Acórdão nº 91/23 de Tribunal Constitucional (Port, 16 de Março de 2023

Magistrado ResponsávelCons. Joana Fernandes Costa
Data da Resolução16 de Março de 2023
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 91/2023

Processo n.º 559/2020

3ª Secção

Relatora: Conselheira Joana Fernandes Costa

(Conselheiro Afonso Patrão)

Acordam na 3.ª secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que são recorrentes A., S.A. e B., S.A., e recorridos o Ministério Público e a Autoridade da Concorrência, foi interposto recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, referida adiante pela sigla «LTC»), do acórdão proferido por aquele Tribunal em 4 de março de 2020.

2. No âmbito de processo contraordenacional por práticas restritivas da concorrência, as visadas, ora recorrentes, impugnaram judicialmente a validade das diligências de busca e apreensão realizadas pela Autoridade da Concorrência (AdC) entre 7 de fevereiro de 2017 e 27 de fevereiro de 2017, inter alia quanto à apreensão de mensagens de correio eletrónico. Por despacho datado de 18 de novembro de 2018, o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão (TCRS) julgou a impugnação improcedente.

Inconformadas, as arguidas interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão datado de 8 de maio de 2019, o julgou parcialmente procedente, determinando a reforma parcial da decisão recorrida.

Em consequência, o TCRS proferiu novo despacho, datado de 4 de junho de 2019, que indeferiu a impugnação da validade das referidas das diligências de busca e apreensão.

Novamente inconformadas, recorreram as arguidas para o Tribunal da Relação de Lisboa. Por acórdão datado 4 de março de 2020, foi negado provimento ao recurso, confirmando-se a decisão impugnada.

3. É deste acórdão que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade, em requerimento formulado nos seguintes termos:

«1) Introdução

1. Os presentes autos tiveram origem no recurso interposto pelas RECORRENTES do Despacho do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão («TCRS») que julgou improcedente o recurso de impugnação judicial da decisão interlocutória de 16 e 17 de maio de 2018 (Ofícios com a referência S-AdC/2018/1055 e SAdC/2018/1079), proferida pela Autoridade da Concorrência ("AdC") no processo de contraordenação n.º PRC/2016/04,

2. Desse Despacho interpuseram as ora Recorrentes recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual, no acórdão de 04-03-2020, negou provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida, tendo concluído que, "não se demonstrando que o tribunal a quo na decisão impugnada tenha violado os normativos legais e normativos e princípios constitucionais, invocados pelas recorrentes, ou quaisquer outros ao caso aplicável o presente recurso naufraga in totum".

3. Não podem as Recorrentes concordar com tal entendimento, designadamente e no que aqui importa, no que respeita às inconstitucionalidades invocadas ao longo do processo.

4. Deve, assim, o presente recurso ser admitido, nos termos que infra se expõem, sob pena de o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) vir a condenar novamente o Estado Português pelo "formalisme excessif” do Tribunal Constitucional, por ter adotado uma decisão quanto à admissibilidade deste recurso, por violação do direito a um processo justo e equitativo, na vertente do direito de acesso, previsto na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, nos termos do seu artigo 6º, §1, à semelhança do que sucedeu recentemente em 4 casos julgados unanimemente pelo TEDH (Affaire dos Santos Calado et Autres c. Portugal, de 31.03.2020, Requêtes nos. 55997/14, 68143/16, 78841/16 et 3706/17, Troisième Section, disponível em: https://hudoc.echr.coe.mt/eng#{"itemid":í"001-202123"11 (apenas em língua francesa).

2) Da apreensão do correio eletrónico

5. Alegaram as Recorrentes, em primeiro lugar, a inadmissibilidade de apreensão de correspondência eletrónica em processo contraordenacional, designadamente em processo por prática restritiva da concorrência, como o dos autos.

6. Arguiram, neste segmento, no artigo 82.º das alegações de recurso (e na conclusão XIII), a inconstitucionalidade (por violação do artigo 34.º, designadamente do n.º 4, da Constituição) da interpretação dos artigos 18.º a 21.º do Regime Jurídico da Concorrência («RJC») no sentido de que em processo por prática restritiva da concorrência é permitida a busca e apreensão de mensagens de correio eletrónico abertas.

7. Ora, o Tribunal da Relação discordou de tal entendimento.

8. O Tribunal considera não ser de aplicar o Regime Geral das Contraordenações («RGCO») e, por essa via, o Código de Processo Penal, nem tão pouco a Lei do Cibercrime, porquanto "da simples leitura do disposto no artigo 18.º, n.º 1, c), da Lei da Concorrência salta aos olhos de qualquer mortal a sem razão" das Recorrentes quando asseveram que a apreensão de correspondência não é admitida no âmbito de processos de contraordenação por práticas restritivas de concorrência (p. 18).

9. Assim, inexistindo lacuna, o artigo 18.º, segundo o aresto em crise, deve ser interpretado no sentido de se reportar a "documentação física e não física, existente fora ou dentro do ambiente digital, guardada fora e/ou dentro de suporte digital” (p. 20).

