Acórdão nº 7035/20.5T9LSB.L1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 02 de Fevereiro de 2023

Magistrado ResponsávelM. CARMO SILVA DIAS
Data da Resolução02 de Fevereiro de 2023
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Proc. n.º 7035/20.5T9LSB.L1.S1 Recurso Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça I Relatório 1.

No processo comum (tribunal coletivo) nº 7035/20.5T9LSB.L1.S1 do Juízo Central Criminal ..., Juiz ..., da comarca de Lisboa Norte, por acórdão de 06.06.2022, após alteração da qualificação jurídica dos factos, observado o disposto no n.º 1 e 3 do artigo 358.º do CPP, foi decidido, além do mais, julgar procedente por provada a acusação e, em consequência, Por convolação fáctico-jurídica de 2 (dois) crimes de pornografia de menores, agravados, previstos e punidos pelos artigos 176.º, n.º1, alínea c), e 177.º, n.º 7, ambos do Código Penal (partilhas iniciais, nas datas de 09.11.2015 e 01.12.2015); 401 (quatrocentos e um) crimes de pornografia de menores, agravados previstos e punidos pelos artigos 176.º, n.º1, alínea d), e 177.º, n.º 7, ambos do Código Penal (número dos ficheiros possuídos); e 7816 (sete mil, oitocentos e dezasseis) crimes de pornografia de menores, agravados, previstos e punidos pelos artigos 176.º, n.º1, alínea d), e 177.º, n.º 7, ambos do Código Penal (número de ficheiros partilhados), condenar o arguido AA pela prática de 1 (um) crime de pornografia de menores, previsto e punido pelo artigos 176.º, n.º1, alíneas c) e d), agravado pelo artigo 177.º, n.º 7, ambos do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos de prisão.

  1. Desse acórdão interpôs recurso o arguido para o TRL mas, por decisão sumária de 28.12.2022, a Relação declarou-se incompetente, em razão da matéria, para dele conhecer, por o mesmo estar confinado, exclusivamente, a matéria de direito, sendo para o efeito competente o STJ, nos termos dos arts. 427.º e 432.º, n.º 1, al. c), do CPP, visto o acórdão de fixação de jurisprudência do STJ n.º 8/2007.

  2. Assim, o arguido, no seu recurso, apresentou as seguintes conclusões: I - O arguido vem recorrer do douto acórdão do tribunal a quo que o condena pela prática de 1 (um) crime de pornografia de menores, previsto e punido pelo artigo 176º, nº 1, alíneas c) e d), agravado pelo artigo 177º, nº 7, ambos do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos de prisão, por não concordar com a decisão.

    II - O arguido suscitou em audiência de julgamento, a questão prévia da nulidade da prova constante dos autos, com fundamento na declaração de inconstitucionalidade da norma constante do artigo 4º da Lei nº 32/2008, de 17 de julho, conjugada com o artigo 6º e o artigo 9º da mesma Lei, sendo que o tribunal a quo decidiu que, “Face ao exposto, a informação foi obtida com recurso a norma não atingida pela declaração de inconstitucionalidade constante do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 268/2022. Improcede, assim, a nulidade da prova, suscitada, em audiência, pelo arguido.” III – O arguido não concorda com tal entendimento pelas razões que elencou e que apresenta resumidamente: 1. A prova recolhida nestes autos tem por base os chamados metadados, aqueles dados elencados no artigo 4º, nº 1 da Lei nº 32/2008, de 17 de julho, conjugado com o artigo 6º e 9º da mesma Lei, conforme se pode confirmar pela argumentação do tribunal a quo ao decidir pela improcedência da arguição da nulidade da prova.

  3. Diz o tribunal a quo que “(…) Conforme resulta claramente de fl. 49 da certidão extraída do processo nº 260/16...., para o acesso à informação disponibilizada pela … foi invocado, além de outras normas, o disposto no artigo 14º da Lei nº 109/2009 (…)” 3. Ora, nada mais errado, porque todo o regime previsto na Lei nº 109/2009, de 15 de setembro (Lei do Cibercrime) encerra um regime geral, coadjuvado (por força do artigo 11º da própria Lei 109/2009) pela Lei nº 32/2008, de 17 de julho, aplicando esta última aos dados de base previstos no nº 1, do artigo 4º.

  4. Foram estes dados que permitiram a identificação e subsequente condenação do arguido, ao contrário do que consta na decisão condenatória.

  5. Porém, o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral: a) Da norma constante do artigo 4º da Lei nº 32/2008, de 17 de julho, (vulgarmente designada por Lei dos Metadados), conjugada com o artigo 6º da mesma, por violação do disposto nos números 1 e 4 do artigo 35º e do nº 1 do artigo 26º, em conjugação com o nº 2 do artigo 18º, todos da Constituição da República Portuguesa; b) Da norma constante do artigo 9º da Lei nº 32/2008, de 17 de julho, relativa à transmissão de dados armazenados às autoridades competentes para investigação, deteção e repressão de crimes graves, na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a parir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações, nem a vida ou integridade física de terceiros, por violação do disposto no nº 1 do artigo 35º e do nº 1 do artigo 20º, em conjugação com o nº 2 do artigo 18 , todos da Constituição da República Portuguesa.

