Acórdão nº 265/15.3T9ORM.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 03 de Dezembro de 2019

Magistrado ResponsávelRENATO BARROSO
Data da Resolução03 de Dezembro de 2019
EmissorTribunal da Relação de Évora

ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA 1.RELATÓRIO A – Decisão Recorrida O processo nº 265/15.3T9ORM, a correr termos na Comarca de Santarém, Juízo de Instrução Criminal, Juiz 1, iniciou-se com a queixa apresentada por MM, ora assistente, contra MF e ML, imputando-lhes factos susceptíveis de integrar a prática dos crimes de furto, falsificação de documento, burla e abuso de confiança.

Findo o inquérito, foi proferido despacho de arquivamento quanto ao crime de falsificação, por se considerar inexistirem indícios da sua prática, e em relação aos crimes de furto, burla e abuso de confiança, determinou-se a notificação do assistente e sua Mandatária, nos termos e para os efeitos previstos no Artº 284 nº1 do Código de Processo Penal.

O assistente requereu a abertura da instrução, solicitando a pronúncia dos arguidos pela prática dos crimes de burla, falsificação de documento e abuso de confiança, p.p., pelos Artsº 217 nº1, 256 nº1 als. d) e e) e 205 nº1, todos do C. Penal.

O requerimento de abertura de instrução foi parcialmente rejeitado, quanto ao imputado crime de burla, por não conter todos os factos necessários para integrar esse tipo de ilícito, tendo sido admitido quanto aos demais.

No decurso da instrução, a arguida suscitou a questão da inadmissibilidade da instrução quanto ao imputado crime de abuso de confiança, porquanto sendo ainda casada com o assistente à data da sua alegada prática, o respectivo procedimento criminal depende de acusação particular, nos termos combinados dos Artsº 205 e 207 nº1 al. a), ambos do C. Penal, não tendo aquele deduzido essa acusação particular, apesar de notificado pelo MP para tal efeito.

Efectuado debate instrutório, foi proferida a seguinte decisão instrutória (transcrição): I – Síntese da tramitação processual: Iniciaram os presentes autos com a queixa apresentada por MM, ora assistente, o qual imputa a MF e ML factos susceptíveis de integrar a prática dos crimes de falsificação de documento, burla e abuso de confiança.

Findo o inquérito, foi proferido despacho de arquivamento, quanto ao crime de falsificação imputado aos arguidos nos termos constantes de fls. 501 a 508, por inexistirem indícios da prática deste crime.

Quanto aos crimes de burla e abuso de confiança, foi proferido despacho de fls. 508 onde se entendeu que tais crimes não se encontram denunciados, mas tendo sido determinada a notificação do assistente e sua mandatária “nos termos e para os efeitos previstos no artigo 284º, n.º 1 do Código Penal”.

Inconformado, o assistente requereu a abertura da instrução, nos termos que relevam de fls. 518 a 527.

Pugna pela pronúncia dos arguidos MF e ML pela prática de: - um crime de burla, p. e p. pelo artigo 217º, n.º 1, do Código Penal; - um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256º, n.º 1, als. d) e e) do Código Penal; e - um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205º, n.º 1 do Código Penal.

O requerimento de abertura de instrução foi parcialmente rejeitado, quanto ao imputado crime de burla, nos termos que resultam do despacho de fls. 538 a 541, por não conter todos os factos necessários para integrar esse tipo de crime, tendo sido admitido no segmento restante.

Produzida a prova, teve lugar o debate instrutório, com observância das legais formalidades.

No decurso da instrução a arguida MF suscitou a questão da inadmissibilidade da instrução quanto ao imputado crime de abuso de confiança, porquanto à data da sua alegada prática arguido e ofendida eram ainda casados, motivo pelo qual esse crime depende de acusação particular, nos termos dos artigos 205º e 207º, n.º 1, al. a) do Código Penal.

Após reabertura do debate instrutório foi dada aos sujeitos processuais a possibilidade de se pronunciarem quanto a eventual declaração da nulidade prevista no artigo 119º, al. b) do CPP.

