Acórdão nº 3/04.6TATCS de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 28 de Outubro de 2008
Magistrado Responsável | RIBEIRO MARTINS |
Data da Resolução | 28 de Outubro de 2008 |
Emissor | Court of Appeal of Coimbra (Portugal) |
I – 1- Nestes autos a sociedade «TH», LG e AG, foram pronunciados «nos termos e pelos factos constantes da acusação de fls. 215 a 230» (cfr. 1º vol.).
Recebido os autos em juízo, foram designadas datas para julgamento (fls. 452) e admitido o pedido de indemnização civil deduzido a fls 267 e 271 (cfr. fls. 456).
Na audiência de julgamento que teve lugar a 28/3/2008, os arguidos vieram juntar (cfr. fls. 508 a 531) certidão de sentença de 23/2/2005 proferida no processo comum n.º 11/03.4TATCS pela qual foram absolvidos do crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada. E com base nela vieram invocar a excepção do caso julgado relativamente aos factos por que foram pronunciados no processo 3/04.6TATCS.
Consequentemente, o tribunal deu por terminada a sessão de julgamento e concedeu aos restantes sujeitos (Ministério Público e Segurança Social) o prazo de 10 dias para se pronunciarem. Estes fizeram-no, alegando a inexistência do caso julgado, como se pode ler a fls. 531/539 e a fls. 559.
Lavrou, então, o M.mo Juiz despacho pelo qual afirmando a existência do caso julgado determinou a não sujeição dos arguidos a julgamento relativamente à totalidade da pronúncia (cfr. despacho de fls. 566 a 575).
É deste despacho que vem interposto recurso pelo Ministério Público e cujas conclusões são –
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Os arguidos vêm acusados da prática dum crime de abuso de confiança contra a Segurança Social previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 6°, 7°, n° 1 e n° 3, 9°, n° 2, 24°, n° 1, 27° – B, do RGIFNA; ou pelas disposições conjugadas dos artigos 6°, 7°, n° 1 e n° 3, 12°, n° 2 e n° 3, 105°, n° 1 e n° 4, 107°, do RGIT, conforme se mostrar concretamente mais favorável aos arguidos.
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As contribuições devidas à Segurança Social que estão em causa nos presentes autos, não entregues pelos arguidos e ainda em dívida reportam-se a períodos não totalmente coincidentes, assim como a remunerações de trabalhadores diferentes e membros dos órgãos sociais, das contribuições que já foram apreciadas e objecto de sentença transitada em julgado no processo n° 11/03.4 TATCS que correu termos neste Tribunal Judicial.
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A actividade de facto que está descrita na acusação proferida nestes autos nunca foi objecto de apreciação nem de decisão no âmbito de qualquer outro processo de natureza penal.
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Assim sendo, não poderá aquela sentença produzir efeitos de caso julgado em relação aos factos pelos quais os arguidos estão agora acusados, uma vez que são realidades diferentes.
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Sem prescindir, entendemos também que à partida, sem o apuramento dos factos e a sua prova em sede de audiência de discussão e julgamento, não é possível concluir que estamos perante o mesmo crime.
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Só após a realização do julgamento se poderá dispor de elementos que permitam obter a certeza jurídica, acerca da apreciação dos factos como idêntico "recorte de vida" julgado e apreciado.
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A circunstancia da factualidade destes autos poder estar em continuação criminosa com outros factos praticados pelos arguidos, factos estes já apreciados no âmbito de outro processo, não impede o procedimento criminal, isto porque sendo o delito continuado constituído por várias infracções parcelares a decisão que incidir sobre parte delas não produz efeito de caso julgado sobre as demais e não obsta ao procedimento das que forem descobertas depois.
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Desta forma, não poderá uma sentença produzir forca de caso julgado relativamente a outras infracções que sejam descobertas e processadas posteriormente, devendo restringir-se o âmbito de aplicação daquele princípio apenas a factos e infracções que tenham sido efectivamente julgados.
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O princípio «non bis in idem» produz efeitos só em relação aos factos julgados e o crime continuado tem tantos factos com autonomia própria quanto os delitos parcelares unidos pelo nexo de conexão.
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A decisão recorrida violou o disposto nos artigos 29°/5 da Constituição da Republica Portuguesa, 30°, n° 2, 79°, do Código Penal, assim como os artigos 6°, 7°, n° 1 e n° 3, 9°, n° 2, 24°, n° 1, 27°-B do RGIFNA e actualmente artigos 6°, 7°, n° 1 e n° 3, 12°, n° 2 e n° 3, 105°, n° 1 e n° 4, 107° do RGIT.
2- Não houve resposta.
O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer onde se manifesta pela procedência do recurso.
3- Colheram-se os vistos. Cumpre apreciar e decidir! II – 1- Na parte que interessa é do seguinte teor o despacho recorrido – (…) O CPP apenas se refere pontualmente ao caso julgado (cfr., v.g. artigos 84º e 467º, n.º 1), não regulando de forma sistemática esta excepção (…) Apesar disso, não se levantam dúvidas sobre a aplicação deste instituto nesta jurisdição, desde logo por aplicação do princípio ne bis in idem, consagrado no artigo 29º, n.º 5 da CRP.
In casu, a questão a decidir consiste no apuramento do chamado “efeito consuntivo” do caso julgado.
E, a este propósito, socorremo-nos do que foi recentemente decidido, por unanimidade, pelo STJ (Ac. de 15/03/2006, www.dgsi.pt), onde se pode ler que: «O Código de Processo Penal de 1987, ao contrário do que sucedia com o Código de Processo Penal pré-vigente, não regula de forma expressa ou implícita o instituto jurídico do caso julgado ou da exceptio judicati, sendo certo que só em duas disposições se refere àquele instituto, designadamente no artigo 84º, ao estatuir que a decisão penal, ainda que absolutória, que conhece do pedido cível constitui caso julgado nos termos em que a lei atribui eficácia de caso julgado às sentenças civis, e no artigo 467º, n.º 1, ao estabelecer que as decisões penais condenatórias, uma vez transitadas, têm força executiva.
É evidente que a circunstância de a lei adjectiva penal vigente não regular o caso julgado não significa que o processo penal prescinde daquele instituto, consabido que nesta concreta área do Direito se sente com muito maior intensidade e acuidade a necessidade de protecção do cidadão contra situações decorrentes da violação do caso julgado, instituto que também encontra fundamento num postulado axiológico, qual seja o da justiça da decisão do caso concreto, para além de outros, com destaque para a garantia da segurança e da paz jurídicas.
Aliás, a nossa Constituição Política consagra de forma irrefutável o caso julgado penal, ao dispor no seu artigo 29º, n.º 5, que: «Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo crime».
A lei fundamental ao referir-se ao duplo julgamento e ao mesmo crime carece, contudo, de interpretação, a qual, conforme referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, deverá ter em especial atenção que os preceitos constitucionais não podem ser considerados isoladamente e interpretados a partir de si próprios, devendo assim considerar-se as conexões de sentido que se estabelecem entre os seus preceitos, bem como a “arquitectura sistemática” de cada divisão da Constituição. Por outro lado, certo é também que a tarefa interpretativa dos preceitos constitucionais não prescinde igualmente de uma visão global dos ramos de direito em que se projectam, e que ao fim e ao cabo pretendem nortear.
Quanto à expressão “julgado mais do que uma vez”, atenta a situação concreta dos autos em que o que está em causa são dois julgamentos e respectivas sentenças, a mesma não suscita nem impõe labor interpretativo. Refira-se, em todo o caso, que a lei fundamental ao aludir ao duplo julgamento não pode ser entendida no seu estrito sentido técnico-jurídico, tendo antes de ser interpretada num sentido mais amplo, de forma a abranger, não só a fase processual “rainha”, isto é, o julgamento, mas também outras situações análogas ou de valor equivalente, designadamente aquelas em que num processo é proferida decisão final, sem que, todavia, tenha havido lugar àquele conhecido ritualismo.
É o que sucede com a declaração judicial de extinção da responsabilidade criminal por amnistia, por prescrição do procedimento ou por desistência de queixa, situações em que, obviamente, o respectivo beneficiário não pode ser perseguido criminalmente pelo crime ou crimes objecto da respectiva...
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