  6. Daqui resulta que, o tribunal a quo interpretou erradamente a Lei nº 32/2008, de 17 de julho e a Lei nº 109/2009, de 15 de setembro, ao entender que, no caso dos presentes autos, a investigação e recolha de prova foram efetuadas com base no artigo 14º da Lei nº 109/2009, de 15 de setembro e não, designadamente nos artigos 4º, 6º e 9º da Lei nº 32/2008, de 17 de julho, conhecida como a Lei dos Metadados.

  7. Sendo que os metadados são “dados de dados” sobre a vida de cada cidadão que utiliza a Internet, mormente a identificação do seu IP (Internet Protocol, na sigla inglesa) e que permite por essa via, a identificação da pessoa, nome, morada, morada de faturação, entre outras informações consideradas como dados de base, tráfego e localização, os quais permitem à investigação criminal identificar o potencial “suspeito”.

  8. Ora, in casu foi o que aconteceu, de acordo com a previsão das normas constantes no artigo 4º, conjugado com o artigo 6º e 9º da Lei nº 32/2008, de 17 de julho.

  9. Normas essas, que o Tribunal Constitucional declarou inconstitucionais no seu acórdão nº 268/2022, com força obrigatória geral, com eficácia erga omnes e, portanto, obrigando todas as entidades públicas e privadas, incluindo os tribunais a cumprir o que foi decidido.

  10. Acresce que, neste acórdão nº 268/2022 o Tribunal Constitucional tentou conciliar o primado da legislação da União Europeia, conforme previsto no nº 4 do artigo 8º da Constituição da República Portuguesa.

  11. O princípio do primado determina que em caso de conflito, os Estados devem aplicar a norma de direito da União Europeia e desaplicar a norma de direito nacional.

  12. Foi este princípio reconhecido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), advogando pela necessidade de homogeneidade na aplicação do direito europeu e no facto de os Estados-Membros não poderem invocar o direito nacional para fundamentarem o incumprimento das suas obrigações europeias.

  13. Nessa senda, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) mantém a orientação segundo a qual, o direito da União Europeia prevalece sobre o direito nacional.

  14. E, como já se disse, a Constituição da República Portuguesa prevê que o direito da União Europeia se aplica em Portugal, incluindo o primado, nos termos declarados pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), conforme resulta do disposto no nº 4, do artigo 8º da Constituição da República Portuguesa.

  15. Pelo que, a prova recolhida com base nas disposições do artigo 4º, conjugado com o artigo 6º e 9º da Lei nº 32/2008, de 17 de julho, as quais foram declaradas inconstitucionais pelo acórdão nº 268/2022 do Tribunal Constitucional por terem na sua génese a Diretiva 2006/24/CE, julgada inválida pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) no seu acórdão de 08 de abril de 2014 (Digital Rights Ireland Ldt versus Minister of Communications, Marine and Natural Resourses) ir contra os direitos ao respeito pela vida privada e familiar e à proteção de dados pessoais, consagrados nos artigos 7º e 8º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, deve ser nula e de nenhum efeito.

  16. Mais, é o próprio Tribunal Constitucional que alega o seguinte: “(…) os efeitos da declaração de inconstitucionalidade são determinados pela Constituição e não pelo Tribunal Constitucional e reportam-se à data de entrada em vigor das normas”.

  17. E, a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) na Deliberação nº 1008/2017, de 18 de julho, tem o mesmo entendimento.

    IV - Assim e, salvo melhor opinião, num Estado de Direito Democrático, como é o nosso, todos devemos estar sujeitos ao escrutínio, incluindo as decisões dos tribunais, onde se inclui o Tribunal Constitucional, que não podem violar as normas do Direito da União Europeia.

  18. Pelo que se entende, salvo o devido respeito, que, o douto tribunal a quo violou as normas constantes do nº 4 do artigo 8º, dos números 1 e 4 do artigo 35º, nº 1 do artigo 26º conjugado com o nº 2 do artigo 18º e o nº 1 do artigo 20º, e ainda os números 1 e 3 do artigo 282º, todos da Constituição da República Portuguesa, nos termos do vertido na decisão proferida pelo Tribunal Constitucional no seu acórdão nº 268/2022.

  19. E, em consequência violou o douto tribunal a quo as normas constantes dos artigos 7º, 8º e nº 1 do artigo 52º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

  20. Além destas normas, foram ainda violadas, no entendimento do arguido, o nº 8 do artigo 32º, respeitante às garantias do processo penal e ainda o nº 1 do artigo 29º, respeitante à aplicação da Lei criminal, ambos da Constituição da República Portuguesa.

  21. Atentas as circunstâncias do processo, a pena aplicada ao arguido foi injusta por violar as normas atrás indicadas e consequentemente o douto acórdão proferido pelo tribunal a quo, deve ser revogado por outro que absolva o arguido do crime de que veio acusado, por falta de prova.

    Termina pedindo que o presente recurso seja julgado procedente e, em consequência, seja revogado o acórdão impugnado, o qual deve ser substituído por decisão que absolva o arguido, com as legais...

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