Acórdão nº 1732/16.7T9STB-A.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 13 de Abril de 2021

Magistrado ResponsávelJOÃO AMARO
Data da Resolução13 de Abril de 2021
EmissorTribunal da Relação de Évora

Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I - RELATÓRIO Nos autos de instrução nº 1732/16.7T9STB, do Juízo de Instrução Criminal de Setúbal (Juiz 2), foi proferida a seguinte decisão instrutória: “Nesta conformidade, julgando-se improcedente o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente AKE, decido: A) Pronunciar os arguidos LMRC, MFS, ÁAB e MJ, pelos factos e incriminações que constam da acusação de fls. 461 e segs., que aqui dou por integralmente reproduzida e para os quais remeto, ao abrigo do Artigo 307º, nº 1 a 3 do C.P.P., a fim de serem julgados em processo comum e com a intervenção do tribunal singular; B) Não pronunciar os mesmos arguidos da prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de burla qualificada p. e p. pelo Artigo 217º, nº 1 e 218º, nº 1, al. a), por referência ao Artigo 202º, al. a) todos C.P., seja em concurso verdadeiro ou efetivo ou em concurso aparente de normas”

* Dessa decisão instrutória interpôs recurso a assistente AKE

Apresentou as seguintes (transcritas) conclusões, extraídas da motivação do recurso: “1.ª O presente processo conheceu despacho de arquivamento por parte do Ministério Público, ante o qual a assistente reagiu através de intervenção hierárquica a qual logrou ter sido proferido despacho de acusação pública, mas apenas quanto a crime de falsas declarações, ante o que reagiu através da instrução, imputando aos arguidos o crime de burla qualificada pelo valor elevado

  1. A decisão recorrida, ao afastar a verificação no caso do crime de burla qualificada pelo valor elevado, que a recorrente imputou aos arguidos no seu requerimento de abertura de instrução, enferma de erro de Direito na interpretação e aplicação dos artigos 217º, nº 1, e 218º, nº 1, a), do Código Penal, porquanto estão verificados no caso os elementos típicos deste tipo de crime na forma qualificada

  2. A decisão recorrida, ao afastar a verificação desse tipo qualificado de crime com fundamento em não resultar dos autos o valor do dano, por não se ter apurado o valor da parcela imobiliária cuja propriedade os arguidos lograram fazer obter por usucapião, através da escritura notarial na qual prestaram falsas declarações, enferma de erro de Direito na interpretação e aplicação dos artigos 217º, nº 1 e nº 3, 218º e 115º, nº 1, do Código Penal, por um lado, e, por outro, dos artigos 287º, nº 2, 307º, nº 1, 308º, nº 1, e, enfim, 48º e 49º, todos estes do Código de Processo Penal, porquanto ante os factos vertidos no requerimento de abertura de instrução, suportados pela prova indiciária dos autos, ocorre dano elevado, sim, mas não aquele, antes o dano que é ali especificado e mencionado, o seu valor de 37.011,02 euros, pelo que não se trata de crime de burla simples, cujo procedimento dependa de queixa, cujo direito estaria caducado pelo seu não exercício em prazo, antes burla qualificada pelo valor elevado, de natureza pública

    Nestes termos, deve ser revogada a decisão de não pronúncia e substituída por outra que ordene a pronúncia dos denunciados pelo crime que consta da acusação pública, o de falsas declarações, mas também, em autoria material e na forma consumada, em concurso real, o crime de burla qualificada pelo valor elevado, como consta do requerimento de abertura de instrução, como é de Justiça”

    * O Exmº Magistrado do Ministério Público junto do tribunal de primeira instância respondeu ao recurso, pronunciando-se no sentido de ser negado provimento ao mesmo, e concluindo a sua resposta nos seguintes termos (em transcrição): “1. Interpôs a assistente AKE recurso da douta decisão instrutória proferida a fls. 606-628 dos autos supra epigrafados, que, no que ora aqui relevará, não pronunciou os arguidos LMRC, MFS, ÁAC e MJ pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos art.ºs 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 1, al. a), por referência ao art.º 202.º, al. a), todos do Código Penal (seja em concurso verdadeiro ou efetivo ou em concurso aparente de normas com um crime de falsas declarações, previsto e punido pelo art.º 348.º-A, n.ºs 1 e 2, do mesmo diploma legal, tendo nestoutra parte existido decisão de pronúncia); 2. Pugna a ora recorrente pela revogação da supra referida decisão instrutória e consequente substituição desta por outra que determine a pronúncia dos arguidos pela prática do aludido crime de burla qualificada (a par, em concurso real, do de falsas declarações); 3. Estará aqui em causa, no essencial e no que ora mais interessa relativamente à douta decisão instrutória recorrida, aquilatar da alegação no RAI do “prejuízo patrimonial” correspondente ao elemento objetivo do tipo do crime de burla e, do mesmo passo, conducente à qualificação deste ilícito, bem assim da possibilidade da imputação de semelhante crime de burla qualificada em concurso real/efetivo com o crime de falsas declarações; 4. No que concerne à questão da alegação no requerimento de abertura de instrução do “prejuízo patrimonial” sofrido pela ora recorrente, que corresponda ao elemento objetivo do tipo do crime de burla e que, atento o seu valor, acarrete a subsunção dos factos (já) ao crime de burla qualificada, perfilhamos, in totum, o entendimento então expendido pela Meritíssima Juiz a quo

