Acórdão nº 1643/15.3T9STB.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 02 de Julho de 2019

Magistrado ResponsávelCARLOS BERGUETE COELHO
Data da Resolução02 de Julho de 2019
EmissorTribunal da Relação de Évora

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora 1.

RELATÓRIO Nos autos de processo comum, perante tribunal singular, que correu termos no Juízo Local Criminal de Setúbal do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, o arguido PP foi pronunciado, pela prática dos factos descritos na acusação do Ministério Público, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217.º e 218.º, n.º 1, por referência à alínea a) do art. 202.º, todos do Código Penal (CP), e de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, alínea a), do CP.

T., Lda. deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, pedindo a condenação deste no pagamento da quantia de € 8.400,00, acrescida de juros de mora desde a notificação do pedido e até integral e efectivo pagamento.

Proferiu-se despacho de homologação da desistência de queixa quanto ao crime de burla qualificada e de extinção da instância cível por inutilidade superveniente da lide.

O arguido apresentou contestação, defendendo, em síntese, que familiares lhe garantiram fazer uma transferência para a sua conta bancária, do que estava convencido, quando deu a ordem de transferência em apreço nos autos, mas que tal não ocorreu; que nos autos inexiste qualquer documento, mas mera fotocópia de um comprovativo de transferência, o qual não cria nenhuma convicção de pagamento e que não obteve qualquer benefício ilegítimo ou enriquecimento injustificado.

Realizado julgamento e proferida sentença, decidiu-se julgar a acusação procedente e, em conformidade, condenar o arguido pela prática de um crime de falsificação ou contrafacção de documento p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, alínea d) - e não pela alínea a) do mesmo preceito -, do CP, na pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa à razão diária de € 5,20 (cinco euros e vinte cêntimos).

Inconformado com tal decisão, o arguido interpôs recurso, formulando as conclusões: 1. A douta sentença de fls. … a fls. …, objecto do presente recurso fez uma deficiente aplicação do direito e desconsiderou matéria de facto provada, que a ser tida em conta conduziria a uma solução diversa da proferida.

  1. Existem três questões essenciais a decidir: a. Se o arguido/recorrente praticou um crime de falsificação ideológica do documento enviado.

    1. Se a declaração que o mesmo incorporou é ou não um facto juridicamente relevante.

    2. E se o arguido/recorrente obteve com isso benefícios ilegítimos.

  2. O arguido/recorrente dirigindo-se ao seu banco emite a seguinte declaração: “proceda à transferência da quantia de 1.000,00€ para a conta com NIB …” 4. Em consequência de tal declaração, o sistema informático do Banco emite um comprovativo de tal ordem.

  3. Assim sendo este documento comprovativo não é elaborado pelo arguido/recorrente, mas sim por terceiro, que é o Banco segundo as suas declarações.

  4. O que impede a sua punibilidade criminal no âmbito da falsidade ideológica, conforme doutrina e jurisprudência uniforme.

  5. Neste sentido e por mero exemplo, Acórdão da Relação de Évora no proc1649/13.7TDLSB.E1 do douto relator CLEMENTE LIMA – in www.dgsi.pt, Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 26/3/2014, relatado pela Sra. Desembargadora Maria Pilar Oliveira, proferido no processo 18/10.5TATND.c1, in www.dgsi.pt, Acórdãos, do Supremo Tribunal de Justiça (FJ), de 01/19/2000 (DR ISA, de 17/2/2000), do Tribunal da Relação do Porto, de 01/21/2015 (Proc. 7640/13, como os demais citandos disponível em www.dgsi.pt), e do Tribunal da Relação de Coimbra, de 03/26/2014 (Proc. 18/10), e de 12/18/2013 (Proc. 18/13) e, de par, Helena Moniz, seja no «Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial», Tomo II, Coimbra Editora, 1999, pp. 674 e segs., seja em «O Crime de Falsificação de Documento», Coimbra Editora, 2004 (2.ª reimpressão), pp. 208 e segs.

  6. No caso em apreço o arguido/recorrente apenas transmitiu uma declaração de vontade, que o Tribunal “a quo” considerou inverídica.

  7. O Banco narrou no documento o que o arguido/recorrente lhe transmitiu, e este foi fiel e o documento reproduz o que realmente lhe foi transmitido/ordenado.

  8. O documento não é falso, pois é autónomo ou independente das declarações prestadas serem ou não verdadeiras.

  9. Na douta sentença proferida a Meritíssima Juiz “A Quo” para fundamentar a condenação do arguido/recorrente foi-se socorrendo de vários conceitos, sobre o documento, distintos e até opostos, pois tanto diz que o arguido criou o documento, como diz que o arguido o extraiu, como diz que o arguido o emitiu e ainda que fez constar facto falso em documento regular.

  10. Esta manifesta incoerência e imprecisão do Tribunal “a quo” origina a que o ponto 13 dos factos dados como provados, na parte onde se diz que “Do mesmo modo ao criar o documento referente à transferência…“ terá necessariamente que ser alterado para não provado nessa parte.

  11. A Meritíssima Juiz “a quo” apenas poderia considerar provado que o arguido/recorrente anexou a um email um comprovativo de ordem de transferência emitido pelo Banco e nunca que o criou, pois o mesmo é criado pelo sistema bancário após a sua declaração.

