Acórdão nº 2038/09.3TACBR.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 28 de Março de 2012

Magistrado ResponsávelBRÍZIDA MARTINS
Data da Resolução28 de Março de 2012
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

I – Relatório.

1.1. O arguido A...

, entretanto já melhor identificado, foi submetido a julgamento sob a aludida forma de processo comum singular, porquanto acusado pelo Ministério Público, no uso da faculdade concedida pelo art.º 16.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, da crime de abuso de confiança, na forma continuada, p. e p. através das disposições conjugadas dos art.ºs 30.º, n.º 2 e 205.º, n.º 1, ambos do Código Penal, em concurso real de infracções, com a prática de um crime de falsificação de documento, igualmente sob a forma continuada, p. e p. pelos art.ºs 30.º, n.º 2; 79.º e 256.º, n.º 1, alínea c), todos ainda daquele diploma.

U... – ., Lda., também com os sinais dos autos, deduziu pedido de indemnização cível contra o arguido, concluindo pela procedência respectiva e decorrente condenação do demandado a pagar-lhe a quantia de € 5.648,39, acrescida dos juros desde a data dessa dedução e até seu integral pagamento à demandante.

Realizado o contraditório Em cujo decurso foi dado cumprimento ao disposto pelo art.º 358.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Penal, ut despacho exarado em acta a fls. 163.

, mostra-se proferida sentença por cujo intermédio, e ao ora relevante, se determinou: - Condenar o arguido pela autoria dos dois ilícitos mencionados [embora o segundo agora através das disposições conjugadas dos art.ºs 30.º, n.º 2; 79.º e 256.º, n.º 1, alíneas a), b), d) e e)], nas penas parcelares de duzentos e cinquenta (250) dias de multa, e, de cento e setenta (170) dias de multa, todos à razão de oito euros (€ 8,00) dia, e a que, em cúmulo jurídico logo operado, se fez corresponder a pena única de trezentos e cinquenta (350) dias de multa, à dita razão de oito euros (€ 8,00) dia, ou seja, no total de dois mil e oitocentos euros (€ 2.800,00).

- Julgar parcialmente procedente o pedido cível e condenar consequentemente o demandado a solver à demandante a quantia de mil, seiscentos e vinte e seis euros, noventa e três cêntimos (€ 1.626,93), acrescida de juros de mora, à taxa anual de 4%, desde a data da sua notificação para o contestar, até integral pagamento.

1.2. O arguido/demandado, desavindo, interpõe recurso, extraindo da motivação com que minutou tal discordância, a seguinte ordem de conclusões: 1. Impugnam-se especificadamente os factos dados como provados nos itens n.ºs 3, 4, 6 e 7 da decisão recorrida.

  1. O Tribunal a quo, como resulta da respectiva motivação, fundamentou a prova respectiva, além do mais, nos depoimentos de ... e do representante legal da X..., Lda., bem como na prova documental, mormente de fls. 15 e 20.

  2. O crime de falsificação pune não a falsificação do documento enquanto objecto que incorpora uma declaração, mas a falsificação de uma declaração stricto sensu, estando em causa pois a falsificação das declarações que os recibos de fls. 15 e 20 pretendem respaldar.

  3. O documento de fls. 20 não consubstancia sequer uma declaração, porquanto não está assinado, e desconhece-se se de original ou de fotocópia se trata.

  4. Já quanto ao de fls. 15, bastou-se o tribunal, sem levar a cabo uma perícia científica à letra desse documento, com a prova testemunhal de que ele fora assinado e entregue pelo arguido, quando na realidade tal documento, que deveria documentar uma declaração, não é mais que mera fotocópia, jamais confrontada com o original (que se desconhece).

  5. A punibilidade pela falsificação protege a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório, que uma mera fotocópia não belisca, pelo que não é prova bastante.

  6. E mesmo que concatenada com as declarações das testemunhas acima indicadas, certo é que as mesmas assumem que já pagaram a dívida (que todavia ainda devem), e são estes os principais interessados na junção de um documento comprovativo, original, de quitação, que eles próprios jamais juntaram. Aliás, são os verdadeiros ofendidos.

  7. Sendo estes os únicos motivos em que a sentença assenta que fora o arguido quem lhes entregou tais recibos, bem se vê a perigosidade do raciocínio, que só poderia ser afastada por tal prova pericial, não realizada.

  8. Por outro lado, dá o Tribunal a quo como motivação para o crime a ausência de dinheiro por parte do arguido, e ao mesmo tempo, ao fundamentar o crime continuado, afirma que ele adoptou um modus operandi idêntico pelo êxito, facilidade e impunidade.

  9. Do testemunho da sua companheira, ..., resulta, porém, ao contrário do que conclui o dito Tribunal, que o arguido saiu da empresa porque andava a pagar para trabalhar, o que não parece, à saciedade, lógico.

  10. Parece mais de acordo com as regras da experiência comum que com tal impunidade o arguido insistisse em tais condutas, mantendo-se ao serviço da empresa, ao invés de conscientemente abandonar um serviço que só lhe trazia prejuízo. Justamente porque se se houvesse apoderado de tais quantias (cerca de € 4.500,00) não teria, como teve, problemas de liquidez.

