Acórdão nº 93/14.3GBRMZ.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 16 de Maio de 2017
Magistrado Responsável | MARTINS SIMÃO |
Data da Resolução | 16 de Maio de 2017 |
Emissor | Tribunal da Relação de Évora |
Acordam, em Conferência, os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I- Relatório Nos presentes autos de processo comum singular, com o número acima mencionado da Instância Local de Reguengos de Monsaraz – S. Comp.Gen. J1, da Comarca de Évora, a acusação foi julgada improcedente por não provada e, por consequência decidiu-se absolver o arguido N. da prática de um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo art.º 152.º, n.ºs 1, e nº 2) do Cód. Penal Inconformado o Ministério Público recorreu, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões: “1.
O Ministério Público acusou o arguido N da prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo disposto no artigo 152.º, n.º 1, a) e n.º 2, do Código Penal (em concurso aparente com os crimes de ofensa à integridade física qualificada, de ameaça e de injúria, previstos e punidos, respectivamente, pelo disposto nos artigos 143.º, n.º 1 e 145.º, n.º 1, a) e n.º 2, conjugado com o artigo 132.º, n.º 2, b), e nos artigos 153.º e 181.º, todos daquele Código).
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Do texto da motivação de facto da sentença recorrida não nos é possível descortinar com clareza as razões que levaram à decisão de falta de prova dos factos julgados como não provados, em particular o elemento subjectivo, necessariamente decorrente da factualidade julgada provada, atendendo às regras da lógica, da experiência comum e do normal acontecer.
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Assim, ao concluir pela não verificação dos factos considerados não provados, em particular pela inexistência do tipo subjectivo do crime em causa, sem explicitar as concretas razões da falta de prova, o tribunal recorrido incumpriu o dever de fundamentação, violando o disposto nos artigos 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal e 152.º, n.º 1, a) e n.º 2 do Código Penal, de acordo com o previsto no artigo 379.º, n.º 1, a) do Código de Processo Penal.
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Ao julgar provado que o arguido empurrou a ofendida, projectando-a contra a cama, e proferiu as expressões citadas nos pontos 4 a 6 e 9 da factualidade julgada provada e, na mesma decisão, considerar não provado que o mesmo arguido quisesse atingir o corpo ou a integridade física daquela, quisesse ofender a sua honra e consideração e quisesse provocar-lhe temor e intranquilidade, limitando a sua liberdade de autodeterminação, a sentença recorrida incorreu no vício de erro notório na apreciação da prova, nos termos previstos no artigo 410.º, nºs. 1 e 2, c) do Código de Processo Penal.
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Com efeito, ao desferir empurrão no corpo da ofendida – com a força e a intensidade necessárias para a projectar para a cama ali existente – e ao proferir expressões como “puta”, “vaca”, “vacarrona”, “marrã”, “acabo contigo” e “eu dou cabo da minha vida mas acabo com vocês primeiro juro”, resulta de modo claro e evidente, atendendo às regras da lógica, da experiência comum e do normal acontecer, que o arguido quis atingir o corpo e a integridade física da ofendida, quis ofender a sua honra e provocar-lhe temor, procurando limitar a sua liberdade de autodeterminação.
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Assim, em face da factualidade (objectiva) considerada provada, impõem as regras da experiência comum e do normal acontecer que se considere provado o elemento subjectivo do crime em causa.
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Pelo exposto, ao ter decidido do modo acima explicitado, a sentença recorrida violou de modo claro e evidente as regras da lógica e da experiência comum (violando, consequentemente, o disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal) e incorreu em vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410.º, nºs. 1 e 2, c), do Código de Processo Penal, devendo, por isso, ser revogada aquela decisão e ser substituída por outra que julgue também provado o elemento subjectivo do tipo de crime de violência doméstica, ou seja, que o arguido N previu e quis proferir as expressões constantes dos autos, e desferir empurrões em P. e, com estes actos, atingir o corpo, a saúde e o bem-estar físico da mesma, bem como humilhar, ofender a honra e consideração da mesma e atingir o seu bem-estar psíquico, provocar-lhe medo, terror e intranquilidade, e limitar a sua liberdade de autodeterminação, o que conseguiu e que bem sabia que era casado com P. e que a casa onde os factos ocorreram era a casa onde ambos habitavam, e que, ao praticar tais factos naquele local, lhe causava ainda maior temor e intranquilidade, resultado este que previu e com o qual se conformou.
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O tribunal recorrido considerou credível o depoimento da ofendida, porque natural, espontâneo, descomprometido e sem manifestos de ânsia persecutória.
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A ofendida prestou depoimento na sessão da audiência de discussão e julgamento de 25.11.2016, documentada em acta e gravado no sistema áudio media citius entre as 10h55m16s e as 11h28m48s, e explicou que a partir de 2011 o comportamento do arguido “começou a ser mais grave”, devido ao consumo excessivo de bebidas alcoólicas, sendo certo que tais declarações não são abaladas por nenhum outro elemento probatório considerado pelo tribunal recorrido.
