Acórdão nº 1065/08.2TAFIG.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 20 de Maio de 2009

Magistrado ResponsávelJORGE GONÇALVES
Data da Resolução20 de Maio de 2009
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

I – Relatório 1.

No Inquérito n.º 1065/08.2TAFIG, o Ministério Público deduziu acusação contra R..., melhor identificado nos autos, imputando-lhe factos que considerou integrarem a autoria material, sob a forma consumada, de um crime de receptação p. e p. pelos artigos 14.º, n.º3 e 231.º, n.º1, do Código Penal.

Requerida a instrução pelo arguido, veio a ser proferido despacho de não pronúncia.

Desta decisão vem o Ministério Público interpor o presente recurso, formulando, na motivação, as seguintes conclusões (transcrição): 1. Ao despronunciar o arguido, sem pôr em causa os fortes indícios existentes nos autos, entendeu a decisão instrutória que estávamos perante factos não autonomizáveis, cobertos pelo princípio da consumpção do caso julgado.

2. Ao interpretar assim a realidade do processo, violou a decisão instrutória o dever de julgar e de realização da justiça, desde logo por se constituir numa violação da regra do art. 359.º, n. º 1, parte final, do Cód. Proc. Penal, onde se proíbe a extinção da instância.

3. A decisão instrutória impede a realização do julgamento de um arguido fortemente indiciado por crime de receptação ( cf. art. 231.º do Cód. Penal), ou seja, quer a sua condenação quer a sua absolvição, o que demonstra ser inapropriado falar-se aqui de factos não autonomizáveis, pois repita-se, este arguido nunca foi julgado neste ou no processo de onde foi extraída a certidão.

4. Termos em que se deve revogar a decisão instrutória, para que seja substituída por outra que aprecie, isso sim, os indícios em que se sustenta a acusação.

2.

O arguido respondeu, concluindo nos seguintes termos (transcrição): l.ª Os factos novos de que o arguido teria actuado não com negligência, mas com dolo eventual e surgidos no âmbito da audiência de discussão e julgamento do processo n. ° 136/06.4PBFIG, constituem, além de uma alteração não substancial dos factos constantes da acusação pública aí deduzida, nos termos da alínea f) do artigo 1.° do C.P. Penal, uma nova factualidade não autonomizável, face à constante da douta peça acusatória.

  1. ª Como constitui uma nova factualidade não autonomizável em relação ao objecto do processo e uma vez que a instância não pode ser extinta nem dela o Tribunal pode conhecer, por não ter havido o acordo constante do n.º 3 do artigo 359.° (na redacção pela Lei 48/2007, de 29 de Agosto), deixa a conduta indiciada e provada de ser punível no concreto processo em que surgiu, nem em processo autónomo instaurado para esse particular efeito.

  2. Os factos descritos na acusação normativamente entendidos, ou seja, em articulação com as normas consideradas infringidas pela conduta e também indicadas na peça acusatória, como na realidade aconteceu, definem e fixam o concreto objecto do processo, que, por outro lado, delimita os poderes de cognição do Tribunal.

  3. Assim, o objecto do processo deve manter-se o mesmo da acusação, ou da pronúncia se a houver, até ao trânsito em julgado da sentença, e deve ser conhecido e julgado na sua totalidade (unitária e indivisivelmente) e - mesmo quando o não tenha sido - deve considerar-se irrepetivelmente decidido. Além do que, a nova lei processual penal é absolutamente incompatível com a solução da privação do efeito consuntivo do caso julgado sobre os factos não autonomizáveis cujo conhecimento foi impedido por falta de acordo.

  4. Tudo isto é uma consequência do postulado dos princípios da estrutura acusatória do processo penal e da sua vinculação temática, do contraditório e do asseguramento das elementares garantias de defesa.

  5. A própria exposição de motivos da proposta de Lei n.º 109/X, elaborada pela Unidade de Missão, refere que: "[n]o âmbito da alteração substancial de factos, introduz-se a distinção entre factos novos autonomizáveis e não autonomizáveis, estipulando-se que só os primeiros originam a abertura de novo processo (artigo 359.°). Trata-se de um decorrência dos princípios non bis in idem e do acusatório, que impõem, no caso de factos novos não autonomizáveis, a continuação do processo sem alteração do respectivo objecto".

  6. A nova factualidade concretamente apurada em sede de audiência de discussão e julgamento no âmbito do processo n.º 136/06.4PBFIG, consubstanciadora de uma conduta dolosa do arguido R..., com a inerente agravação da responsabilidade criminal do mesmo, como não consta da acusação aí deduzida e como não houve o necessário acordo para a continuação do julgamento quanto à mesma, fica, assim, definitivamente excluída de perseguição penal.

    8.a Tendo presente que as primárias finalidades do nosso processo penal são, entre outras, a realização da justiça e a descoberta da verdade material e, por outro, a protecção dos direitos fundamentais das pessoas envolvidas, aquela só poderá ser almejada se tiver sido observada pelo uso de um meio/modo processualmente válido.

