Acórdão nº 213/23 de Tribunal Constitucional (Port, 20 de Abril de 2023

Magistrado ResponsávelCons. Lino Rodrigues Ribeiro
Data da Resolução20 de Abril de 2023
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 213/2023

Processo n.º 1184/21

3.ª Secção

Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro

Acordam na 3.ª secção do Tribunal Constitucional

I – Relatório

1. O Ministério Público interpõe recurso obrigatório, nos termos do disposto nos artigos 280.º, n.ºs 1, alínea a), e 3 da Constituição da República Portuguesa (CRP) e 70.º, n.º 1, alínea a), 72.º, n.ºs 1, alínea a) e 3, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei Orgânica do Tribunal Constitucional), do despacho judicial emitido em 28 de outubro de 2021 no processo n.º 5887/20.8T9LSB-A que corre termos no Juízo de Instrução Criminal de Lisboa (Juiz 3), requerendo a fiscalização concreta da constitucionalidade da norma contida na alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro, que aprovou o Regulamento das Custas Processuais (RCP), segundo a qual os partidos políticos, cujos benefícios não estejam suspensos, estão isentos de custas processuais no contencioso previsto nas leis eleitorais.

2. A referida norma foi desaplicada pelo Juiz de Instrução num despacho em que apreciou um requerimento do partido político Bloco de Esquerda a pedir a constituição de assistente nos autos de inquérito penal, “com isenção de pagamento da taxa de justiça, nos termos e para os efeitos do artigo 10.º, n.º 3, da Lei n.º 19/2003, de 20 de junho”, e que tem o seguinte teor:

«Efetivamente possui razão o requerente.

O Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo DL n.º 34/2008, na sequência de autorização legislativa, ao dispor que os partidos políticos apenas têm isenção de taxa de justiça em contencioso eleitoral (art. 4.º, n.º 1, e), do RCP), regula matéria de reserva absoluta da Assembleia da República, nos termos do disposto no art. 164.º, h), da Constituição da República Portuguesa, para se regular o regime de atuação dos partidos políticos, especificamente em juízo.

Nessa medida, a referida disposição do RCP é organicamente inconstitucional, por não resultar de aprovação pela Assembleia da República, pelo que recuso a sua aplicação.

Assim, por essa via, encontra-se em vigor o disposto no art. 10.º, n.º 3, da Lei n.º 19/2003, estando a requerente isento do pagamento da taxa de justiça que, em concreto, seria devida.

Por ter legitimidade, estar isento do pagamento da devida taxa de justiça, estar devidamente patrocinado, e estar em tempo, admito o Bloco de Esquerda, a intervir nos presentes autos como assistente – cfr. Arts. 69.º, n.º 1, 70.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.

Notifique».

Este despacho foi antecedido de promoção do Ministério Público, no seguinte sentido:

«Fls. 115. Remeta os autos ao Mm.º JIC para apreciação do teor do requerimento inserto a fls. em referência, desde já se consignando que, no nosso modesto entender assiste razão à requerente, na medida em que a norma em causa acha-se ferida de inconstitucionalidade orgânica, mercê da invasão, por parte do Governo, da esfera de competência legislativa reservada da Assembleia da República.

Aliás, conforme se pode ler no aresto citado pela requerente, «A situação é exatamente igual à ocorrida entre o art. 9.º/e) do DL 595/74, de 7-11, e o art. 5.º do DL 118/85, de 19-04; em que o referido art. 9.º/e) do DL 595/74 dizia que os partidos políticos beneficiavam de isenção de “preparos e custas judiciais” e em que, posteriormente, o art. 5.º do DL 118/85 veio dizer que revogava todas as “disposições legais que estabeleçam isenções de custas não previstas no CCJ”.

Situação/revogação esta que levou o TC (em Acórdão de 02-08-1988) a declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de tal art. 5.º do DL 118/85, de 19-04, por entender que “não pode deixar de se considerar inserida na gama dos direitos tutelados pela regra da reserva absoluta a norma que concede a isenção de preparos e custa judiciais aos partidos políticos, desde logo porque a isenção traduz um direito ou regalia derivado da sua própria estrutura estatutária”».

