Acórdão nº 15/07.8IDGRD.C2 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 28 de Abril de 2010

Magistrado ResponsávelALBERTO MIRA
Data da Resolução28 de Abril de 2010
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)
  1. Relatório: 1.

No Tribunal Judicial da Guarda, foi submetido a julgamento o arguido P...

, residente em Manteigas, sob imputação, na acusação pública a fls. 352/357, da prática, em autoria material, na forma continuada, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos artigos 105.º, n.ºs 1, 2 e 4, do RGIT - Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela lei n.º 15/2001, de 05-06, e 30.º, n.º 2, do Código Penal.

* 2.

Após julgamento, por sentença de 3 de Março de 2009, o arguido foi condenado, pela prática do imputado crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos, sujeita à condição de pagamento das quantias em dívida, pelo arguido, no prazo de 1 ano e 6 meses. * 3.

Inconformado com a decisão, o arguido interpôs recurso da sentença.

* 4.

Por acórdão de 07-05-2009 (fls. 473/479), o Tribunal da Relação de Coimbra declarou a nulidade da sentença, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 379.º, do Código de Processo Penal, e, simultaneamente, teve por verificado o vício de contradição insanável da fundamentação, determinando, em consequência, o reenvio parcial do processo para novo julgamento, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 426.º do citado diploma.

* 5.

Após a realização de novo julgamento, em sentença de 22 de Janeiro de 2010, o tribunal de 1.ª instância condenou o arguido P... pela prática, em autoria material e nas formas consumada e continuada, do referido crime de abuso de confiança fiscal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por idêntico período de 1 (um) ano e 6 (seis) meses, subordinada ao pagamento, por parte do arguido à administração fiscal, no prazo de 5 (cinco) anos, das prestações tributárias retidas que foram dadas como provadas na sentença, sob a alínea D), e seus acréscimos legais, embora apenas quanto ao IVA relativo a todo o ano de 2004, a todo o ano de 2005, excepto o período de Dezembro, e a Junho de 2006.

* 6.

Ainda não conformado, o arguido recorreu da sentença, tendo formulado na respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões: 1.ª – A testemunha R... nunca referiu no seu depoimento, que se encontra gravado, conforme consta da acta de audiência de julgamento de 12.01.2010, através do sistema integrado de gravação disponível na aplicação informática em uso no tribunal, com início às 10:06:14 e termo às 10:26:18, que o arguido tivesse feito as importâncias em discussão nos autos coisa sua, que despendeu na sua actividade industrial, e que tivesse optado por utilizar tais meios líquidos gerados em seu proveito próprio, obtendo desse modo vantagens patrimoniais indevidas, até porque tais questões não lhe foram colocadas, razão pela qual devem dar-se como não provados, nessa parte, os factos das alíneas C), D), H) e M), absolvendo-se, consequentemente, o arguido por falta de demonstração do elemento objectivo do tipo traduzido na apropriação da prestação tributária.

  1. - Resulta, ainda, do depoimento de tal testemunha que a “acção inspectiva decorreu no ano de 2007 e envolveu os exercícios anteriores de 2004/2005/2006” e que em “Outubro de 2007 é a data da conclusão da acção inspectiva”, factos que, por terem sido objecto de prova, devem ser dados como provados, nos termos do disposto no art. 124.°, n.° 1, do Código de Processo Penal, uma vez que se trata de factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime e a punibilidade ou não punibilidade do arguido.

  2. - Por despacho do Exmo. Sr. Director de Finanças, de 26.12.2007, foi determinado a instauração do competente inquérito, o que foi feito com base na informação anexa de 23.11.2007, onde se dava conta da existência de factos que indiciavam a prática do crime de abuso de confiança, informação esta elaborada tendo em consideração o auto de notícia de 04.10.2007, instauração de inquérito que viria a ser comunicada aos serviços do Ministério Público em 30.11.2007 - Cfr., respectivamente, fls. 4, 5 e 2.

  3. - O poder de dispor material e juridicamente da investigação pertence ao MP, actuando os órgãos de polícia criminal, como é o caso dos órgãos tributários, sob a sua directa orientação e na sua disponibilidade funcional - arts. 56.° e 263.° do C.P.P. -, cabendo, assim, ao MP, designadamente, realizar diligências de prova no inquérito e ordenar a junção de documentos necessários para os fins do inquérito, bem como validar a junção de documentos efectuada pelos órgãos de polícia criminal, já que, em regra, os documentos devem ser juntos no inquérito ou na instrução - art. 165.°, n.° l, do C.P.P.

  4. - Ora, no caso concreto, após a determinação da instauração do inquérito, procedeu-se apenas, no decurso do mesmo, à constituição de arguido - Cfr. fls. 212 -, tendo, posteriormente, sido proferido despacho que ordenou a devolução dos “(...) autos à Direcção de Finanças da Guarda/Núcleo de Investigação Criminal, para continuação da actividade de investigação e elaboração de relatório final” - Cfr. fls. 214 - o negrito e sublinhado é nosso -, encontrando-se, no entanto, nessa altura, já apurados todos os factos que seriam levados à acusação, pois esta baseia-se, única e exclusivamente, na factualidade constante do auto de notícia.

