Acórdão nº 931/17.9T9BJA.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 22 de Fevereiro de 2022

Magistrado ResponsávelMARIA FILOMENA SOARES
Data da Resolução22 de Fevereiro de 2022
EmissorTribunal da Relação de Évora

Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal (1ª Subsecção) do Tribunal da Relação de Évora: I [i] O processo de inquérito com o nº 931/17.9 T9BJA, que correu termos na Procuradoria da República da Comarca de Beja, Procuradoria do Juízo de Competência Genérica de Ourique, teve origem na queixa apresentada pelos denunciantes MN, FN e RN, que se constituíram assistentes nos autos, destinando-se a investigar factos eventualmente cometidos pelos denunciados JS, HS e SO susceptíveis de integrar a prática de crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217º, nº 1 e 218º, nºs 1 e 2, alíneas a) e c) e de crime de falsificação ou contrafação de documento, p. e p. pelo artigo 256º, nº 1, alíneas c) e d), todos do Código Penal

[ii] Findo o inquérito, o Digno Magistrado do Ministério Público proferiu despacho de arquivamento por insuficiência de indícios da verificação dos elementos típicos dos mencionados crimes, nos termos do preceituado no artigo 277º, nº 1, do Código de Processo Penal

[iii] Inconformados com a decisão de arquivamento, os assistentes requereram a abertura de instrução, alegando que a prova recolhida em inquérito e bem assim aquela cuja realização solicitam conduzirá à prolação de despacho de pronúncia contra os denunciados pela prática dos factos/crimes supra mencionados

[iv] Por despacho proferido em 24.01.2021, o Mmº Juiz de Instrução [do Tribunal Judicial da Comarca de Beja, Juízo de Competência Genérica de Ourique] rejeitou, ao abrigo do disposto no artigo 287º, nº 3, do Código de Processo Penal, por inadmissibilidade legal, o requerimento para a abertura de instrução

[v] Inconformados com tal despacho, os assistentes dele recorreram, extraindo da respectiva motivação de recurso as seguintes conclusões: “1) Na sequência da apresentação pelos Assistentes, ora Recorrentes, de Requerimento de Abertura de Instrução, o Juiz de Instrução proferiu Despacho de rejeição liminar do mesmo, por inadmissibilidade legal da Instrução (cfr. artigo 287º, n.º 3 do CPP)

2) De acordo com o Despacho recorrido, os Assistentes não procederam à narração dos factos que fundamentam a aplicação aos Arguidos de uma pena ou medida de segurança, nos termos e para os efeitos do artigo 283º, n.º 3, alínea b) do CPP, invocando-se que “No caso dos autos, o requerimento de abertura da instrução, para além de não conter a narração das condutas objectivas que os assistentes pretendem imputar aos arguidos (com a explanação clara, concisa, objectiva e assertiva das concretas condutas imputadas a cada um destes), integradoras de cada um dos tipos de crime por que pretendem que cada um dos mesmos sejam pronunciados [crime de falsificação de documento e crime de burla (qualificada)], é também absolutamente omisso quanto a factos integradores dos respectivos elementos subjectivos”, o que nunca poderia conduzir, de acordo com o mesmo Despacho, à pronúncia válida dos Arguidos

3) Tal conclusão resulta de uma errada apreciação do teor do Requerimento apresentado e, bem assim, de uma incorreta interpretação dos artigos 287º, n.º 2 e 283º, n.º 3, alínea b) do CPP

4) Nos termos do artigo 287º, n.º 2 do CPP, o Requerimento de Abertura de Instrução “não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º (…)”

5) Por sua vez, o artigo 283º, n.º 3, alíneas b) e d) do CPP dispõe que “A acusação contém, sob pena de nulidade: b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; c) A indicação das disposições legais aplicáveis”

6) Ora, conforme supra alegado, o Requerimento de Abertura de Instrução apresentado pelos Assistentes, ora Recorrentes, cumpre todos os requisitos previstos na lei – incluindo a narração dos factos que fundamentam a aplicação aos Arguidos de uma pena, nos termos do artigo 283º, n.º 3, alínea b) do CPP, ao contrário do que entendeu o Despacho recorrido –, devendo ser, por isso, admitido

7) O artigo 283º, n.º 3, alínea b) do CPP (aplicável ex vi do artigo 287º, n.º 2) obriga a que os Assistentes procedam à “narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”, o que os Assistentes fizeram, como supra se explicitou

8) Não obriga, pois, à “explanação clara, concisa, objectiva e assertiva das concretas condutas imputadas a cada um destes, integradoras de cada um dos tipos de crime por que pretendem que cada um dos mesmos sejam pronunciados”, pois não é de uma Sentença que se trata, mas de um Requerimento de Abertura de Instrução dos Assistentes, no qual se consideram indícios suficientes da prática dos crimes (é, aliás, esse o critério para proferir ou não despacho de pronúncia, nos termos do artigo 308º, n.º 1 do CPP)

9) A mencionada norma também não impõe a subsunção formal dos factos nos elementos objetivo e subjetivo dos tipos de crime indiciados

10) Não obstante, o Requerimento de Abertura de Instrução contém, ao contrário do que entendeu o Despacho recorrido, a narração dos factos que fundamentam a aplicação aos Arguidos de uma pena, indiciadores do preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos dos tipos legais de crime de burla qualificada e falsificação de documento

11) Estão devidamente narradas, de forma clara, tanto quanto tal é possível [cfr. artigo 283º, n.º 3, alínea b), aplicável ex vi do artigo 287º, n.º 2] as condutas objetivas que os Assistentes pretendem imputar aos Arguidos, as quais suficientemente indiciam o preenchimento dos tipos de crime de burla qualificada e de falsificação de documento, sem prejuízo, no entanto, i) da prova adicional que carece de ser produzida em sede de Instrução e Julgamento para descoberta da verdade material e, bem assim, ii) da subsunção definitiva dos factos aos tipos imputados, a qual só pode ser feita, como é óbvio, em momento posterior do processo e não pelos Assistentes, no Requerimento de Abertura de Instrução, numa fase em que é de indícios suficientes da prática dos crimes que se trata

12) Ademais, foram amplamente invocados no Requerimento de Abertura de Instrução os factos que suficientemente indiciam o preenchimento do tipo subjetivo da burla qualificada e da falsificação de documento, quer no que diz respeito ao dolo genérico, quer no que toca ao dolo específico relativos aos mencionados crimes

13) Não só o preenchimento de tais elementos subjetivos está expressa e explicitamente invocado, como supra se transcreveu, como, mesmo que assim não fosse – no que não se concede e apenas por mera cautela de patrocínio se supõe – sempre decorreria de tudo quanto se alega no Requerimento de Abertura de Instrução

14) Ainda que se entenda que o preenchimento do elemento subjetivo dos tipos de crime em apreço não se encontra adequadamente alegado – no que não se concede e apenas por cautela de patrocínio se equaciona – é forçoso entender que a rejeição do Requerimento de Abertura de Instrução com tal fundamento consubstancia uma decisão excessivamente formalista e, por isso, injusta, porquanto redundaria na rejeição do Requerimento apenas porque os Assistentes não apuseram nele determinado “chavão jurídico” (v.g., os Arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era ilegal), não obstante constarem do Requerimento todos os factos que, materialmente, indiciam o preenchimento dos elementos subjetivos dos crimes de burla qualificada e de falsificação de documento

15) Assim, a eventual insuficiente alegação do preenchimento dos elementos subjetivos dos referidos crimes nunca deveria conduzir a uma rejeição liminar do Requerimento de Abertura de Instrução, mas sim ao convite ao aperfeiçoamento da peça (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 13/01/2016, proferido no âmbito do processo n.º 136/14.0T9VFR.P1 e relatado pelo Juiz Desembargador José Piedade)

16) Na fase em que o processo se encontra, ainda está (apenas) em causa a existência de indícios suficientes da prática, pelos Arguidos, dos crimes em apreço. Creem os Assistentes que os factos ilícitos-típicos constantes dos autos estão suficientemente alegados e justificam a Pronúncia dos Arguidos e a submissão do caso a Julgamento

17) Tal não significa, porém, que todos os factos tenham de ser (apesar de já o serem), neste momento, conhecidos, nem que não se mostre necessária a reapreciação e a produção de prova – nomeadamente na fase de Instrução – que permita atingir o fim último da descoberta da verdade material, pois tal revela-se ainda essencial

18) Aliás, como explicitado pelos Assistentes no Requerimento apresentado, a fase da Instrução revela-se, in casu, absolutamente fundamental para a apreciação dos elementos probatórios incorretamente apreciados pelo Ministério Público e para produção dos meios de prova requeridos, tendo em conta as insuficiências imputadas ao Despacho de Arquivamento

19) A rejeição liminar do Requerimento de Abertura da Instrução assenta num entendimento, salvo o devido respeito, demasiado exigente, que parece querer impor aos Assistentes a obrigação de tudo demonstrarem e provarem, numa fase em que é ainda...

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