Acórdão nº 482/19.7T9FAR.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 12 de Janeiro de 2021

Magistrado ResponsávelNUNO GARCIA
Data da Resolução12 de Janeiro de 2021
EmissorTribunal da Relação de Évora

ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA RELATÓRIO No âmbito do processo 482/19.7T9FAR, em que é arguida C… e assistente S…, foi proferido despacho rejeitando a acusação particular e a subsequente acusação pública nos seguintes termos: “--- Deduziu a assistente acusação particular, imputando à arguida, C…, a prática dos crimes de difamação e injúria, p. e p., respetivamente, pelos arts. 180.º e 181.º do Código Penal. ----- --- Nos termos do disposto no art. 311.°, 2, al. a) do Código de Processo Penal, se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada. ----- --- Como é sabido, aplica-se à acusação particular a disciplina legal da acusação deduzida pelo Ministério Público, ex vi do n.º 3 do art. 285.º do Código de Processo Penal. ----- --- Dispõe o art. 285.º, 1, do Código de Processo Penal, que findo o inquérito, quando o procedimento depender de acusação particular, o Ministério Público notifica o assistente para que este deduza em dez dias, querendo, acusação particular. ----- --- A acusação deverá obedecer aos seguintes requisitos: a) As indicações tendentes à identificação do arguido; b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; c) A indicação das disposições legais aplicáveis; d) O rol com o máximo de 20 testemunhas, com a respetiva identificação, discriminando-se as que só devem depor sobre os aspetos referidos no n.º 2 do artigo 128.º, as quais não podem exceder o número de cinco; e) A indicação dos peritos e consultores técnicos a serem ouvidos em julgamento, com a respetiva identificação; f) A indicação de outras provas a produzir ou a requerer; g) A data e assinatura – cfr. art. 283.º, 3, do Código de Processo Penal. ----- --- A omissão na acusação de alguma dessas matérias contidas nas referidas alíneas é cominada com nulidade que, porém, não é insanável, uma vez que não está taxativamente enumerada no art. 119.º do Código de Processo Penal. Daí que tenha de ser arguida, nos termos do art. 120.º do mesmo diploma legal. ----- --- Estabelece, todavia, o artigo 311.º, 2, a), do Código de Processo Penal, como se disse, que o juiz deve rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada. ----- --- Daqui resulta que o modelo processual penal vigente desde 1987 em Portugal se estrutura no princípio do acusatório, embora mitigado com uma vertente investigatória, (estrutura acusatória mitigada pelo princípio da acusação, cfr. art. 2.º, n.º 2, ponto 4, da Lei n.º 43/86, de 26/09, Lei de autorização legislativa em matéria de processo penal); um dos seus traços estruturais radica exatamente na distinção clara entre a entidade que tem a seu cargo uma fase investigatória e, se for caso disso, sustenta uma acusação, e uma outra entidade que julga, em audiência pública e contraditória, os factos objeto dessa acusação. Por isso, e com essa intenção, estabeleceu-se, normativamente, no art. 311.º, 3, do Código de Processo Penal, as situações que podem fundamentar a rejeição da acusação pelo juiz, sem pôr em causa o modelo acusatório estabelecido. Ou seja, ficou o juiz impedido de, quando profere o despacho ao abrigo do art. 311.º, ter um papel equivalente ao Ministério Público ou outro sujeito processual, fazendo um juízo sobre a suficiência ou insuficiência de indícios que sustentam a acusação proferida. ----- --- Por isso agora, são apenas os quatro motivos explicitados na lei que permitem ao juiz rejeitar a acusação por manifestamente infundada, e são eles: a) quando a acusação não contenha a identificação do arguido; b) quando não contenha a narração dos factos; c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; d) se os factos não constituírem crime – cfr. n.º 3 do art. 311.º do Código de Processo Penal. ----- --- O art. 311.º, 3, prevê, assim, os casos extremos de nulidade da acusação, justificando que a rejeição liminar tenha lugar em casos limite, insuscetíveis de correção sem prejudicar o direito de defesa fundamental, subtraindo-se, por isso, tais vícios ao regime das nulidades sanáveis. Trata-se de um tipo de nulidade sui generis, extrema, insuperável ou insanável, ainda que suscetível de correção pelo Ministério Público, a ponto de permitir ao juiz de julgamento a intromissão na acusação, de forma a evitar um julgamento sem objeto fáctico e probatório, sem acusado, sem incriminação, ou sem objeto legal. ----- --- Daí que o n.º 3 do art. 311.º do Código de Processo Penal haja, em rigor, consagrado um específico regime de nulidades da acusação que, face à gravidade e à intensidade da violação dos princípios processuais penais contidos na Constituição da República Portuguesa, são insuperáveis/insanáveis enquanto a acusação mantiver o mesmo conteúdo material. Mas só esses

Ou seja, a exigência de indicação precisa na acusação dos factos imputados ao arguido, emanação clara do princípio acusatório consagrado no art. 32.º, 5, da Lei Fundamental, tem como implicação direta que ninguém pode ser julgado por um crime sem precedência de acusação por esse crime, deduzida por órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Só assim ficam satisfeitas as garantias de defesa que este preceito constitucional consagra. ----- --- Há a necessidade de o arguido conhecer, na sua real dimensão, os factos de que é acusado, para que deles possa convenientemente defender-se, e para que não possa ser surpreendido em julgamento com factos que a acusação não lhe tivesse posto diante dos olhos – cfr., neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 09/05/2012, proferido no processo n.º 571/10.3TACVL-A.C1, disponível, em texto integral, no sítio da internet www.dgsi.pt, e que aqui seguimos de perto. ----- --- No caso dos autos, temos que – para além da extensa factualidade irrelevante, porquanto não integra elemento objetivo ou subjetivo de qualquer ilícito criminal – a acusação deduzida pela assistente (fls. 187 a 188), no que tange à materialidade subsumível ao elemento subjetivo dos crimes que imputa à arguida, é do seguinte teor (que se passa a transcrever): “47. A arguida bem sabe que a sua conduta era proibida e punida por lei. 48. No entanto, não se coibiu de levá-la a cabo de forma deliberada, livre e consciente”.----- --- Na acusação particular, que deduziu, a assistente imputa à arguida a prática de um crime de injúria e de um crime de difamação mas, face ao teor daquela, conforme flui do segmento acabado de transcrever, temos de concluir ser a mesma manifestamente infundada, posto que não narra todos os factos integradores dos tipos legais em referência, como se lhe impunha fazer. ----- --- De acordo com o preceituado no art. 180.º, 1, do Código Penal, “Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias”. ----- --- De harmonia com o previsto no n.º 1 do art. 181.º do mesmo código, “Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivas da sua honra e consideração, é punido com pena de prisão até três meses ou com pena de multa até 120 dias”. ----- --- Contudo, o art. 13.º do Código Penal estabelece que “Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”. ----- --- Por outro lado, o art. 14.º do mesmo diploma, estabelece que: “1 - Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, atuar com intenção de o realizar. 2 - Age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta. 3 - Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente atuar conformando-se com aquela realização”. ----- --- O art. 15.º da mesma codificação legal preceitua, por seu turno, que: “Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz: a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas atuar sem se conformar com essa realização; ou, b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto”. ----- --- Daqui resulta que só pode ser condenado pela prática de um ilícito o agente que preencha os seus elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime. ----- --- Ou seja, apenas se poderia dizer que a arguida teria praticado o crime de injúrias se, por um lado, tivesse dirigido, diretamente, a alguém (mormente à assistente), palavras ou imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ofensivas da sua honra e consideração [o que, face a toda a descrição factual vertida na peça processual em análise...

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