Acórdão nº 3506/15.3T9FAR.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 02 de Maio de 2017

Magistrado ResponsávelANA BARATA BRITO
Data da Resolução02 de Maio de 2017
EmissorTribunal da Relação de Évora

Acordam na Secção Criminal: 1.

No Processo n.º 3506/15.3T9FAR, da Comarca de Faro, foi proferida decisão instrutória em que se decidiu não pronunciar a arguida MM pela prática de um crime de desobediência do art. 348.º, n.º 1, al. a), do CP, com referência ao disposto pelo n.º 1 do art. 14.º da Lei do Cibercrime, pelo qual havia sido acusada pelo Ministério Público.

Inconformado com o decidido, recorreu o Ministério Público, concluindo: “I- De acordo com o artigo 348.º, do Código Penal, o crime de desobediência apresenta os seguintes elementos objectivos: 1)- falta à obediência devida a ordem ou mandado legítimos; 2)- que tenham sido regularmente comunicados; 3)- emanados de autoridade ou funcionário competente.

II- Em nosso entendimento, verificam-se, in casu todos os elementos objectivos e subjectivos acabados de citar, designadamente o elemento objectivo da legitimidade da ordem que serviu de fundamento para não pronunciar a arguida.

III- Neste aspecto, a ordem para ser considerada legítima terá de se revestir de legalidade substancial e formal e provir de uma autoridade competente para o efeito.

IV- No que concerne à legalidade substancial, a ordem ou mandado têm que se basear numa disposição legal que autorize a sua emissão ou decorrer dos poderes discricionários do funcionário ou autoridade emitente.

V- No que tange à legalidade formal, exige-se que as ordens ou mandados tenham sido emitidos de acordo com as formalidades que a lei estipula para a sua emissão.

VI- Ora, a ordem em questão foi emitida, por um magistrado do Ministério Público, no âmbito de uma investigação criminal de que era titular e ao abrigo do disposto no artigo 14.º, da Lei 109/2009, de 15 de Setembro.

VII- Como a norma em causa não tem qualquer prazo de validade, a informação pretendida se enquadrava no seu âmbito de aplicação (o que não foi posto em causa) e estava na disponibilidade da operadora de telecomunicações, não vemos qualquer ilegitimidade na ordem transmitida.

VIII- Numa questão dúbia e sem previsão legal, não poderá ser considerada ilegítima uma ordem proferida por uma autoridade competente, unicamente devido ao facto de se perfilhar de um entendimento jurídico (defensável e fundamentado) distinto do da autoridade que a emitiu.

IX- Conforme consta do douto despacho recorrido, tanto no âmbito do regime processual previsto no Código Processo Penal (artigos 187.º e 189.º), como na Lei do cibercrime, não existe qualquer prazo durante o qual as operadoras de telecomunicações são obrigadas a transmitir às autoridades Judiciárias, ou a conservar, dados que estejam na sua posse e se mostrem necessários à prova no âmbito de um processo de natureza criminal.

X- Relativamente à conservação de dados propriamente dita, existe apenas um prazo definido na Lei, ou seja, o previsto no artigo 6.º n.º 1, da Lei 32/2008, nada mais! XI- Existe, porém, um prazo de 6 meses para a prescrição do direito ao recebimento do preço do serviço prestado, por parte das operadoras de telecomunicações cfr. 10.º, n.º1, da Lei 23/96, de 26 de Junho (Lei dos serviços públicos) e uma proibição das operadoras tratarem dados, após o período durante o qual a factura pode ser legalmente contestada ou o pagamento reclamado (cfr. artigo 6.º, n.º3, da Lei 41/2004, de 18 de Agosto).

XII- Assim, existe uma lacuna relativamente ao prazo de conservação de dados no âmbito de investigações criminais, para além dos casos previsto na Lei 32/2008.

XIII- Ora, o magistrado do MP, fazendo uso da argumentação jurídica que consta dos autos, considerou que o prazo em questão seria de um ano, por aplicação analógica do artigo 6.º, n.º1, da Lei 32/2008.

XIV- Inversamente a Vodafone, considerou que tal prazo seria de 6 meses, por aplicação conjugada do artigo 6.º, n.º3, da Lei 41/2004 com o artigo 10.º, n.º 1, da Lei 23/96.

XV- Igual entendimento foi perfilhado pela Mª Juiz a quo.

XVI- Contudo, a discordância relativa à solução encontrada para a integração da lacuna, que in casu reconhecidamente se verifica, não pode servir de fundamento para considerar ilegítima uma ordem baseada em entendimento diverso, desde que a decisão em causa respeite as exigências de fundamentação impostas pelo artigo 97.º, n.º5, do C. P. penal, como sucede no caso concreto.

XVII- Pelo exposto, entendemos que o facto de se ter uma posição jurídica diferente relativamente a um caso omisso, por si só, não poderá significar que a posição contrária é ilegítima.

XVIII- Mais, as relações entre a Vodafone e o MP (no âmbito do exercício da acção penal) não se desenrolam ao mesmo nível, ou seja, o MP, no âmbito das suas atribuições, actua perante a Vodafone investido de autoridade, não podendo esta empresa recusar o cumprimento de uma ordem (fundamentada), proferida nesse âmbito, mediante a simples invocação de uma argumentação diversa, por mais defensável que ela seja.

