Acórdão nº 48/19.1GBGDL.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 27 de Setembro de 2022

Magistrado ResponsávelRENATO BARROSO
Data da Resolução27 de Setembro de 2022
EmissorTribunal da Relação de Évora

ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA 1. RELATÓRIO A – Decisão Recorrida No processo de inquérito nº 48/19.1GBGDL, iniciado por via da queixa apresentada por AA contra a denunciada C..., pela prática de factos suspceptiveis de integrar um crime de dano qualificado e outro de violação de regras urbanísticas, p.p., respectivamente, pelos Artsº 273 nº1 al. c) e 278-A nº1, ambos do C. Penal, que correu termos nos serviços do Ministério Público da Comarca ..., Secção de ..., foi proferido despacho de arquivamento nos seguintes termos (transcrição): Iniciaram os presentes autos com base num auto de notícia (fls. 4 a 6), onde se dá conta que entre o dia 16/02/2019 e o dia 22/02/2019, na ..., em ..., a denunciada C..., por determinação do seu representante legal, procedeu à edificação de pilares em alvenaria com vista a colocar eventualmente um portão ou outro mecanismo que impossibilite a ofendida AA de aceder à sua propriedade através do caminho existente nesse local.

Esta factualidade poderá configurar, em abstracto, a prática de um crime de dano qualificado, previsto e punido pelo artigo 213.º, n.º 1, al. c), do Código Penal, e a prática de um crime de violação de regras urbanísticas, previsto e punido pelo artigo 278.º-A, n.º 1, do Código Penal.

Foram realizadas as seguintes diligências de inquérito: - Junção aos autos de relatório de serviço, fls. 14 e 15.

- Junção aos autos de reportagem fotográfica, fls. 16 e 17.

- Junção aos autos de aditamento ao auto de notícia, fls. 29.

- Inquirição de BB, fls. 31 e 32.

- Junção aos autos de declaração emitida pela JF de ..., fls. 37.

- Junção aos autos de reportagem fotográfica, fls. 38 e 39.

- Inquirição de AA, fls. 43 e 44.

- Junção aos autos de fotografia, fls. 45.

- Junção aos autos de carta remetida por CC a AA e de carta remetida em resposta, fls. 47 e 48.

- Junção aos autos de oficio remetido pela CM de ..., fls. 52 a 57.

- Junção aos autos de cópia de escritura de compra e venda, fls. 107 a 111.

- Interrogatório da sociedade C..., fls. 122 - Interrogatório de DD, fls. 125.

- Tomada de declarações para memória futura a AA, fls. 155.

- Junção aos autos de certidão extraída do processo n.º 6694/18...., fls. 185 a 355.

- Apensação do processo n.º 362/19.....

Findo o inquérito, cumpre, assim, analisar se estamos perante a prática dos referidos ilícitos criminais.

Dispõe o artigo 213.º, do Código Penal: 1 - Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável: a) Coisa ou animal alheios de valor elevado; b) Monumento público; c) Coisa ou animal destinados ao uso e utilidade públicos ou a organismos ou serviços públicos; d) Coisa pertencente ao património cultural e legalmente classificada ou em vias de classificação; ou e) Coisa ou animal alheios afetos ao culto religioso ou à veneração da memória dos mortos e que se encontre em lugar destinado ao culto ou em cemitério; é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias.

2 - Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa ou animal alheios: a) De valor consideravelmente elevado; b) Natural ou produzida pelo homem, oficialmente arrolada ou posta sob protecção oficial pela lei; c) Que possua importante valor científico, artístico ou histórico e se encontre em colecção ou exposição públicas ou acessíveis ao público; ou d) Que possua significado importante para o desenvolvimento tecnológico ou económico; é punido com pena de prisão de dois a oito anos.

3 - É correspondentemente aplicável o disposto nos n.os 3 e 4 do artigo 204.º e 2 e 3 do artigo 206.º e na alínea a) do n.º 1 do artigo 207.º 4 - O n.º 1 do artigo 206.º aplica-se nos casos da alínea a) do n.º 1 e da alínea a) do n.º 2.

Por sua vez, dispõe o artigo 278.º-A, do Código Penal: 1 - Quem proceder a obra de construção, reconstrução ou ampliação de imóvel que incida sobre via pública, terreno da Reserva Ecológica Nacional, Reserva Agrícola Nacional, bem do domínio público ou terreno especialmente protegido por disposição legal, consciente da desconformidade da sua conduta com as normas urbanísticas aplicáveis, é punido com pena de prisão até três anos ou multa.

2 - Não são puníveis as obras de escassa relevância urbanística, assim classificadas por lei.

3 - As pessoas colectivas e entidades equiparadas são responsáveis, nos termos gerais, pelo crime previsto no n.º 1 do presente artigo.

4 - Pode o tribunal ordenar, na decisão de condenação, a demolição da obra ou a restituição do solo ao estado anterior, à custa do autor do facto.

Findo o inquérito, das diligências de inquérito realizadas resulta indiciado que a sociedade arguida, por determinação do arguido, impediu a utilização (tornou não utilizável) a passagem pelo caminho público que possibilitava o acesso à propriedade da ofendida.

Não resulta indiciado que o arguido tivesse agido com dolo por não ter sido possível apurar se, no momento da prática dos factos, o arguido tinha conhecimento que aquele caminho se tratava de um caminho público.

Quanto aos factos que se consideram indiciados e quanto aos factos que não se consideram indiciados, esta convicção alicerçou-se na análise crítica e ponderada, à luz dos princípios que regem a matéria, dos meios de prova acima referidos.

Efectivamente, atendendo ao tipo de caminho em causa (um caminho rural), coloca-se em causa se o arguido teria conhecimento que aquele caminho era público ou se julgava que se tratava de uma servidão de passagem.

Ora, uma vez que uma servidão de passagem não integra o conceito de coisa utilizado na descrição do tipo de crime de dano, já que um direito não é susceptível de ser danificado (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06/10/2021, relator Jorge Jacob, disponível no site www.dgsi.pt), os factos praticados pelo arguido não consubstanciaram a prática dos aludidos crimes se fosse esta a realidade. Como se trata de um caminho público, a conduta do arguido já integra os tipos objectivos de ambos os crimes. No entanto, quanto ao elemento subjectivo de ambos os crimes (dolo), não resultam elementos suficientes que permitam concluir que o arguido sabia que aquele caminho era público e que mesmo assim quisesse agir da forma descrita.

E esta é uma dúvida razoável, tanto mais que a declaração emitida pela Junta de Freguesia ... a comprovar que aquele caminho se trata de um caminho público foi emitida em 07/03/2019, ou seja, em data posterior aos factos que deram origem aos presentes autos.

Pelo exposto, os indícios recolhidos não são suficientes para, a manterem-se em julgamento, determinarem a aplicação de uma pena pela prática dos mencionados crimes, não existindo forma de suprir esta dúvida. Ou seja, dos indícios apurados não resultam indícios suficientes que permitam a sustentação de uma acusação.

Tanto mais que, em caso de dúvida sobre a factualidade típica, deve decidir-se a favor do arguido, atendendo à imposição constitucional “dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao [arguido], quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa”, como acontece no presente caso (CANOTILHO, J. J. Gomes e MOREIRA, Vital, Constituição da República Portuguesa anotada, Volume I, 4ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, 2007, p. 519). Assim, a aplicação do princípio in dubio pro reo, o qual tem aplicação prática em todas as fases processuais, incluindo no inquérito (neste sentido vide Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23/05/2018, relator Desembargador Orlando Gonçalves), impõe que os autos sejam arquivados quando dos indícios recolhidos resulte uma incerteza que impossibilite a formulação de um juízo de indiciação susceptível de sustentar uma acusação em julgamento.

Uma vez que não se logrou apurar se houve um comportamento ilícito por parte do arguido, deverão os presentes autos ser arquivados por não se obter indícios suficientes da prática dos mencionados tipos de crime.

*** Atento o disposto no artigo 277.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o inquérito deverá ser arquivado quando não foi possível obter indícios suficientes da verificação do crime.

Nesta conformidade, determino o arquivamento dos autos, nos termos do n.º 2, do artigo 277.º, do Código de Processo Penal, por não existirem indícios suficientes de se ter verificado a prática dos crimes de dano qualificado e de violação de regras urbanísticas.

*** Cumpra o preceituado pelo artigo 277.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.

Inconformada com o assim decidido e constituída assistente, veio a denunciante AA requerer a abertura da instrução pela pronúncia do já constituído arguido DD, proprietário da empresa C..., pela prática, em autoria material e concurso efectivo, de um crime de dano qualificado, p.p., pelo Artº 213 nº1 al. C) do C. Penal e um crime de usurpação de coisa imóvel, p.p., pelo Artº 215 nº1 do mesmo Código, tendo, na mesma peça processual, deduzido pedido de indemnização civil contra o arguido.

Realizada a instrução, foi proferido pelo Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Instrução Criminal, Juiz 1, despacho de não pronúncia do arguido DD, em relação aos crimes de dano qualificado e de usurpação de coisa imóvel que lhe era assacado pela assistente AA.

B – Recurso Inconformada com este despacho, dela interpor recurso a assistente, apresentando as seguintes conclusões (transcrição): A. Vem o presente recurso interposto contra a decisão proferida nos presentes autos no passado dia 22.03.2022, nos termos da qual a Mma. Juiza de Instrução Criminal decidiu "não pronunciar o arguido DD pela prática dos crimes de dano qualificado p e p artigo 213°, 1 c) C. Penal e de usurpação de coisa imóvel p e p artigo 2150 Código Penai".

B.Para tal, justifica a Mma. Juíza de Instrução Criminal que considerou não verificada a prática do crime de: i) dano qualificado, porquanto entendeu que: "No caso dos autos, temos um caminho cuja natureza pública ou...

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