da existência de interesse processual, como é entendimento constante e uniforme deste Tribunal, - cfr., nomeadamente, os Acórdãos nº 332/94 […] e nº 343/94 […] e, mais recentemente, os Acórdãos nº 477/97 e 227/98.».

Como explica Miguel Teixeira de Sousa, importa distinguir entre a legitimidade ad causam e a legitimidade ad recursum:

«Para a admissibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional não basta que a parte tenha sido vencida; é ainda necessário que ela tenha interesse em ver revogada a decisão proferida, ou seja, é ainda indispensável que a eventual procedência do recurso seja útil. Como o Tribunal Constitucional já teve a oportunidade de referir, o recurso de constitucionalidade apresenta-se como um recurso instrumental em relação à decisão da causa, pelo que o seu conhecimento e apreciação só se revestem de interesse quando a respetiva apreciação se possa repercutir no julgamento daquela decisão (cfr. TC 768/93; TC 769/93; TC 272/94; TC 162/98; TC 556/98; TC 692/99; TC 687/04; TC 144/07; TC 510/07; TC 74/13; TC 725/13). Expressando esta mesma orientação noutras formulações, o Tribunal Constitucional afirmou que o recurso de constitucionalidade desempenha uma função instrumental, pelo que só devem ser conhecidas questões de constitucionalidade suscitadas durante o processo quando a decisão a proferir possa influir utilmente na decisão da questão de mérito em termos de o tribunal recorrido poder ser confrontado com a obrigatoriedade de reformar o sentido do seu julgamento (TC 60/97), e concluiu que o recurso de constitucionalidade possui uma natureza instrumental, traduzida no facto de ele visar sempre a satisfação de um interesse concreto, pelo que ele não pode traduzir-se na resolução de simples questões académicas (TC 234/91; TC 167/92)» (v. Autor cit., Legitimidade e Interesse no Recurso de Fiscalização Concreta da Constitucionalidade in https://blogippc.blogspot.com/2015/12/paper-138.html; v. uma versão anterior deste artigo em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Armando M. Marques Guedes, Coimbra Editora, 2004, pp. 947 e ss. [pp. 958-959]).

Existe, por conseguinte, uma interdependência entre a questão de inconstitucionalidade cognoscível pelo Tribunal Constitucional e o sentido da decisão recorrida, em termos de apenas se justificar decidir a primeira, caso o sentido da segunda possa vir a ser alterado por aquela decisão, nomeadamente no caso de ser dado provimento ao recurso de constitucionalidade. Ou seja, se a concessão de provimento ao recurso de constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional for, de todo, insuscetível de determinar a reforma da decisão recorrida ou de se projetar de qualquer modo nos autos, não há que conhecer de tal recurso. De contrário, o Tribunal Constitucional praticaria um ato inútil.

6. No caso vertente, sendo a decisão recorrida o acórdão do TCA Norte, de 12 de janeiro de 2023, a utilidade do presente recurso depende deste Tribunal ter aplicado o critério normativo agora sindicado pelo recorrente.

Compulsadas as peças relevantes dos autos, verifica-se que o sentido normativo que o recorrente pretende questionar especificamente, nas duas questões de constitucionalidade por si identificadas no requerimento de interposição de recurso, respeita ao âmbito objetivo de aplicação do artigo 244.º, n.º 2, do Código de Procedimento do Processo Tributário (“CPPT”), na redação dada pela Lei n.º 13/2016, de 23 de maio, nos termos do qual se prevê que: «Não há lugar à realização da venda de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, quando o mesmo esteja efetivamente afeto a esse fim».

O recorrente questiona, concretamente, o sentido normativo do qual resulte que do âmbito de proteção da norma fiquem excluídos os casos em que o «imóvel que não é propriedade do devedor fiscal, mas é a sua habitação permanente e do seu agregado familiar» - seja, no seu entender, por violação do princípio da legalidade, seja por violação do princípio da igualdade.

Ou seja, o sentido questionado pelo recorrente assenta especificamente na qualificação do sujeito (e agregado familiar) que beneficia de proteção da habitação própria e permanente ser o devedor fiscal.

Sucede que este sentido – aquele que é questionado pelo recorrente, conforme requerimento de interposição de recurso – não foi o sentido normativo seguido pela decisão recorrida. Diversamente, verifica-se que o TCA Norte considerou – e sublinhou – que o recorrente não era o devedor fiscal.

Ou seja, o TCA Norte não considerou que a norma não se aplicava aos casos de habitação própria e permanente do devedor fiscal (e seu agregado familiar) não proprietário do imóvel penhorado. O que o TCA Norte considerou, ao invés, foi que a norma se aplicava aos casos de habitação própria e permanente do devedor / executado fiscal ou do seu agregado familiar, mas que o recorrente não preenchia nenhuma das situações...

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