    9.° O Ministério Público ao acusar novamente o arguido - sendo os mesmos factos os referentes ao elemento objectivo e os novos respeitantes ao elemento subjectivo do crime que lhe é imputado, os quais, só por si, não são autonomizáveis, e surgidos aquando da audiência de discussão e julgamento do processo n.O 136/06.4PBFIG, consubstanciadores de uma alteração substancial dos factos descritos na acusação, e tendo sido, efectivamente, dados como provados na sentença aí proferida - agiu contra legem, violando, gritantemente, o disposto nos artigos 359.°, n.os 1 e 2 e 1.0, alínea f), ambos do C.P .Penal.

  7. A Lei 48/2007, de 29 de Agosto recusa a excepção inominada que determina que o processo possa ser remetido à fase de inquérito para que, bem melhor investigado, possa a nova acusação abranger o facto que surgiu da audiência de discussão e julgamento, e quanto ao qual não houve o inerente acordo para que o julgamento prosseguisse com vista à sua apreciação pelo Tribunal, 11.ª Assim, a nova lei é incompatível com a solução do efeito consuntivo do caso julgado sobre os factos não autonomizáveis cujo conhecimento foi obstado pela falta de acordo.

  8. O Ministério Público ao interpretar os artigos 359.°, n.º 1 e 2 e 1.°, alínea f), ambos do C.P. Penal, no sentido de que os mesmos factos constantes da anterior acusação e os factos novos não autonomizáveis (dados como provados na sentença proferida no âmbito do processo n.º 136/06.4PBFIG) podem ser objecto de perseguição criminal em processo de inquérito ex novo, como aconteceu no processo in casu, viola os princípios do ne bis in idem e do acusatório, ambos com assento na nossa Constituição, respectivamente, no n.º 5 do artigo 25.° e n.º 5 do artigo 32.°, ambos da C.RP ..

  9. Face ao exposto, a decisão da Meritíssima Dra.ª Juiz a quo de não pronunciar o arguido R... é inteiramente conforme a lei em vigor, não merecendo, consequentemente, qualquer reparo.

    Termos em que deverá ser negado provimento ao recurso interposto pelo Digno Magistrado do Ministério Púbico, julgando, consequentemente, os Venerandos Senhores Juízes Desembargadores do Alto Tribunal da Relação de Coimbra: a) Inconstitucional, por violação dos princípios do ne bis in idem e do acusatório, respectivamente, consagrados no n.º 5 do artigo 25.° e n.º 5 do artigo 32.°, ambos da C.R.P., a norma que o Ministério Público retira da interpretação que faz dos artigos 359.°, n.º 1 e 2 e 1.º, alínea f), ambos do C.P. Penal (na redacção dada pela Lei 48/2007, de 29.8), no sentido de que os mesmos factos constantes da anterior acusação e os factos novos não autonomizáveis (dados como provados na sentença proferida no âmbito do processo n. ° 136/06.4PBFIG) podem ser objecto de perseguição criminal em processo de inquérito ex novo, como aconteceu no presente processo; b) a douta decisão da Meritíssima Dr.ª Juiz a quo de não pronunciar o arguido inteiramente conforme a lei processual penal em vigor, não merecendo, consequentemente, qualquer reparo, fazendo assim a sã e recta JUSTIÇA! 3.

    Admitido o recurso, os autos subiram a esta Relação, onde a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta apôs o seu visto. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º1, do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de C.P.P.), foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma.

    Cumpre agora apreciar e decidir.

    II – Fundamentação 1.

    Conforme jurisprudência constante e pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

    Assim, a questão essencial a decidir consiste em saber se, tendo o arguido sido absolvido da instância, por verificação de uma alteração dos factos tida como substancial, sendo tais factos não autonomizáveis e sem haver acordo para a continuação do julgamento pelos novos factos, é possível a dedução de nova acusação contra o mesmo arguido, no âmbito de novo inquérito, por tais factos.

    2. Apreciando 2.1. Elementos relevantes 1. O arguido R... foi acusado, no âmbito do processo n.º 136/06.4 PBFIG, pela prática de factos que o Ministério Público entendeu integrarem a autoria material e sob a forma consumada de um crime de receptação negligente p. e p. pelos artigos 15.º, al. a) e 3 231.º, n.º2, do Código Penal.

    Efectuado o julgamento, o arguido foi absolvido do crime imputado, por se entender que a conduta do arguido, sendo negligente, não era punível pela lei penal.

    Na base desta absolvição, esteve o entendimento de que o artigo 231.º, nos seus números 1 e 2, pune condutas dolosas.

    Atente-se que, imediatamente antes da leitura da sentença, o tribunal havia comunicado aos sujeitos processuais um novo facto, resultante da audiência de julgamento, pelo qual a conduta do arguido seria dolosa...

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