  5. - No caso sub judice, não pode dizer-se, pois, que tenha havido inquérito só pelo facto de ter havido a constituição de arguido, já que o inquérito implica, necessariamente, a prática de actos de investigação e recolha de prova, por forma a fundamentar a objectividade de deduzir acusação, a qual foi deduzida pelo M.P., com base numa informação dos órgãos tributários, da qual não teve imediato conhecimento, já que, quando lhe foi comunicada a instauração do inquérito, a investigação, com recolha de prova, designadamente documental, já se encontrava totalmente realizada por elementos daqueles serviços, sem qualquer intervenção directa do MP, razão pela qual, no decurso do inquérito, não foram realizadas diligências de prova.

  6. - A investigação foi realizada, em exclusivo, pela administração fiscal, ou seja, o ofendido, sem conhecimento ou autorização do M.P., o que viola clamorosamente o artigo 48.° do Código de Processo Penal, nos termos do qual o dever de promover a acção penal é exclusivo do Ministério Público, tendo sido, pois, a administração fiscal quem promoveu a acção penal e prosseguiu com os actos de investigação, sendo, por isso, nulo todo o processado.

  7. - Não tendo havido inquérito, o qual era obrigatório, uma vez que estamos perante processo comum com intervenção do tribunal singular, e tendo a investigação sido realizada exclusivamente por elementos dos serviços tributários, sem intervenção directa do MP, a omissão de tais prescrições impostas por lei importam em nulidade insanável, nos termos do art. 119.º, als. b) e d), do CPP.

  8. - Ainda que assim não fosse, o que só por mera hipótese de raciocínio se admite, sempre se dirá que a douta sentença é nula, nos termos do disposto na al. c) do n.° l do art. 379.° do C.P.P., na medida em que os factos dados como provados assentam em prova documental recolhida à margem do inquérito e sem a intervenção do MP - arts. 262.° e 165.° do C.P.P. -, como é o caso, designadamente, das facturas/recibos de fls. 34 a 103 e retenções de fls. 104 a 193.

  9. - Só os documentos que contenham declarações é que podem servir de meio de prova, sendo que, para este efeito, um parecer, elaborado nos termos do disposto no art. 42.°, n.° 3, do RGI”, não constitui documento, pois que não têm aptidão a representar ou reproduzir, o objecto da prova, tratando-se apenas de uma peça escrita, sem eficácia probatória, cuja função útil, atento o disposto nos arts. 42.° e 43.° do RGIT, é a de poder contribuir para esclarecer, concluídas que estejam as diligências relativas ao inquérito, o MP na decisão de arquivar ou deduzir acusação.

  10. - Assim sendo, o parecer de fls. 260 a 277 não pode servir de fundamento para dar como provado a matéria da acusação, como, aliás, consta da fundamentação da sentença recorrida, que diz que foi relevante toda a prova documental constante dos autos e indicada na acusação, onde é referido o dito parecer, pelo que a douta sentença é nula, nos termos do disposto na al. c) do n.° l do art. 379.° do C.P.P., na medida em que conheceu de prova que não podia conhecer.

  11. - Na audiência de discussão e julgamento realizada em 16.02.2009, foi proferido douto despacho que, de imediato, passou a “(...) excluir os seguintes factos constantes da acusação: Todos os factos relativos a IVA dos meses de Fevereiro, Março, Abril, Maio e Julho de 2006, as retenções na fonte a título de IRS, tanto da categoria A como da categoria B, referente ao exercício de 2004, Outubro e Novembro, ao exercício de 2005 de Fevereiro a Dezembro de 2005 e também ao exercício de 2006 Setembro e Dezembro”, despacho que transitou em julgado, por dele não ter sido interposto o competente recurso.

  12. - Ora, como consta das als. D) e F) da matéria dada como provada, a sentença recorrida deu como provados todos os factos relativos a IVA dos meses de Fevereiro, Março, Abril, Maio e Julho de 2006, as retenções na fonte a título de IRS, tanto da categoria A como da categoria B, referente ao exercício de 2004, Outubro e Novembro, ao exercício de 2005 de Fevereiro a Dezembro de 2005 e também ao exercício de 2006, Setembro e Dezembro, que já se encontravam excluídos por despacho transitado em julgado, razão pela qual a douta sentença impugnada é nula, nos termos do disposto no art. 379.°, n.° l, al. c), do C.P.P., na medida em que apreciou factos que não podia tomar conhecimento, o mesmo sucedendo com a factualidade dada como provada nas alíneas J) a Q) porquanto contêm matéria relacionada com os factos excluídos.

  13. - A douta sentença impugnada, ao proceder novamente à apreciação de tais factos, violou o princípio constitucional ne bis in idem.

  14. - Na motivação da matéria de facto dada como provada, o Tribunal...

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