  12. De igual forma, errou a Meritíssima Juiz “a quo” considerar que tal documento continha um facto “juridicamente relevante para a relação jurídica em causa (pagamento de dívida)” 15. O documento em causa (comprovativo de ordem de transferência), não é um pagamento, mas sim uma ordem de pagamento.

  13. As transferências efetuadas, após as 15 horas de um dia (como foi a dos autos) apenas são processadas no dia útil seguinte, o que poderá originar que não se concretizem.

  14. Tal resulta de fls 19, 23, 26, 162 e seguintes e 306 dos autos.

  15. O comprovativo de uma transferência mais não é do que uma ordem de transferência e por tal será com esse pressuposto que se poderá aferir do efeito jurídico de tal comprovativo.

  16. Tal documento nunca poderá incorporar um facto juridicamente relevante, conforme sobejamente defendido pela doutrina e jurisprudência 20. “…Por isso, Helena Moniz, refere que seguindo este rumo, a falsidade em documentos é punida quando se tratar de uma declaração de facto falso, mas não de todo e qualquer facto falso, apenas daquele que for juridicamente relevante, isto é, aquele que é apto a constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica. - HELENA MONIZ, Comentário Conimbricense, II, 683., In Acórdão da Relação de Évora no proc1649/13.7TDLSB.E1 do douto relator CLEMENTE LIMA – in www.dgsi.pt” e TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA, Procº NUIPC 4840/13.2T3SNT.L 1 do douto relator Agostinho Torres in www.dgsi.pt 21. Mesmo considerando que o arguido/recorrente sabia que não tinha fundos, só poderia dar como provado que este prestou uma declaração, com elementos inexatos perante o Banco, e esta indução em erro não é punida.

  17. No mesmo sentido do reportado; entre outros: - ac. RP de 2-7-2014, proc. 4741/10.6T3SNT.P1; - ac. RP de 7-5-2014, proc. 6041/13.OTAVNG.P1 - ac. RC de 26-3-2014, proc. 18/10.5TATND.C1; - ac. RC de 18-12-2013, proc. 18/13.3TAVLF.C1: - ac. RP de 4-5-2011, proc. 663/07.6TAFAF.P1.

  18. O envio de tal documento (comprovativo de ordem de transferência) é incapaz de constituir, modificar ou extinguir a relação jurídica entre ambos.

  19. Para que um arguido/recorrente seja condenado criminalmente, ainda que de um crime de natureza pública, o Tribunal nunca poderá dissociar o eventual comportamento e as suas consequências no caso concreto.

  20. O envio de um comprovativo de uma ordem transferência não é um facto juridicamente relevante pois que em todas as situações, para qualquer bom pai de família ou homem médio apenas cria na sua esfera jurídica a expectativa de recebimento.

  21. O envio do comprovativo da ordem de transferência no caso concreto foi totalmente inócuo.

  22. Diferente seria se, com tal documento evitasse a prescrição do procedimento criminal, ou originasse qualquer quitação ou qualquer ato da ofendida que prejudicasse e diminuísse o seu direito.

  23. A ofendida não praticou qualquer facto, diferente do que teria praticado se tal comprovativo não tivesse sido enviado.

  24. A queixa dos presentes autos apenas foi apresentada em 13/04/2015 e já no dia 26 de Outubro de 2014, a ofendida tinha conhecimento que a ordem de transferência não se tinha concretizado.

  25. O envio de tal documento não fez protelar no tempo o que quer que fosse, uma vez que a ofendida mesmo após a não concretização da ordem de transferência não agiu de imediato.

  26. Assim e face ao exposto, também deverão V. Exªs alterar a redação do ponto 11 da matéria dada como provada, na parte onde se diz “tinha pago aquele montante” para “tinha dado ordem de pagamento” 32. E em consequência dar não provado que o arguido/recorrente tenha obtido um benefício ilegítimo.

  27. Por tal, não existiu qualquer falsificação do documento, nomeadamente a prevista e punida nos termos da alínea d) do nº 1 do artº 256 do Código Penal.

  28. Outrossim há uma clara violação do referido preceito legal, ao condenar o arguido/recorrente.

  29. Devendo o arguido/recorrente ser absolvido da prática do crime de falsificação.

    TERMOS EM QUE, JULGANDO PROCEDENTE POR PROVADO O PRESENTE RECURSO ALTERANDO A DOUTA DECISÃO RECORRIDA, E EM CONSEQUÊNCIA ABSOLVENDO O RECORRENTE DO CRIME PELO QUAL FOI CONDENADO, SE FARÁ INTEIRA E SÃ JUSTIÇA.

    O recurso foi admitido.

    O Ministério Público apresentou resposta, sem extrair conclusões, no sentido do não provimento do recurso e da manutenção integral da decisão recorrida.

    Neste Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer em idêntico sentido.

    Observado o disposto no n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal (CPP), o arguido veio, no essencial, reiterar a sua posição.

    Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

  30. FUNDAMENTAÇÃO O objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da motivação, como decorre do art. 412.º, n.º 1, do CPP, sem prejuízo das questões de...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT