Acórdão nº 1303/17.0BELRA.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 07 de Maio de 2020

Magistrado ResponsávelFLORBELA MOREIRA LANÇA
Data da Resolução07 de Maio de 2020
EmissorTribunal da Relação de Évora

ACORDAM NA 1.ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA I.

Relatório M… intentou a presente acção contra o Estado Português, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, pedindo a condenação do R. no pagamento de uma indemnização no valor de € 500.000,00.

Para tanto alegou, em síntese, que foi vítima de um acidente de viação em 07.01.2010 que lhe causou lesões que a deixaram tetraplégica, causado por despiste da viatura conduzida por M M…, apesar de, no relatório intercalar elaborado pela GNR, constar que era a A. que conduzia o veículo.

Em 06.02.2010, a A. apresentou queixa-crime nos serviços do MP da comarca de Almeirim.

A A. requereu em 26.03.2010 exames hematológicos dos vestígios de sangue existentes no veículo, em especial no lugar do condutor, o que não foi possível, por o veículo ter sido destruído para sucata.

O Inquérito veio a ser encerrado, abstendo-se o Ministério Público de acusar em 21.10.2013, com fundamento na dúvida insanável sobre a identidade da pessoa que conduzia o veículo.

Inconformada com o despacho de arquivamento, a A. interpôs reclamação hierárquica em 15.12.2013, que foi indeferida em 26.09.2014, por se entender estarem esgotadas as diligências probatórias pertinentes.

Em 09.02.2015, a A. requereu a reabertura do Inquérito, com base na alteração do depoimento da testemunha J…, que circulava no veículo, que foi indeferido por despacho do Ministério Público de 18.02.2015, reiterado em 04.03.2015.

Não se conformando, a A. apresentou nova reclamação hierárquica em 07.03.2015, na sequência da qual foi reaberto o Inquérito e reinquirida a testemunha J….

Por despacho de 15.05.2015, o Ministério Público manteve o despacho de arquivamento.

A A. requereu em 27.05.2015 a abertura da instrução, com a reinquirição de testemunhas.

Por despacho de 06.10.2015, o juiz de instrução declarou aberta a instrução e agendou a reinquirição das testemunhas para 10.02.2016, tendo a MM… sido constituída arguida em 14.11.2015.

Em requerimento de 12.02.2016, a A. solicitou ao juiz de instrução a realização de perícia médico-legal das lesões sofridas pelas vítimas, destinada a apurar quem era a condutora do veículo no momento do acidente e solicitou também um relatório científico sobre a dinâmica do acidente, em ordem a esclarecer a probabilidade de ser a A. ou a MM… a condutora do veículo.

Porém, o juiz de instrução, em 10.03.2016, proferiu despacho suscitando a questão da eventual prescrição do crime imputado à arguida, a que a A. se pronunciou dizendo não estar verificada a prescrição.

Por despacho de 05.04.2016, o juiz de instrução declarou prescrito o procedimento criminal contra MM… e determinou o arquivamento dos autos.

A A. interpôs recurso em 11.04.2016 para o Tribunal da Relação de Évora, tendo sido proferido acórdão que negou provimento ao recurso e manteve o despacho recorrido.

Com esta decisão, a A. viu gorada a sua pretensão através do processo crime, o que só aconteceu porque o processo judicial demorou mais de cinco anos para constituir como arguida MM…, que veio a determinar a extinção do procedimento criminal por prescrição.

A demora judicial resultou do erro estratégico da investigação no inquérito sobre a pessoa que conduzia o veículo, ao não acautelar que o veículo não fosse destruído e pudesse ser objecto de perícia aos vestígios hematológicos do seu interior e de perícia relativa à dinâmica do acidente, que levariam à constituição de MM… como arguida muito antes do período de cinco anos.

A A. estima os prejuízos causados em € 500.000,00, que corresponderão à indemnização pela angústia, sofrimento físico e moral por ter ficado tetraplégica e incapaz de se sustentar.

O R., Estado Português, apresentou contestação, defendendo-se por excepção, invocando a incompetência material do tribunal, por não ser competente o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, e por impugnação, por não se encontrarem reunidos os requisitos da responsabilidade civil extracontratual do Estado, por mau funcionamento do serviço de justiça.

A A. veio responder à excepção, concluindo pela competência do tribunal.

Realizou-se a audiência prévia, como consta da respectiva acta (fls. 344-346), na qual o Il. Mandatário da A. prestou os esclarecimentos solicitados.

Foi proferida decisão pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, que se declarou materialmente incompetente para o conhecimento da causa, tendo tal decisão transitado em julgado, renunciando a A. ao recurso.

Remetidos os autos ao tribunal judicial competente, foi realizada audiência prévia.

Saneados os autos, foi definido o objecto do litígio e proferido despacho dando às partes oportunidade para se pronunciarem quanto à desnecessidade da realização de julgamento, por estarem os autos dotados de todos os elementos para apreciação do mérito da causa.

Apenas a A se pronunciou, mantendo o já alegado na petição inicial.

Foi, então, proferida sentença que, julgando a acção improcedente, absolveu o réu, Estado Português, do pedido contra si formulado.

A A. não se conformando com a sentença prolatada dela interpôs recurso, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões: “I.

A sentença recorrida absolveu do pedido, por motivo de se não ter provado erro de ofício que responsabilizasse os magistrados adstritos à direcção do Inquérito criminal e despacho da Instrução, por prática de ofensas à integridade física grave por negligência, que vitimaram M….

II.

Contudo, a causa de pedir mobilizada pela recorrente não foi a de uma “faute personnelle”, mas a de uma clara e indiscutível “faute de service”.

III.

Trata-se de uma modalidade de responsabilidade administrativa, cunhada na doutrina francesa, que se consolida no erro manifesto e prejudicial de um concreto mau funcionamento de uma entidade do Estado-aparelho.

IV.

Assim, para consagração da causa de pedir invocada pela recorrente bastar-lhe-ia e basta-lhe demonstrar que no “Serviço de Justiça”, vinculado à investigação criminal (por onde correu a discussão do caso), não foi cumprida a “leges artis”.

V.

Ora, do ponto de vista da criminalística, os materiais dos autos indicam não ter sido levada a cabo de imediato a apreensão do veículo sinistrado, vistoria, recolha de vestígios hematográficos (fotografados no tecto interior da viatura) e subsequente exame (grupo sanguíneo; ADN).

VI.

Não obstante estas diligências terem sido requeridas em tempo pela recorrente (mas sem despacho).

VII.

Levariam, em conexão de umas com as outras, à descoberta do posicionamento dos passageiros no automóvel despistado e, por isso, ao desfazer da ambiguidade acerca de quem conduzia o veículo.

VIII.

E tendo resultado do despiste as graves lesões físicas, psíquicas, patrimoniais e não patrimoniais, sofridas pela recorrente (tetraplégica e jovem mãe de dois infantes), a duração do feito, radicada na insegurança com que prosseguiram as averiguações, levou, por fim, à prescrição do procedimento criminal.

IX.

Deste modo, a recorrente viu frustrado o direito à tutela jurisdicional efectiva, no índice do arbitramento de uma justa indemnização dos prejuízos que sofreu, por via daquelas lesões que lhe ocorreram, causadas durante o acidente de viação dado.

X.

Ao não ter enfrentado a matéria dos autos na modalidade de pensamento jurídico-normativo que tem vindo a ser referida, a Mma. Juiza a quo infringiu os art.ºs 20.º/4/5 e 22.º da CRP, e art.ºs 1.º, 7.º/3 e 12.º da Lei n.º 67/2007, de 31/12, actualizada pela Lei n.º 31/2008, de 17/07.

XI.

E cometeu erro de julgamento da matéria assente, ao afastar, por inúteis à boa decisão da causa, os factos sobrantes alegados de 11 a 36, inclusive, da petição inicial, documentados no Proc. 53/10.3TAALR (Comarca de Santarém, Santarém- Inst. Central – Sec. Inst. Criminal-J2).

XII.

Por conseguinte, a sentença recorrida deve ser reformada, no sentido de estar assente a causa de pedir, devendo prosseguir a lide em Audiência de Discussão e Julgamento para debate e apuramento dos factos respeitantes à relevância, permanência e avaliação dos severos danos físicos e morais sofridos pela recorrente, durante e por causa do acidente de viação sub judice.

Vossas Excelências, com douto suprimento, farão, contudo, Justiça!” O apelado respondeu às alegações, pugnando pela confirmação da sentença apelada.

II.

Objecto do Recurso Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (art.º 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º e 663.º, n.º 2 do CPC).

São, pois, questões a decidir: - Insuficiência na fixação da matéria de facto; - Causa de pedir na presente acção; - (verificando-se a invocação de faute de (du) service como causa de pedir) Apreciação dos factos fixados à luz do conceito de “culpa de serviço” enquanto fundamento da responsabilidade civil extracontratual do apelado.

III.

Fundamentação 1.

De Facto Na sentença recorrida foram julgados provados os seguintes factos: 1.

No dia 07/01/2010 ocorreu um acidente de viação de que foi vítima a A, factos pelos quais foi aberto o Inquérito com o Procº nº 53/10.3TAALR, a que corresponde a participação de acidente de viação 03/10, de 07/01/2010, do Posto Territorial de Almeirim, do Comando Territorial de Santarém da GNR. (artº 1 da petição inicial) 2.

Pelas 02:15 desse dia, o veículo ligeiro de passageiros de matrícula 10-08-LM, pertença de MM…, despistou-se ao Km 2,400, Tapada de Almeirim, EN 368, no sentido de marcha Almeirim/Santarém, vindo a embater num talude da valeta da via e capotou. (artº 2 da petição inicial) 3.

A A. seguia no interior do veículo e, como consequência do despiste referido, contraiu lesões resultantes de traumatismo de natureza contundente (politraumatizada traumatismo vertebro medular com plegia dos membros inferiores e ausência de sensibilidade deles), lesões que lhe determinaram um período de doença de 317 dias, com afectação da...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT