Acórdão nº 64/08.9IDSTB.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 10 de Maio de 2022

Magistrado ResponsávelJOÃO AMARO
Data da Resolução10 de Maio de 2022
EmissorTribunal da Relação de Évora

Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I - RELATÓRIO Nos autos de instrução nº 64/08.9IDSTB, do Juízo de Instrução Criminal de Setúbal (Juiz 2), o Ministério Público veio interpor recurso do despacho de não pronúncia do arguido AA

O Ministério Público extrai da motivação do recurso as seguintes (transcritas) conclusões: “1ª - Normas violadas: artigos 21.º, n.º 4, 42.º, n.º 2, e 47.º, n.º 1, do RGIT

  1. - O Acórdão de UJ 2/2011, do STJ, a ser aplicável, não o seria nunca ao presente recurso, o qual sustenta a posição assumida pelo Ministério Público durante o inquérito e o debate instrutório, sempre pugnando pela sujeição do arguido AA a julgamento, sem prejuízo da posição única assumida em resposta a recurso de mero despacho interlocutório

  2. - Os textos das várias normas relativas à suspensão do processo tributário não distinguem entre arguidos impugnantes e arguidos não impugnantes

  3. - A interpretação jurisprudencial que restringe a aplicação da suspensão do processo criminal fiscal aos coarguidos impugnantes parte de uma conceção excessivamente garantística, de um verdadeiro favor rei

  4. - O pensamento legislativo não foi nunca o favor rei, mas a proteção da comunidade, a promoção de valores coletivos (sejam eles a verdade fiscal, o património do Estado, as funções sociais do Estado ou mesmo a autonomia intencional do Estado)

  5. - Os artigos 42.º, 2, e 47.º, 1, do RGIT, constituem uma derrogação do princípio geral da suficiência penal, estando o Ministério Público obrigado à suspensão do inquérito por causa prejudicial fiscal

  6. - No caso do crime de fraude fiscal, o apuramento dos elementos essenciais do tipo objetivo, quais sejam a situação tributária e a concretização da vantagem indevidamente obtida, é feita não pelos Tribunais criminais, mas pelos Tribunais Administrativos e Fiscais

  7. - A derrogação do princípio da suficiência do processo penal tem uma ratio legis objetiva, e são razões objetivas, sistemáticas, que presidirão à interpretação das normas em causa neste aresto

  8. - Querer que um processo penal tributário seja “retalhado” em vários processos separados, tantos quantos os comparticipantes criminosos, é dificultar, para lá do razoável, a perseguição penal de crimes de fraude fiscal, que tão graves danos provocam ao Estado social, com consequências ao nível do princípio da igualdade e da imagem dos Tribunais e da aplicação da Justiça

  9. - A imagem da Justiça, a confiança geral na capacidade de reposição da vigência normativa, depende não só, mas também, da viabilidade da repressão dos danosos crimes de fraude fiscal

  10. - Nenhum arguido foi prejudicado pela impugnação da Valorset, pois a impugnação é um direito legítimo e a sua decisão esclarece e define o objeto deste processo criminal

  11. - Consequentemente, deve o presente recurso ser julgado procedente, declarando-se que o procedimento criminal não prescreveu quanto ao coarguido AA e proferindo-se despacho de pronúncia quanto ao mesmo, como consta do libelo”

* O arguido respondeu ao recurso, concluindo tal resposta nos seguintes termos (em transcrição): “

  1. Deve o recurso ser rejeitado, por falta de interesse em agir do MP

  2. Assim não se considerando, deve o recurso ser julgado improcedente

  3. E, se assim não for entendido e julgar-se o recurso procedente, deve revogar-se o despacho proferido e ordenar-se a prolação de decisão instrutória que aprecie, como questões prévias, as demais questões suscitadas pelo recorrido na instrução”

    * Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pronunciando-se pela procedência do recurso

    Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do C. P. Penal

    Foram colhidos os vistos legais e foi realizada a conferência

    II - FUNDAMENTAÇÃO 1 - Delimitação do objeto do recurso

    Uma única questão, em breve síntese, é suscitada no presente recurso, segundo o âmbito das correspondentes conclusões, as quais delimitam o objeto do recurso e definem os poderes cognitivos deste tribunal ad quem, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal: saber se o procedimento criminal prescreveu (ou não) quanto ao arguido AA

    2 - A decisão recorrida

    O despacho objeto do recurso é do seguinte teor (integral): “Declaro encerrada a instrução

    Cumpre, agora, proferir despacho de pronúncia ou não pronúncia, nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 307º e 308º do Código de Processo Penal