  11. Verifica-se, assim, quanto a tais factos, quer o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto dada por provada (i.é., o Tribunal a quo deixou de investigar, podendo-o fazer, toda a matéria de facto que se encontrava ao seu alcance, mormente quanto a buscar os originais), quer o de erro notório na apreciação da prova (i. é., lançou mão de uma conclusão ilógica, irracional, violadora da experiência comum), por neste último caso (ou seja, na ausência de outra prova testemunhal que houvesse lidado directamente com o arguido) se haver violado o princípio do in dúbio pro reo, e cuja preterição, e só ela, permitiu dar como provados os factos elencados supra.

  12. A ofendida dos autos (U..., , Lda.) em boa verdade não o é, pelo que era parte ilegítima para deduzir a competente queixa-crime pelo crime de abuso de confiança perpetrado pelo arguido.

  13. Este crime protege a propriedade e os titulares de um direito real sobre a coisa que, literalmente, entregam ao abusador, sendo vítimas de uma inversão do título de posse por parte deste. Esta opera-se por oposição do abusador ao possuidor em nome próprio, que não era a aqui ofendida.

  14. São os devedores, ... e X..., Lda., os verdadeiros ofendidos; esses sim, possuidores/proprietários, é que confiaram as suas quantias ao arguido com o propósito de este as vir a entregar aos credores que haviam contratado a empresa cobradora. Esta última tinha apenas um direito a uma comissão contratada sobre tais quantias, isto é, a um direito de crédito, pelo que não era possuidora, nem sequer em nome alheio.

  15. Tais devedores, sabedores de que às quantias que haviam entregue ao arguido não havia sido dado o destino por eles pretendido, não reagiram criminalmente em tempo contra o arguido, apesar de serem eles os titulares do bem jurídico protegido por tal norma.

  16. Sendo este um mero prestador de serviços, eram estes devedores quem devia pedir responsabilidade ao arguido quanto ao destino do dinheiro, sob pena de, mesmo tendo-lhe entregue o dinheiro, continuarem a dever (os credores não chegaram a receber e são-lhes indiferente todas as relações de permeio). E não o fizeram.

  17. Carecia pois o Ministério Público de legitimidade para o exercício da acção penal.

  18. Tal legitimidade, por se considerar que a U... tinha um direito de crédito e nada mais, tem repercussões no PIC.

  19. A causa de pedir da demandante lesada (em 35 %) nos presentes autos é o facto ilícito “abuso”, quando na realidade existe apenas uma violação da obrigação contratual derivada da prestação de serviços: a de entregar as quantias à sociedade empregadora. E tal petitório por incumprimento contratual é de sede civil, defeso em processo penal (art.º 71.º, do Código de Processo Penal).

  20. Ainda que tenha sido feita prova que U... tinha apenas direito a 35 % sobre os valores cobrados (ponto 11), certo é que a sentença recorrida motiva a medida da pena por referência aos valores de 100 % (os dados por provados em 3).

  21. Contradiz-se pois o Tribunal a quo, de forma insanável, quando dá por provado o ponto 11, dá também por provado o ponto 6 [que o arguido ao fazer seu o dinheiro, actuava contra a vontade da sua legítima proprietária (a U...)], mas, contraditoriamente dá por não provado, o que aceita o recorrente, o ponto 12 [que as quantias apropriadas pertenciam à mesma U...].

  22. Por hipótese, a não proceder a arguição de ilegitimidade, i. é., mesmo que se considere que a U... é proprietária dos 35 %, teria então o arguido de ser punido por referência circunscrita a tal percentagem, e não à totalidade.

  23. Diminuição de valor que seria bastante para esmorecer o grau de ilicitude para patamares não tão significativos e, consequentemente, baixar a medida da pena que lhe foi aplicada.

  24. Também não podia o Tribunal valorizar, como o fez, para determinação da medida da pena, as condenações do arguido que, à data da prática dos factos destes autos (Maio e Agosto de 2008), não haviam ainda sido objecto de trânsito em julgado; não podia, mais concretamente, levar em consideração os factos praticados pelo arguido em 2004, cujo trânsito apenas ocorreu em Setembro de 2008.

  25. O juízo de culpa é sempre um juízo de desvalor sobre o agente em razão do seu comportamento num certo momento, i. é., à data da prática dos factos ora em análise. E tais “antecedentes” ainda não constavam, nem podiam constar, do CRC do arguido, devendo o tribunal situar-se, ao proferir a condenação, na posição em que estaria caso os julgasse imediatamente.

  26. Tais considerandos de antecedentes (que formalmente o não eram) deveriam ter sido relegados apenas para sede de medida da pena por concurso de crimes, sob pena de se fazer um juízo duplicado de culpa e assim se aumentarem os limites mínimos e máximos de tal pena.

  27. O crime de falsificação e de abuso de confiança dos autos estão numa relação de consumpção, uma vez que a inversão do título de posse se dá com a falsificação, e com ambos se procura o mesmo e único benefício ilegítimo.

  28. Decidindo pela forma em que o fez, a decisão recorrida violou o disposto nos art.ºs 49.º; 71.º 127.º e 164.º, do...

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