* II – Saneamento:

  1. Questão prévia – Da admissibilidade da instrução quanto ao imputado crime de abuso de confiança: No seu RAI o assistente alega em síntese que: a) Foi casado com a ofendida de quem se divorciou em 21 de Janeiro de 2015; b)O património comum do casal incluía um veículo automóvel de matrícula -UU; c) No dia 26 de Janeiro de 2015 os arguidos preencheram e submeteram a registo uma declaração para registo de propriedade com base em contrato verbal de compra e venda de um veículo automóvel pelo qual registaram o veículo UU como propriedade exclusiva da arguida; d) Sabendo que as declarações constantes de tal documento eram falsas, pois o assistente não havia vendido esse veículo à arguida; e) Sendo que após a separação o assistente havia autorizado que a arguida utilizasse o veículo em causa até à partilha dos bens comuns, sem que no entanto pretendesse transmitir a propriedade do mesmo; f) Tendo a arguida com os factos supra descritos pretendido fazer tal veículo apenas seu, com intenção de prejudicar o assistente.

    Comete o crime de abuso de confiança quem “ilegitimamente se apropriar de coisa móvel ou animal que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade” – artigo 205º, n.º 1 do Código Penal.

    O crime é pois praticado quando a pessoa a quem foi entregue o bem passa a detê-lo em nome próprio, como se fosse seu proprietário. No entanto, é necessário que essa detenção em nome próprio se exteriorize por algum comportamento objectivo, pois de outro modo estar-se-ia a criar um “delito de intenção” em que a mera intenção de praticar o crime ou nuda cogitatio passaria a ser criminalmente punida.

    No caso dos autos, e tendo em conta o teor do RAI, a intenção de apropriação da arguida foi exteriorizada no requerimento de registo automóvel apresentado em 26 de Janeiro de 2015.

    É pois esta a data de consumação deste possível crime.

    Sucede que o assistente e a arguida MF casaram no dia 25 de Dezembro de 1987 e tal casamento foi dissolvido por divórcio decretado por sentença proferida no dia 21 de Janeiro de 2015, que apenas transitou em julgado em 20 de Fevereiro de 2015 (cfr. fls. 576-577).

    O artigo 1789.º, n.º 1, do Código Civil estatui que: “1. Os efeitos do divórcio produzem-se a partir do trânsito em julgado da respectiva sentença, mas retrotraem-se à data da proposição da acção quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges.”.

    Temos pois que à data dos factos, a sentença que havia decretado o seu divórcio ainda não havia produzido efeitos, pelo que se deve considerar que estes ainda eram casados.

    Por sua vez o artigo 207º, n.º 1 al. a) do Código Penal estatui que “1 - No caso do artigo 203.º e do n.º 1 do artigo 205.º, o procedimento criminal depende de acusação particular se:

  2. O agente for cônjuge, ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao 2.º grau da vítima, ou com ela viver em condições análogas às dos cônjuges;”.

    Temos, pois, que, no caso dos autos, o procedimento criminal relativo a este possível crime de abuso de confiança dependia de acusação particular.

    Tal implica que o ofendido deve apresentar queixa, constituir-se assistente e deduzir acusação particular – artigo 50º, do CPP – sem o que o procedimento criminal não pode prosseguir por falta deste pressuposto processual.

    De resto, e como também notou a arguida MF, a natureza particular do crime obsta também à abertura da instrução pelo assistente, porquanto o artigo 287º, n.º 1, al. b) do Código Penal estatui que a instrução pode ser requerida pelo assistente “se o procedimento não depender de acusação particular”.

    Esta norma assenta de resto num pressuposto da mais elementar lógica.

    A instrução visa a “comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou arquivar o inquérito” – artigo 286º, n.º 1 do CPP.

    Se o procedimento depende de acusação particular, o despacho final do MºPº não é de acusação ou arquivamento. Antes deve este indicar se no seu entender os autos reúnem indícios suficientes da verificação do crime e notificar o assistente para deduzir acusação particular nos termos do artigo 285º, n.º 1 do CPP.

    A decisão de acusar ou não, nestes casos, cabe ao próprio assistente, pelo que não faz sentido que este seja admitido a requerer a abertura da instrução.

    Conclui-se pois que, neste caso, a instrução não é admissível quanto ao crime de abuso de confiança.

    Sucede que esta questão suscita por sua vez uma outra relativa à promoção do processo pelo Ministério Público, que tem efeito decisivo na marcha do processo.

    b). Questão prévia – Da falta de promoção do processo penal, pelo MºPº: Como já dissemos, em processo dependente de acusação particular, o MºPº deve notificar o assistente para deduzir, querendo, acusação, nos termos do artigo 285º, n.º 1 do CPP.

    Esta norma estatui que: “1 - Findo o inquérito, quando o procedimento depender de acusação particular, o Ministério Público notifica o assistente para que este deduza em 10 dias, querendo, acusação particular.

    2 - O Ministério Público indica, na notificação prevista no número anterior, se foram recolhidos indícios...

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