10. Considera, deste modo, o Tribunal que "da previsão da alínea c) do n.º 1 do artigo 18.º da LdC facilmente se enxerga que ela acomoda, per se, sem qualquer vazio previsional, a prática que foi adotada pela AdC dada como provada pelo Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, no ponto «F. Durante a diligência foram realizadas pesquisas nos computadores de alguns funcionários, tendo-se procedido à apreensão de 969 ficheiros de correio eletrónico aberto conforme auto de apreensão de 27 de fevereiro de 2017», acrescentando, ainda, que este normativo "garante, por isso mesmo, o respeito pelo princípio da reserva de lei necessário a este procedimento da AdC" (p. 21).

11. E, nessa sequência, negando razão à alegação das ora Recorrentes, afirma expressamente que "as mensagens visualizadas, e no final apreendidas pela AdC, não gozam da tutela constitucional fornecida pelo artigo 34.º da Constituição da República Portuguesa porquanto: (i) os emails a que se reportam estes autos não respeitam a mensagens eletrónicas em trânsito (a circular na rede), ainda não rececionadas pelos destinatários, não constituindo, por isso «correspondência» na aceção da Constituição da República Portuguesa; (ii) não são privadas, na aceção liberal que nos é trazida pela norma princípio do artigo 34.º da Constituição da República Portuguesa" (p. 23).

12. O Tribunal de recurso aplicou, assim, diretamente a norma cuja inconstitucionalidade oportunamente se invocou e que, através deste recurso, se pretende que seja apreciada.

Sem conceder.

13. No que respeita à apreensão de correspondência eletrónica, as Recorrentes alegaram, ainda, embora não concedendo, que, considerando-se admissível a dita apreensão, esta sempre teria que ser autorizada por Juiz de Instrução Criminal, nos termos dos artigos 189.º e 187.º n.º 1 do CPP, ex vi artigos 13.º do RJC e 41.ºdo RGCO.

14. Arguindo a inconstitucionalidade da norma extraída dos artigos 18.º a 21.º do RJC no sentido de que em processo por prática restritiva da concorrência é permitida a busca e apreensão de mensagens de correio eletrónico abertas mediante autorização do Ministério Público, por violação dos artigos 34.º, designadamente n.º 4, e 32.º, n.º 4 da Constituição (artigo 85.º das alegações e conclusões XV a XVIII), violando, ainda, os artigos 6.º e 8.º da CEDH.

15. Também quanto a este aspeto, o Tribunal não deu razão às Recorrentes, aplicando a norma cuja inconstitucionalidade se invocou e que aqui se pretende ver apreciada.

16. Segundo o acórdão recorrido, "a Constituição da República não impõe um modelo quanto à entidade que assegura os direitos, liberdades e garantias no processo contraordenacional. Na verdade, emerge do disposto no n.º4 do artigo 32º, da Constituição da República Portuguesa que apenas no processo penal a lei fundamental reserva a um juiz a fase de instrução, assim como a possibilidade de intervir fora desta, a montante, na fase de inquérito, quando esteja em causa a prática de atos que contendam diretamente com direitos fundamentais. Sendo certo e sabido que o juiz de instrução, enquanto «juiz das liberdades» é uma autoridade exclusiva do processo penal" (p.24).

17. Em concreto, no que respeita aos artigos 18.º a 20.º do RJC, diz o acórdão que "o órgão legiferante reparte pelo Ministério Público e pelo juiz a competência para autorizar e validar a prática de certos atos da AdC (busca, exame, recolha, apreensão, selagem), tendo deixado a cargo do juiz os atos mais sensíveis como as buscas no domicílio, em escritório de advogado e consultório médico e nos bancos ou outras instituições de crédito" (p. 24).

18. Dúvidas não existindo, portanto, de que a norma cuja inconstitucionalidade foi invocada foi aquela que o Tribunal aplicou para julgar, nesta parte, o recurso improcedente, vêm os Recorrentes recorrer também deste segmento, pretendendo a apreciação da inconstitucionalidade atempadamente invocada.

3) Da realização de buscas e apreensões sem suspeita de factos concretos constitutivos de infração

19. No que respeita aos pressupostos para realização de buscas, afirma expressamente o Tribunal a quo no aresto em crise (p. 30, 1.ª coluna, § 1.º) o seguinte: "Com efeito, cabe aqui ter presente que a alínea c) do n.º 1 do artigo 18.º da LdC não impõe, como pressuposto da busca, a existência de factos concretos ou de indícios concretos, mas antes que «tais diligências se mostrem necessárias à obtenção de prova», condição que se mostra satisfeita pelo despacho do Ministério Público e correspondente mandado".

20. Ora, as Recorrentes arguiram precisamente, no artigo 194.º das alegações, no que aqui importa, que a interpretação conjugada dos artigos 8.º, 17.º, 18.º, 20.º, e 67.º, n.º 1, alínea...

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