Acórdão nº 104/18.3T9VVC.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 08 de Março de 2022

Magistrado ResponsávelMOREIRA DAS NEVES
Data da Resolução08 de Março de 2022
EmissorTribunal da Relação de Évora

Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I – Relatório

  1. No 2.º Juízo (1) Central Cível e Criminal de Évora, do Tribunal Judicial da comarca de Évora, procedeu-se a julgamento em processo comum perante tribunal coletivo de MA, nascida a …, casada, doméstica, residente em …, com os demais sinais dos autos, a quem foi imputada a prática, como autora, de dois crimes de abuso de confiança qualificada, previstos no artigo 205.º, § 1.º e 4.º al. b) do Código Penal (CP), por referência ao artigo 202.º, al. b), do mesmo código

    CP constituiu-se assistente e deduziu, na qualidade de cabeça de casal da herança deixada por JP e JC, e também por si, pedidos de indemnização civil contra a arguida, reclamando indemnização, nomeadamente a condenação da demandada/arguida «(…) a pagar à demandante a quantia global de 105 022,68€ (…), sendo 103 522,68€ a título de indemnização pelos danos patrimoniais causado (…) [à herança referida], acrescida do valor que vier a ser apurado a título de rendimentos proveniente da aplicação daquele montante pela arguida em depósitos a prazo e 1 500€ (…) a título de indemnização por danos não patrimoniais causados à Assistente (…)», acrescidos de juros moratórios

    A arguida/demandada contestou negando a prática dos factos e arrolou prova

    A final o tribunal coletivo proferiu acórdão, no qual absolveu a arguida da prática dos crimes que lhe haviam sido imputados e, bem assim, dos pedidos cíveis contra si deduzidos

  2. Inconformada com a decisão recorreu a assistente, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição): « I – O presente recurso visa sindicar o douto Acórdão, proferido a 15-07-2021, nos autos de Processo Comum com a intervenção de Tribunal Colectivo, que absolveu a Arguida da prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, de dois crimes de abuso de confiança qualificada, previstos e punidos pelos artigos 205.º, n.º 1 e 4 al. b), por referência ao artigo 202.º, al. b), todos do Código Penal, II – Porquanto, entende a Assistente, ora Recorrente, que, por um lado, os factos não provados constantes das alíneas a), c), e), f), g) e h) devem ser julgados provados com base na prova produzida nos presentes autos; por outro lado, existe errada valoração da prova, por violação do princípio da livre apreciação da prova (artigo 127.º do Código de Processo Penal) e, consequente; errada aplicação do Direito por parte do Acórdão recorrido

    III – A respeito da matéria de facto constante da alínea a) dos factos não provados, prestaram declarações a Arguida e a Assistente, únicas intervenientes numa conversa tida, entre ambas, à porta do Serviço de Finanças, dias após o óbito de JC

    IV - Se é certo que em sede de julgamento só respondeu a esta matéria a Assistente CP, a arguida já havia prestado declarações perante o Juiz de Instrução Criminal, em 16-10-2019, tendo nessa ocasião afirmado que não havia informando a Assistente sobre as contas dos pais, tendo-lhe apenas dito que se queria saber deveria ter perguntado à mãe (ficheiro 20191016101738_1470295_2870781, minuto 02:20, que aqui se dá por reproduzido)

    V – Nesta sequência, o JIC refere no Douto despacho de pronúncia que “Pese embora a inicial negação do descrito em 4) e 5), posteriormente o tribunal concluiu pela não informação da irmã, a aqui Assistente, da existência das contas, nos termos alegados no requerimento de abertura de instrução, quando a própria referiu que, no dia da deslocação às finanças, retorquiu à irmã por que razão não havia perguntado pelas contas à mãe, JC.” VI - Foi exactamente neste sentido que a Assistente prestou declarações sobre este facto em audiência de julgamento (ficheiro 20201028112023_1485896_2870780, minuto 20:40 que aqui se dá por reproduzido)

    VII - A prova de que a Arguida não informou a irmã dos saldos bancários existentes, é que para obter essa informação a Assistente teve que se deslocar a várias instituições bancárias, conforme se encontra documentado pelos pedidos de informação apresentados pela Assistente juntos aos autos por requerimento datado de 13-11-2020, admitido pelo Tribunal na sessão de julgamento de 18-11-2020, contudo completamente ignorados aquando da decisão e documentos a fls. 31 a 39

    VIII – Assim, da análise concatenada de toda a prova produzida sobre esta matéria resulta que deveria ter sido considerado provado que: «Na sequência do pedido de informação de 28, a Arguida não prestou qualquer informação à Assistente sobre as contas bancárias dos pais, tendo apenas respondido “não te foi dito… tivessem-te dito”.» IX – Quanto à matéria constante da alínea c) dos factos não provados, a prova da mesma resulta evidente da documentação bancária analisada em sede de discussão e julgamento, designadamente, dos documentos bancários a fls. 21, 159 e 160

    X - Verifica-se que a fls. 159 se encontra um extracto bancário da conta n.º … (…), que demonstra que no dia 03-04-2008, foi feito um movimento do depósito a prazo (MDP) que creditou aquela conta bancária no valor de € 79.000,00 e que no mesmo dia foi feita uma transferência que debitou aquela conta no valor de € 79.129,08, movimento este cuja ordem se encontra a fls. 160

