Acórdão nº 5868/19.4T8CBR-A.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 28 de Janeiro de 2020
Magistrado Responsável | MARIA CATARINA GONÇALVES |
Data da Resolução | 28 de Janeiro de 2020 |
Emissor | Court of Appeal of Coimbra (Portugal) |
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra: I.
C (…), residente (…) (...), veio instaurar acção, ao abrigo do disposto no art.1055º conjugado com os arts. 362º e ss. do Código do Processo Civil, contra L (…), residente (…) (...), pedindo que seja decretada a destituição do Requerido do cargo de gerente da sociedade por quotas S (…)Ld.ª e que, sem a sua audiência prévia, seja decretada, a titulo antecipatório e com natureza urgente e cautelar, a suspensão imediata dessas funções.
Alegou, em resumo: que o Requerente e o Requerido são os únicos sócios e gerentes da sociedade identificada; que, pretendendo vender a sua quota e não tendo chegado a acordo com o Requerente no que toca ao preço a pagar, o Requerido descurou por completo a gestão da empresa e negligenciou os seus deveres de gerente, passando a praticar actos de forma unilateral e sem qualquer concertação de gerência e recusando a sua assinatura na formalização de projectos de financiamento no âmbito dos Fundos Europeus que a empresa havia desenvolvido e para os quais já havia obtido a respectiva aprovação com recurso a garantias prestadas por terceiros; que tais projectos são vitais para o bom funcionamento da empresa e acabaram por ser suspensos em virtude de o Requerido ter recusado a sua assinatura; que uma parte desse financiamento (34.312,20€) era necessário para pagamento de maquinaria que já havia sido adquirida e por falta desse pagamento a fornecedora recusa-se a prestar a necessária manutenção; que está para breve a abertura de um concurso público para adjudicação de determinadas obras ao qual a empresa tem interesse em candidatar-se e que representa uma facturação na ordem de 30.000,00€, antevendo-se a impossibilidade de obter essa adjudicação por falta de colaboração do Requerido; que a atitude do Requerido coloca a empresa em risco, temendo o Requerente que o Requerido mantenha a sua postura e crie mais prejuízos para a empresa, tornando-se inviável que a gerência continue a ser exercida em conjunto pelo Requerente e pelo Requerido.
No sentido de justificar a dispensa de audiência prévia do Requerido, alega que, nos termos da lei, a decisão deve ser proferida imediatamente e que a audiência prévia do Requerido pode vir a determinar um agravamento dos danos dada a circunstância de o mesmo continuar com acesso ao email da empresa, à conta bancária e cartões bancários e de manter em seu poder um veículo da empresa que desde sempre lhe esteve confiado.
Por despacho proferido em 28/10/2019 e com vista à decisão do incidente de suspensão cautelar de órgão social, designou-se data para a inquirição das testemunhas arroladas, dispensando-se a audiência do Requerido com a seguinte fundamentação: “O requerente alegou factos dos quais decorre que a prévia audição do requerido poderá impedir a sociedade de concorrer a concurso público a que se pretende candidatar em breve, e implicar ainda a perda definitiva dos projetos desenvolvidos durante os últimos dois anos, bem como de outros concursos ou ajustes diretos que possam surgir. Estando invocados factos que demonstram a existência de um risco sério para o fim ou eficácia da suspensão, e visto o disposto no art. 366.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, haverá que dispensar a audiência do requerido”.
Produzida a prova apresentada pelo Requerente, foi proferida decisão que determinou a suspensão imediata das funções do Requerido L (…) de gerente da sociedade S (…), Ld.ª, prosseguindo os autos pata apreciação do pedido de destituição.