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Deste modo, ao ter julgado como não provada aquela factualidade, a sentença recorrida padece de erro de julgamento devendo ser alterada e ser dado como provado que a partir do ano de 2011 e até ao termo da vivência em comum, o arguido consumiu bebidas alcoólicas de forma excessiva e com regularidade diária, tornando-se agressivo.
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Do mesmo depoimento, considerado como coerente, natural e espontâneo, pelo tribunal recorrido, resulta que em momento anterior ao empurrão considerado provado, o arguido dirigiu-se à ofendida e desferiu-lhe uma chapada na face, por esta lhe ter respondido, levantando a voz, e, noutra ocasião, desferiu um empurrão no peito e uma chapada numa das faces, tendo ficado com as faces vermelhas em ambas as situações (cfr. gravação da inquirição da ofendida, de 25.11.2016, das 10h55m16s às 11h28m48s).
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A credibilidade e a seriedade deste depoimento não são afastadas por nenhum outro elemento probatório.
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Razão pela qual, ao julgar aquela factualidade como não verificada, a sentença recorrida padece de erro de julgamento e deve, em conformidade, ser alterada e ser substituída por outra que julgue provado que em datas não concretamente apuradas, mas anteriores a Maio de 2013, no decurso de discussões entre o casal, o arguido desferiu chapada numa das faces de P, por esta lhe ter respondido em tom de voz alto, e, noutra ocasião, desferiu-lhe empurrão no peito e chapada numa das faces; e que como consequência directa e necessária da actuação do arguido, P. sofreu rubor facial.
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No que diz respeito aos factos julgados como não provados, indicados nos pontos H a J, respeitantes ao tipo subjectivo do crime em causa, atendendo à factualidade demonstrada nos autos, ao seu contexto e, bem assim, às declarações do arguido e da ofendida, valorados pelo tribunal recorrido, devem os mesmos ser julgados provados, uma vez que a prova do elemento subjectivo é sempre indirecta e deve ser extraída dos demais factos indiciados e das regras de experiência comum – os quais impunham, de modo claro e evidente, decisão contrária à proferida.
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Assim, ao decidir de modo diverso, julgando não provado o elemento subjectivo descrito na acusação, a sentença recorrida violou as regras da experiência comum, padecendo de erro de julgamento, pelo que deve ser alterada e ser substituída por outra que julgue provado o elemento subjectivo já acima descrito (cfr. ponto 7).
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Pelo exposto, ao julgar como não provados os factos descritos nos pontos A, D, F e H a J, o tribunal recorrido violou o disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal e no artigo 152.º, n.º 1, a) e n.º 2, do Código Penal, pelo que a decisão sobre a matéria de facto deve ser alterada nos termos acima exarados.
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O tribunal recorrido julgou provado que o arguido proferiu à ofendida expressões “ofensivas da honra da pessoa a quem se dirigem” (assim as classifica), ao longo da vivência comum e com regularidade, pelo que, atendendo ao contexto (sempre no interior da residência comum), à regularidade e reiteração com que foram proferidas, à natureza das expressões (“puta”, “vaca”, “vacarrona”, “marrã”, entre outras) e à qualidade do agente e da vítima, verifica-se ilicitude agravada de tal factualidade ofensiva da honra, sendo a mesma enquadrável na prática de crime de violência doméstica, quando conjugada com a demais factualidade.
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As demais expressões de cariz ameaçador serão sempre consideradas pelo homem médio, e de acordo com as regras da experiência comum e da normalidade, como idóneas a limitar a liberdade de actuação e de autodeterminação da ofendida – tanto assim é que a ofendida referiu expressamente ter esperado que o arguido saísse de casa para ir trabalhar para que abandonasse a residência comum em segurança, por ter medo do que o mesmo lhe pudesse fazer.
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Assim, também tais actuações são passíveis de integrar a prática de um crime de violência doméstica, conjugadas com a demais factualidade.
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Quanto às agressões físicas, a circunstância de inexistirem lesões ou sequelas de tais condutas não poderá significar que as mesmas não são penalmente relevantes e puníveis. Na verdade, a diminuída relevância e a pouca gravidade das suas consequências não afasta a dignidade penal, antes deverá ser tida em conta na medida concreta da pena.
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Ademais, o tribunal recorrido julgou provado que o arguido desferiu empurrão à ofendida projectando-a sobre a cama, porque a mesma “retirara dinheiro da escrivaninha do quarto”, motivo que não é socialmente adequado, que não desculpa nem exclui a ilicitude desta actuação – pelo contrário, agrava-a, sendo acto ofensivo da integridade física da cônjuge, movido por razões monetárias e de modo impulsivo.
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Deste modo, em face de tudo o que se deixa exposto, não restam dúvidas de que o arguido agiu sempre movido pela relação amorosa mantida com a ofendida, que lhe desferiu, por duas vezes, chapadas na face e empurrões – ofensas físicas estas penalmente relevantes –...
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