    O que se fará, dando seguimento

    DECISÃO INSTRUTÓRIA I. Enquadramento

    Nos presentes autos, e após encerramento do inquérito, o Ministério Público, por despacho de fls. 1477-1489, deduziu acusação contra BB, Lda., CC, DD, e AA, todos melhor id. a fls. 1479, imputando-lhe a prática de factos suscetíveis de consubstanciar, em seu entender, a prática: - Por parte do arguido CC, um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punível pelos artigos 103º, número 1 e 104º, número 2, alíneas a) e b), todos do Regime Geral das Infrações Tributárias (R.G.I.T.), por referência ao artigo 26º, número 1, do Código Penal; - Por parte da sociedade arguida, um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punível pelos artigos 103º, número 1 e 104º, número 2, alíneas a) e b), todos do R.G.I.T., por referência ao artigo 26º, número 1, do Código Penal; e, - Por parte dos arguidos DD e AA, como cúmplices do arguido CC e da sociedade arguida, na prática do crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punível pelos artigos 103º, número 1 e 104º, número 2, alíneas a) e b), todos do R.G.I.T., por referência ao artigo 26º, número 1, do Código Penal

    Vem a acusação sustentada pelos meios de prova melhor id. a fls. 1488-1489

    Inconformado com a decisão plasmada no libelo acusatório, veio o arguido AA requerer a abertura de instrução, com base nos argumentos constantes de fls. 1552 e segs., alegando, em síntese, que o procedimento criminal quanto a si já se encontra prescrito, desde logo porque não existiu qualquer causa de suspensão do prazo prescricional, e caso se assim não entenda, não existiam indícios que permitiram formular o juízo acusatório quanto a si. Preconizando a prolação, a final, de decisão de não pronúncia

    Também inconformado com a decisão plasmada no libelo acusatório, veio o arguido CC requerer a abertura de instrução com base nos argumentos constantes de fls. 1589 e segs., negando, no essencial, a prática dos factos descritos na acusação, porquanto seria a sua mãe, EE, que exercia de forma exclusiva a gerência da sociedade arguida, desconhecendo o mesmo em absoluto as ações descritas na acusação

    Admitida a instrução, foi produzida a prova que se julgou pertinente face ao objeto da fase

    Ainda, foi declarado exindo o procedimento criminal quanto ao arguido DDs (cfr. despacho ref. 93086021) e a separação de processos relativamente à arguida sociedade (cfr. ata ref. 93095048) prosseguindo o processo apenas relativamente aos arguidos AA e CC

    Foi realizado o debate instrutório em obediência ao devido formalismo legal, como se alcança da respetiva ata

    Encerrado que está o debate, importa agora proferir decisão instrutória

    1. Conhecimento de nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que se possa conhecer (artigo 308º, número 3, do Código de Processo Penal)

      O Tribunal é competente

      As partes têm legitimidade para exercer a ação penal

      Conhecimento de nulidades, exceções ou quaisquer outras questões prévias que obstem à apreciação do mérito da causa: B) Da verificação da prescrição do procedimento criminal, relativamente ao arguido AA

      O arguido requereu a abertura de instrução alegando que o procedimento criminal quanto a si já se encontra prescrito, desde logo porque não existiu qualquer causa de suspensão do prazo prescricional

      Foi proferido despacho interlocutório (ref. 92857685) em que se entendeu não existir prescrição do procedimento criminal quanto a este arguido, “sem prejuízo do conhecimento da questão prévia em sede de decisão instrutória”

      O arguido recorreu de tal decisão, sendo que em sede de resposta ao recurso, o Ministério Público pugna pela verificação da prescrição do procedimento criminal, precisamente, porque se não se pode opor a este arguido a causa de suspensão anteriormente considerada

      E vistos bem os autos, afigura-se-me assistir-lhes razão

      A prescrição é, de entre outras, uma causa de extinção do procedimento criminal

      Parte-se da ideia de que a necessidade da pena, do ponto de vista retributivo e de prevenção geral, e ainda do ponto de vista do fim ressocializador da mesma, dilui-se pouco a pouco com o decurso progressivo do tempo e acaba por desaparecer. Também constitui fundamento da mesma a experiência processual de que, com a crescente distanciação temporal entre o processo penal e o momento da comissão do facto, aumentam as dificuldades probatórias a ponto de ser cada vez maior o perigo de sentenças erradas

      De facto, a prescrição do procedimento criminal ocorre pelo simples decurso do tempo, independentemente de qualquer outra causa e, ao invés do que sucede no direito civil (em que deve ser invocada pelo interessado, funcionando como exceção) deve ser suscitada pela autoridade judiciária assim que dela se aperceba, o que pode acontecer em qualquer momento ou fase do processo

      E tal é precisamente o que, em minha opinião, sucede no presente caso

      Antes de mais atentemos no enquadramento jurídico do instituto da prescrição do procedimento criminal, cotejando-o com a sua aplicabilidade no caso concreto

      Dispõe o artigo 118º do Código Penal (em redação idêntica à vigente à data da prática dos factos) sob a epígrafe “Prazos de prescrição”: “1 - O procedimento criminal extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorrido os seguintes prazos: a) 15 anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for superior a 10 anos; b) 10 anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a 5 anos, mas que não exceda 10 anos; c) 5 anos, quando...

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