    XI - Mas, mais importante, o documento a fls. 21 o quadro apresentado nesse email é legível que JP era titular de uma conta DOS (deposito à ordem) n.º …, com início em 07-12-2004 e fim em 10-01-2009. Encontrando-se associada a essa conta três depósitos a prazo (DPS): os dois primeiros com início e fim anterior ao óbito do titular e o terceiro deposito a prazo com n.º…, com início em 25-01-2008 e fim em 12-04-2008 (posterior ao óbito do titular), ou seja, era neste depósito a prazo associado à conta n.º … (…) que se encontrava depositado o saldo de € 79.000,00, que creditou a conta à ordem em 03-04-2008, permitido a ordem de transferência € 79.129,08, do mesmo dia para a nova conta n.º …, titulada apenas por JF e pela Arguida

    XII - A própria Arguida admitiu em julgamento que aquela quantia existia e que pertencia aos pais e não a ela própria (Ficheiro 20201028100925_1485896_2870780, minuto 0:41 e minuto 05:10, que aqui se dão por integralmente reproduzidos)

    XIII - Ou seja, é a própria Arguida que confirma que existiam as contas (à ordem e a prazo) constantes do despacho de pronuncia, com os saldos aí especificados, e que todo aquele dinheiro pertencia e pertence à herança dos pais

    XIV - Logo, nenhuma razão existe para o Tribunal recorrido ter julgado não provada a matéria constante da alínea c), a qual deverá ser julgada como PROVADA

    XV – Já no que respeita às alíneas e), f) g) e h) dos factos não provados, trata-se dos factos que constituem o elemento subjectivo do tipo de crime em apreço, cuja prova, para além do recurso às regras da experiência comum, resulta à saciedade das próprias declarações da Arguida, prestadas em sede de audiência, analisadas segundo o critério do homem médico, da lógica e da racionalidade (Ficheiro 20201028100925_1485896_2870780, minutos 0:41; 03:35; 05:30; 17:00; 22:40; 45:05 e 49:15, que aqui se dão por integralmente reproduzidos)

    XVI - Pese embora a Arguida afirme reiteradamente que o dinheiro está todo lá, que não mexeu no dinheiro, que o dinheiro é para partilhar, que sabia que o dinheiro não lhe pertencia, a verdade é que ficou provado que o dinheiro da herança indivisa de JP foi, quer em vida de JC mas principalmente após o óbito desta em 2017, utilizado pela Arguida e/ou pelos seus filhos, que esta constitui co-titulares da conta, conforme extracto a fls. 172 e 173, do qual se pode verificar que até à morte de JC (14-02-2017) todos os movimentos foram ordenados pela Arguida (conforme documentos bancários juntos aos autos em 29-01-2021 pelo Banco …)

    XVII – Contudo, no dia 05-05-2017 a Arguida assinada um requerimento dirigido ao … para remoção da sua titularidade desta conta onde se encontrava depositado a totalidade do dinheiro herança dos pais, passando a constar como titulares desta conta apenas os filhos da Arguida AA e CA (fls. 163)

    XVIII - Após essa data são feitos apenas movimentos a débito de grande quantias monetárias por ambos os filhos da Arguida (cfr. documentação bancária junta aos autos em 09-12-2020 e em 29-01-2021 pelo Banco …)

    XIX – Esta conduta da Arguida, reflete a sua intenção exteriorizada nestes comportamentos de não restituir à Herança Indivisa de JP, mas sobretudo de dissipar, as quantias monetárias pertencentes àquela herança e que tinha em sua posse

    XX - A realidade é que a Arguida bem sabendo que as quantias referidas em 5., 9., 11 a 13., não lhe pertenciam – como a própria confessa –, sabia necessariamente que as mesmas pertenciam à Herança Indivisa de JP – como a própria também confessa –, contudo não se coibiu de colocar (conjuntamente com a mãe ou de forma isolada em algumas circunstâncias) todo o dinheiro existente em contas novas (abertas após o óbito de JP) - num momento inicial co-titulada por JF- e, após reunido todo o dinheiro existente, tituladas apenas pela Arguida

    XXI - Para, inclusivamente, num segundo momento (após o óbito de JF) a própria Arguida afastar-se da titularidade desses montantes, permanecendo os mesmo apenas “nas mãos” dos filhos da Arguida, que os utilizaram a seu belo prazer

    XXII - Pese embora a Arguida afirme durante todo o julgamento em 2020, variadíssimas vezes, que “o dinheiro está todo lá”, “ninguém mexeu no dinheiro”, os documentos bancários revelam o contrário, sem que até ao presente a Arguida tenha entregue qualquer quantia à cabeça de casal para ser partilhado

    XXIII - De acordo com um raciocínio lógico, assente nas regras da experiência comum, tendo como critério os conhecimentos de um homem médio, a Arguida necessariamente tinha que saber que com a sua conduta causava prejuízo patrimonial à Herança Indivisa de JP e que agia sem autorização e contra a vontade da referida Herança Indivisa. Contudo, tal conhecimento não a impediu de se apropriar dos referidos montantes...

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