Acórdão nº 364/20.0T9ENT.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 22 de Fevereiro de 2022

Data22 Fevereiro 2022

Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I – Relatório a. No 2.º Juízo (1) Local de Entroncamento, do Tribunal Judicial da comarca de Santarém, foi o presente distribuído como processo comum, da competência do tribunal singular

No controlo liminar do processo, efetuado nos termos previstos no artigo 311.º do Código de Processo Penal (CPP), a Mm.a Juíza considerou que a acusação era manifestamente infundada, por os factos nela imputados à arguida não constituírem crime, pelo que a rejeitou (artigo 311.º, § 2.º, al. a) e § 3.º, al. d) CPP), e em sequência disso rejeitou também o pedido de indenização cível fundado na prática do respetivo ilícito

  1. Inconformado com essa decisão dela vem o Ministério Público recorrer, finalizando a respetiva motivação com as seguintes conclusões (transcrição): «1. A Mm.a. Juiz a quo rejeitou a acusação, considerando-a manifestamente infundada, com fundamento em que os factos descritos na mesma à luz da jurisprudência maioritária do TEDH e da CEDH não integram um crime de difamação

    1. A acusação apenas pode considerar-se manifestamente infundada se, em face dos seus próprios termos, não tem condições de viabilidade, quando a factualidade em causa não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora de um crime, juízo que tem de assentar numa constatação objetivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imputação efetuada. 3. Como decorrência do princípio do acusatório consagrado no artigo 32.º, n.º 5 do CRP a rejeição da acusação com fundamento na previsão da al. d) do n.° 3 do art.º 311.° não pode valer para os casos em que só o entendimento doutrinal ou jurisprudencial adotado, quando outro diverso se poderia colocar, sustentou a não qualificação dos factos como penalmente relevantes

    2. Tal não é manifestamente o caso, em que apenas através do recurso à interpretação dada às normas legais em referência (v.g., artigo 180.º do Código Penal, o direito à honra por contraposição com o direito à liberdade de expressão) e com recurso a jurisprudência e doutrina se concluiu pela falta de relevo jurídico penal da conduta descrita na acusação

    3. Ademais, a decisão de rejeição de acusação descontextualizou os factos, não apreciando os mesmos na sua globalidade

    4. Não é manifestamente infundada a acusação que imputou à arguida a prática de um crime de difamação agravada, por ter remetido de uma mensagem de correio eletrónico aos serviços onde o assistente presta serviço como médico, após este ter desaconselhado a marcação de sessão de fisioterapia à respetiva mãe com fundamento na situação pandémica, adjetivando a conduta deste como vergonhosa e afirmando que «deixa morrer só porque não nos queremos incomodar ou ter trabalho» e apelidando-o de «aprendiz de médico que só serve para passar receitas e mal»

    5. De facto, ao imputar ao arguido, como médico de saúde pública, uma conduta de recusa de assistência ao doente, de se conformar com a sua morte, apenas por comodidade ou preguiça, além de ser, contrário à realidade, é indubitavelmente uma ofensa à sua honra profissional, indo muito além do direito de crítica admissível

    6. No despacho recorrido a Mm.a Juiz a quo, valorou de forma crítica a relevância jurídico penal dos factos, optando por considerar que não consubstanciam a prática do crime de difamação, quando na realidade não é inequívoca a sua falta de relevância jurídico penal

    7. Pelo que, tal decisão violou o disposto no artigo 311.º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al d) do Código de Processo Penal, no artigo 180.º do Código Penal e no artigo 32.º, n.º 5 da CRP

    8. Consequentemente, deve o despacho recorrido ser revogado e ser substituído por outro que receba a acusação pública e designe data para julgamento.» c) Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância emitiu entendimento no sentido da procedência do recurso

  2. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, a arguida veio manifestar a sua integral adesão aos fundamentos da decisão recorrida, que considera justa. e) Teve lugar a conferência

    II – Fundamentação 1. Objeto do recurso O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP) (2). De acordo com as conclusões do recorrente, verificamos que a única questão aportada ao conhecimento desta instância de recurso é a de saber se a acusação deduzida pelo Ministério Público não é manifestamente infundada

    1. O despacho recorrido A Mm.a Juíza a quem os autos foram distribuídos para julgamento na 1.º instância proferiu o seguinte despacho liminar (311.º CPP): «(…) REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO Nos termos do disposto no artigo 311.º, n.ºs 1, 2, alínea a) e 3, alínea d), do Código de Processo Penal, recebidos os autos, o juiz pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer, devendo, nos casos em que não tenha havido instrução e considere a acusação manifestamente infundada, nomeadamente por os factos que dela constam não constituírem crime, rejeitar a acusação

    Analisada a acusação deduzida contra a Arguida, constata-se que o Ministério Público lhe imputa a prática de um crime de difamação agravada, p. e p. pelos artigos 180.º, n.º 1 e 184.º, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l), todos do Código Penal

    De acordo com tais normativos legais, «Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.», sendo que tais penas são elevadas de metade «nos seus limites mínimo e máximo se a vítima for uma das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º, no exercício das suas funções ou por causa delas, ou se o agente for funcionário e praticar o facto com grave abuso de autoridade.» A conduta objetiva típica deste tipo criminal consiste na imputação de factos ou formulação de juízos sobre outra pessoa ou reprodução de tal imputação ou juízo que, em qualquer dos casos, sejam ofensivos da honra ou consideração do visado, e perante terceiro(s). Por facto entende-se uma afirmação de realidade ou de existência e por juízo uma afirmação do valor acerca de determinada realidade ou pessoa

    Este crime, como o evidencia a respetiva inserção sistemática, visa a defesa do bem jurídico honra e consideração, entendendo-se como tal, numa conceção normativa-pessoal de honra, a pretensão de respeito que cada um tem, inerente à sua qualidade e dignidade de pessoa, por um lado, e à sua reputação exterior (enquanto opinião objetiva sobre as suas qualidades morais e sociais), por outro

    Segundo o ensinamento de BELEZA DOS SANTOS (in «Algumas considerações jurídicas sobre crimes de difamação e de injúria», apud Revista de Legislação e Jurisprudência, anos 92 e 95, página 164) «a honra é aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale». Por sua vez, a consideração será o património de bom nome, de crédito, de confiança que cada um adquire ao longo da sua vida, sendo, nestes moldes, o aspeto exterior da honra, já que provém do juízo em que cada um de nós é tido pelos outros. Será, então, o merecimento que a pessoa tem no meio social, a reputação, a boa fama, a estima, a dignidade objetiva, ou seja, a forma como cada sociedade vê cada pessoa

    A doutrina dominante adota uma conceção dual da honra, vista como um bem jurídico complexo que inclui quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior

    Assim, o que a norma incriminadora pela qual a Arguida vem acusada protege é a honra interior inerente à pessoa enquanto portadora de valores espirituais e morais e, para além disso, a valência deles decorrente, a sua reputação no seio da comunidade

    Como tem sido sublinhado pela Doutrina e Jurisprudência, a difamação não será punida em todos os casos em que funcione a denominada cláusula geral de adequação social (independentemente de se configurar a mesma como uma causa de justificação implícita ou como verdadeira causa de exclusão da tipicidade) – cf. Germano Marques da Silva, in «Direito Penal Português, Parte Geral, II, Teoria do Crime, Verbo, 2005, páginas 83 a 85

    Efetivamente, nem todo o comportamento incorreto de um indivíduo e nem todos os factos cuja imputação cause melindre ou desconforto ou corresponda a uma desconsideração pessoal, embaraço ou humilhação merecem tutela penal, havendo que distinguir indelicadeza, grosseria e falta de educação de verdadeiros ataques à honra, merecedores de tutela penal

    Nas palavras do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 04-11-2020 (disponível em www.dgsi.pt, processo n.º 2294/17.3T9VFR.P1) «… como é normal, entre os membros de uma comunidade há um certo grau de conflitualidade e animosidade, ocorrendo situações em que os cidadãos se podem expressar de forma deselegante ou indelicada, só devendo o direito intervir nas situações em que é atingido o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade humana.» Com efeito, atenta a natureza de ultima ratio do Direito Penal e os princípios de intervenção mínima, subsidiariedade e proporcionalidade que o conformam, o mesmo só deverá interferir na medida em que a ofensa aos bens jurídicos protegidos pela norma seja suficientemente gravosa para invocar o arsenal de reação próprio deste ramo do Direito, de acordo com o critério constitucional da «necessidade social» (cf. artigo 18.º, n.º 2, in fine, da Constituição)

    Ademais, e em linha com esta asserção (que impõe já um exercício exigente e restritivo de integração da norma), sendo o bem jurídico...

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