3. Admitido o recurso, o Ministério Público apresentou alegações, acompanhadas das seguintes conclusões:

1. O Ministério Público interpõe recurso, para ele obrigatório, “nos termos do disposto nos artigos 280.º, n.ºs 1, alínea a) e 3 da Constituição da República Portuguesa, 4.º, n.ºs 1, alínea j) e 2 da Lei n.º 68/2019, de 27 de agosto (Estatuto do Ministério Público) e 70.º, n.º 1, alínea a), 72.º, n.ºs 1, alínea a) e 3, primeira parte, 75.º, n.º l, 75.º-A, n.º l e 78.º n.º 4 da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei Orgânica do Tribunal Constitucional), do despacho judicial de fls. 119 [de 28 de outubro de 2021, do Juízo de Instrução Criminal de Lisboa – Juiz 3, proc. n.º 5887/20.8T9LSB-A, em que é assistente o “Bloco de Esquerda”] requerendo a apreciação concreta da inconstitucionalidade da norma contida na alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro, que aprovou o Regulamento das Custas Processuais [doravante, RCP], segundo a qual os partidos políticos, cujos benefícios não estejam suspensos, estão isentos de custas processuais no contencioso previsto nas leis eleitorais. A referida norma foi desaplicada pelo Mm.º Juiz de Instrução, por considerar que a mesma padece de inconstitucionalidade formal orgânica, na medida em que tal norma versa matéria da exclusiva competência legislativa da Assembleia da República, nos termos do artigo 164.º, alínea h), da Constituição da República Portuguesa, constando, porém, de um diploma do Governo, entendendo, assim, o Mm.º Juiz encontrar-se em vigor a norma prevista no artigo 10.º, n.º 3 da Lei n.º 19/2003, de 20 de junho, que regula o financiamento dos Partidos Políticos.”

2. A questão de constitucionalidade suscitada pela norma jurídica, expressa pela alínea e) do artigo 4.º (Isenções) do RCP, consistirá em determinar se a outorga de um “benefício” ou “regalia” (no caso, de tipo financeiro, pois redunda na isenção da obrigação geral dos “judiciáveis” de pagarem custas processuais), aos partidos políticos, está integrada na compreensão e extensão da reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República, definida pelo termo “partidos políticos”, constante da previsão constitucional do artigo 164.º, alínea h), da Constituição e, se assim for, só uma lei da Assembleia da República, no caso uma lei orgânica, estará habilitada a dispor sobre a matéria, nos termos do n.º 2, do artigo 166.º, da lei fundamental.

3. Considerando a letra e unidade da Constituição, nomeadamente o n.º 5 do seu artigo 51.º (Associações e partidos políticos), e que as “regras do financiamento dos partidos políticos”, por atinentes ao regime dos respetivos recursos financeiros (como é o caso das isenções do pagamento de custas processuais), são matéria existencial para o funcionamento do mesmos, as mesmas terão de ser reguladas através de “lei”, que no caso é a lei da Assembleia da República, com a forma de lei orgânica, como decorre da reserva absoluta de competência legislativa estabelecida, precisamente, na referida alínea h) do artigo 164.º, conjugado com o n.º 2, do artigo 166.º, ambos da Constituição.

4. Finalmente, o pensamento das disposições constitucionais e da Constituição, encarada “como um todo”, poderá militar no mesmo sentido, pois a questão dos “recursos financeiros” (nomeadamente a isenções do pagamento de custas processuais) dos partidos políticos deverá ser matéria de discussão pública, participada por todos eles, nomeadamente aqueles representados na Assembleia da República, e produto de uma vontade tão consensual quanto viável nas circunstâncias, não será, pois, nomeadamente, matéria de diploma do Governo.

5. Importa também atender ao precedente constitucional, relevante, estabelecido logo no acórdão n.º 160/88, proc.º n.º 297/87, de 12 de julho, do Tribunal Constitucional (Plenário).

6. De entre todas as incisivas e importantes rationes aduzidas em abono da inclusão deste tipo de “regalias” no âmbito da reserva absoluta, que subscrevemos, a chave de leitura do mesmo poderá ser encontrada na sua derradeira passagem: “(…) É que a existência ou inexistência desta isenção, para além de traduzir uma regalia integrada na esfera dos direitos que compõem aquele complexo normativo, há de derivar de um certo entendimento legislativo sobre o estatuto das associações e dos partidos políticos que, manifestamente, está reservado à Assembleia da República”.

7. Do preceituado no n.º 3 do artigo 10.º (Benefícios), da Lei n.º 19/2003, de 20 de junho, na redação vigente, “Os partidos beneficiam de isenção de taxas de justiça e de custas judiciais”, podemos inferir o legislador perfilha o entendimento de que a outorga das mesmas é um “benefício” ou “regalia” (financeira) dos partidos políticos que, integra, por essência, o regime dos recursos financeiros dos partidos políticos e, portanto, é regulada através de lei orgânica.

8. Finalmente, segundo a mais reputada doutrina constitucional (GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA) “O estatuto das associações e partidos políticos (al. h) abrange não apenas o regime específico quanto à sua constituição, registo, extinção, etc. (cfr. art. 51º) mas também a definição dos seus direitos e regalias (ex. isenções fiscais) (…)”.

9. Por conseguinte, constituindo a matéria de isenção de custas processuais (abrangendo, designadamente, a taxa de justiça), em benefício de um partido político, um “benefício” ou “regalia” dos mesmos, segundo esta tese o poder de a outorgar está integrado, de plano, no âmbito da reserva absoluta de competência da Assembleia da República, relativa aos “partidos políticos”, no sentido e para os efeitos da alínea h), do artigo 164.º, da Constituição.

10. Em suma, na medida em que a reserva absoluta de competência da Assembleia da República, em matéria dos...

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