Notificado dessa decisão, o Requerido veio interpor recurso formulando as seguintes conclusões: 1ª - O despacho sentença contra o qual o recorrente aqui se insurge, tendo em vista a sua revogação, desconsiderou indevidamente a sua audição, ao abrigo do princípio do contraditório, pelo que está ferido de nulidade, nos termos do disposto no art.º 195.º, n.º 1 do Código de Processo Civil; 2ª - Por outro lado, o despacho posto em crise, revela-se extremamente formalista, ao ponto de com isso afastar meios de prova que manifestamente lhe permitiriam alcançar a justa composição do litígio e assim prosseguir devidamente o interesse público subjacente à (boa) administração da justiça; 3ª - O tribunal a quo entrou, pois, em contradição na sua linha de raciocínio, tomando uma verdadeira decisão surpresa; 4ª - O tribunal a quo não respeitou, pois, o princípio do inquisitório, consagrado no art.º 411.º do CPC, segundo o qual “Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio”; 5ª - Com efeito, por força de tal princípio os meios de prova previstos na lei não são meros poderes discricionários ou arbitrários, mas antes poderes-deveres, que só poderão deixar de ser exercidos no caso de se mostrarem de todo desnecessários ou inúteis para a descoberta da verdade e, como vimos, neste caso não era de todo possível inferir isso (v., nesse sentido, o Ac. do TRP de 26-11-2013, P. 309/07.2TBLMG.P1 – RODRIGUES PIRES e NUNO LEMOS JORGE, Os poderes instrutórios do juiz: alguns problemas, Julgar, n.º 3, Set./Dez. 2007, Coimbra Editora, p. 65). Aliás, o art.º 466.º do CPC, sendo uma norma fechada, nem deixava ao juiz qualquer margem para tal juízo conducente à rejeição; 6ª - Ora, não compreendemos como é que num processo que, embora num primeiro momento se assuma como um procedimento cautelar, que recai sobre uma micro empresa, com apenas dois sócios, com sede em (...), não pudesse o Tribunal, com as facilidades que a era moderna proporciona, ter ouvido o ora recorrente e coligido meios de prova que, estamos em crer, infirmariam – com elevada dose de segurança – a posição muito parcial trazida aos autos pelo requerente; 7ª - Neste mesmo sentido, importa atentar no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 392-A/95 de 12 de dezembro que reformou o Código de Processo Civil de 1961, em que o legislador afirmou que o objetivo da introdução do preceito foi realizar uma adequação entre o Código de Processo Civil e o Código das Sociedades Comerciais; 8ª - Foi, assim, criado um processo de jurisdição voluntária onde o legislador regulou o direito dos sócios a pedir a destituição dos titulares dos órgãos sociais; 9ª - Ao mesmo tempo e em paralelo, dado que o pedido de destituição deixou de seguir o processo comum, veio possibilitar que, no âmbito do processo de jurisdição voluntária, o Tribunal decretasse, através de uma “resolução”, a suspensão do membro de um órgão social, em relação ao qual era dirigido o pedido de destituição; 10ª - Esta solução (possibilidade de ser tomada a “resolução” de suspensão) visou substituir a providência cautelar não especificada a que o autor da ação poderia recorrer, sempre que se verificassem os pressupostos para a mesma, como antecipatória destinada a assegurar a efetividade do direito que era exercido na ação de destituição; 11ª - O art.º 1055.º do atual Código de Processo Civil reproduz “ipsis verbis” o art.º 1484.º-B do Código de Processo Civil de 1961, na redação dada pela reforma operada pelo Decreto-Lei n.º 392-A/95, de 12 de dezembro; 12ª - Assim, o intérprete e aplicador da norma tem de atentar nas orientações e indicações dadas pelo legislador e que se elencam nas presentes alegações; 13ª - O legislador, pelas razões acabadas de explicitar, quis vincar que a intervenção judicial nas sociedades se deve revestir de um especial cuidado, de modo a evitar decisões surpresa que, pela falta de recolha da informação necessária e indispensável à decisão, possam prejudicar a sociedade e em particular a empresa que a primeira constitui a estrutura jurídica; 14ª - E isto porque o interesse da sociedade não é exclusivo dos seus sócios, mas de todas as demais pessoas singulares e coletivas, fornecedores, parceiros financeiros, Estado e a comunidade em geral, a quem a preservação da mesma assegura emprego, criação de riqueza para o país e receitas para o Estado; 15ª - Por conseguinte, o despacho sob recurso enferma de uma violação aos princípios da igualdade e do contraditório pleno, por não ter permitido, que as partes pudessem gozar das mesmas faculdades em ordem à descoberta da verdade, ainda que e de forma necessariamente indiciária, tendo em conta que se trata de um procedimento cautelar de suspensão de gerente (v. artºs. 4.º e 7.º do CPC); 16ª - Acrescente-se ainda que a contradição em que o tribunal a quo incorre é tanto mais grave porquanto chega a fazer uma interpretação da lei que nem sequer tem qualquer acolhimento na sua letra e, assim, com base numa interpretação inadmissível, acaba por ser mais restritivo do que a própria lei – vide MIGUEL MESQUITA, A flexibilização do princípio do pedido à luz do moderno CPC, RLJ, ano 143.º, N.º 3983, Nov.-Dez. 2013, Coimbra Editora, pp. 141 e 145); 17ª - É que resulta manifesto para todos quantos lerem a decisão proferida pelo tribunal a quo, que o mesmo não ficou devidamente convencido daquilo que o requerente alega no seu articulado ou, certamente, não faria o seguinte reparo na decisão: “Contudo, a nosso ver, esta violação do dever de cuidado não assume gravidade suficiente para tornar impossível, ou inexigível, a manutenção da relação de gerente. Desde logo, porque é resultado evidente do desentendimento entre os sócios e gerentes, podendo ter explicação razoável que a ausência de contraditório não permitiu esclarecer. Por outro, e sobretudo, porque não existem indícios de que tenha...
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