    5. Efetivamente, percorrendo, de modo exaustivo, os 43 artigos constantes do requerimento instrutório apresentado pela assistente AKE, certo é que em lado algum é mencionado qualquer valor correspondente ao aludido “prejuízo patrimonial”, muito menos, o valor “consideravelmente elevado” invocado pelo mesmo sujeito processual; 6. Ora, não poderá tal falta de indicação do valor correspondente àquele “prejuízo patrimonial” ser suprida pela existência de quaisquer elementos ou referências exteriores ao mesmo requerimento de abertura de instrução, inexistindo, desde logo, para tanto, qualquer remissão efetuada nesse sentido; 7. Sendo que mesmo semelhante remissão não satisfaria as formalidades legais exigidas ao assistente no nº 2 do art.º 287º do Código de Processo Penal, conforme, a título meramente exemplificativo, se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 1 de Abril de 2009, Relator Jorge Gonçalves, Processo n.º 2899/06.8TALRA.C1, acessível em www.dgsi.pt: «olvidou o assistente, por completo, que tal requerimento deveria constituir-se como uma verdadeira acusação alternativa ao despacho de arquivamento do Ministério Público, sendo certo que não é admissível a narração por remissão para a queixa e para o amplo conjunto dos documentos entretanto apresentados, como parece supor o recorrente, erradamente, atento o teor da motivação (e no requerimento de abertura da instrução também não se faz essa expressa remissão, que em todo o caso seria inadmissível)»

    8. Entendendo a recorrente existir prova indiciária nos autos que permite concluir no sentido de ser o “dano” que sofreu quantificável em € 37.011,02, certo é que tal valor não traduz o “prejuízo patrimonial” correspondente ao elemento objetivo do tipo do crime de burla, dizendo, antes, e ao invés, respeito a valores diversos a ter em conta em sede de pedido de indemnização civil, sendo que se reportam a montante que aquela deixou de receber por via contratual ou a despesas efetuadas (a própria assistente chama-lhes “danos emergentes”, “perda de vantagens” ou “encargos inerentes”) e, mesmo, a danos morais

    9. E mesmo que se procurasse calcular qual possa ter sido o “prejuízo patrimonial” penalmente relevante, sempre seria de concluir no sentido de não se estar perante qualquer “valor elevado” ou “valor consideravelmente elevado” - cfr. o art.º 202.º, als. a) ou b), respetivamente, do Código Penal -, suscetíveis de qualificar o crime de burla em conformidade com o disposto no art.º 218.º, nºs 1 ou 2, al. a), ainda respetivamente, de idêntico diploma legal; 10. Efetivamente, e como (bem) refere a Meritíssima Juiz a quo: «na dúvida sobre tal valor, o Tribunal não o pode presumir, mas sempre se frisando que a escritura lhe atribui o valor de € 100,00 euros e, face à área de tal parcela - 1.250 m2 - e considerada a área total - 7.250 m2 - do prédio misto e valor tributável do mesmo - 17.710,00€ -, nunca a tal parcela poderia ser atribuído valor superior a 4.000 euros (mais próximos dos 3.000 euros, por corresponder a 5,8 da parcela total), parece-nos»

    11. Não podia, pois, no aspeto ora em apreço, ser diversa a decisão instrutória proferida, sendo que, dizendo a própria assistente que caso se tratasse “de crime de burla simples cujo procedimento dependa de queixa” sempre o correspondente direito de queixa “estaria caducado pelo seu não exercício em prazo”, também a Meritíssima Juiz a quo assim decidiu, nesse exato sentido, designadamente, afirmando que «nunca os arguidos poderiam ser responsabilizados criminalmente por tal ilícito simples, por ausência da aludida condição de procedibilidade da ação penal»

    12. Muito embora a questão da possibilidade da imputação do crime de burla qualificada em concurso real/efetivo com o crime de falsas declarações já se encontre prejudicada, sendo certo que não poderá in casu ser proferida decisão de pronúncia senão relativamente ao crime de falsas declarações, diga-se que apreciámos a mesma (questão) em sede de debate instrutório, sendo que afigura-se-nos ser, neste momento, de manter, in totum, essa posição

    13. Conforme referimos então: «sempre se refira, ainda, ex abundanti, que, tendo em conta o disposto no art.º 348.º-A, n.º 1, in fine do Código Penal – (…) “se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal” –, não se vê que pudesse estar em causa a verificação do supra aludido concurso real. Como refere Maria de Fátima dos Anjos Colaço, Breve Comentário ao “Novo” Crime de Falsas Declarações, Dissertação de Mestrado em Ciências Jurídico-Criminais, Coimbra, 2016, Universidade de Coimbra (Orientador: Professor Doutor Manuel da Costa Andrade), “[relativamente ao...

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