XIX- A não ser assim, e tendo em conta a imensidão de interpretações jurídicas existentes relativamente às mais variadas matérias, apenas em casos muito contados (particamente inexistentes) conseguiria o MP (ou qualquer outra Autoridade) fazer cumprir as suas ordens, o que naturalmente colocaria em causa, não só a autoridade do MP, mas a própria autoridade do Estado.

XX- Pelo exposto, entendemos que in casu o que é ilegítima é a recusa da Vodafone e não a ordem do MP.

XXI- Porém, mesmo que assim não fosse, e no que à questão de fundo diz respeito (prazo de conservação de dados pelas operadoras de telecomunicações), estamos em crer que a solução por nós encontrada, é a mais consentânea com o sistema legal vigente.

XXII- Na verdade, como acima se disse (e também se infere do douto despacho recorrido), no que concerne ao prazo de conservação de dados, pelas operadoras de telecomunicações, necessários à repressão e investigação de infracções penais, apenas uma norma se pronuncia directamente sobre a matéria, ou seja, o artigo 6.º, da Lei 32/2008.

XXIII- Porém, relativamente aos demais crimes, embora a Lei 109/2009 (Lei do Cibercrime) e os artigos 187.º e 189.º do C. P. Penal, permitam a obtenção e a junção aos autos de um indeterminado número de dados, inexiste qualquer disposição legal que directamente estipule o prazo durante o qual podem ser obtidos, ou que as operadoras sejam obrigadas a conservá-los.

XXIV- A Vodafone e a Mª Juíz a quo socorrerem-se do prazo de prescrição do direito a receber o preço pelos serviços prestados por parte das operadoras (que é de 6 meses) para integrar tal lacuna. Ou seja, fora das situações previstas na Lei 32/2008, consideram que é de 6 meses o prazo durante o qual as autoridades judiciárias podem obter os referidos dados.

XXV- Para chegar a tal conclusão, como acima se disse, chamam ainda à colação o artigo 6.º, da Lei 41/2004, de 18 de Agosto (maxime o seu n.º3) o qual prescreve: XXVI- Assim, da conjugação do artigo 6.º, n.º3, deste artigo com o n.º 1.º do artigo 10.º, n.º1, da Lei 23/96, de 26 de Junho, resulta, na opinião da Vofdafone e da Mª Juíza a quo, que, para além da previsão da Lei 32/2008, as autoridades judiciárias apenas podem obter os dados a que se referem os artigos 187.º e 189.º do C. P. Penal e a lei 109/2009, durante 6 meses, mesmos que os dados pretendidos ainda se encontrem guardados em cumprimento do disposto no artigo 6.º, n.º1, da Lei 32/2008.

XXVII- Com o devido respeito por opinião contrária, tal entendimento não respeita, quanto a nós, os ditames da boa hermenêutica jurídica e viola o disposto artigo 4.º do C. P. Penal.

XXVIII- Segundo resulta do citado artigo 4.º, nos casos omissos, dever-se-á, em primeiro lugar, recorrer à analogia, em segundo lugar ao Processo Civil e por último aos princípios gerais do processo penal.

XXIX- Quanto a nós, no raciocínio jurídico efectuado pela Vodafone, tal artigo não é respeitado, na medida que para colmatar uma lacuna no âmbito do processo penal, pretendem aplicar uma combinação de normas completamente alheias às Leis e princípios processuais.

XXX- Pelo que, como não podia deixar de ser, tal combinação conduz a situações de conflito com outras normas processuais e dá origem a resultados legalmente inadmissíveis.

XXXI- Fazer depender o acesso a dados informáticos em poder das operadoras de um prazo de prescrição do direito ao recebimento do preço, para estabelecimento do qual não foram (nem deveriam ter sido) tidas em conta as especificidades da investigação criminal, nem as vicissitudes e necessidades do processo penal, parece-nos inadmissível sob o ponto de vista da realização da justiça e da descoberta da verdade material e, por conseguinte, atentatório do citado artigo 4.º, do C. P. Penal.

XXXII- Note-se, que o prazo referido é o mesmo que, por regra, os ofendidos dispõem para exercerem o seu direito de queixa, no caso dos crimes semi-públicos, pelo que, se o mesmos decidirem exercer tal direito no final do prazo e se se mostrar imprescindível para a investigação do crime obter dados informáticos em poder das operadoras, aceitando como bom o entendimento ora contestado, isso resultará na impossibilidade de investigar a prática de tal crime, e frustrar liminarmente pretensão punitiva do Estado.

XXXIII- Acresce que, se, por razões de política legislativa, que se predem com a necessidade de certeza e paz nas relações jurídicas (fundamentos normalmente apontados para o estabelecimento do prazo de prescrição em causa), o legislador decidir encurtar o prazo de prescrição do direito das operadoras a receberem o preço pelos serviços prestados, segundo o entendimento em crise, o prazo de conservação dos dados para efeitos da investigação criminal, ficará também cegamente afectado, mesmo que, por razões de política criminal, tal encurtamento seja manifestamente desaconselhado.

XXXIV- E se, pelas mesmas razões, o legislador decidir alargar tal prazo, por exemplo para dois anos, tal redundará em resultados completamente absurdos. Ou seja, para os crimes (graves) previstos na Lei 32/2008, o prazo será de um ano e a obtenção dos dados dependerá de um...

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