Acórdão nº 179/09.6TAMLD.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 22 de Setembro de 2010

Magistrado ResponsávelALBERTO MIRA
Data da Resolução22 de Setembro de 2010
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)
  1. Relatório: 1.

No Tribunal Judicial da N..., foi submetido a julgamento, em processo comum, com intervenção de tribunal colectivo, o arguido J...

, mecânico, divorciado, residente no concelho de XX..., e actualmente detido no Estabelecimento Prisional Regional de XX..., acusado da prática, em autoria material e na forma consumada, dos seguintes crimes: - De um crime de abuso sexual de crianças agravado, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2, 177.º, n.ºs 1, alínea a), 4 e 7, e 30.º, n.ºs 2 e 3, do Código Penal; - De um crime de violência doméstica, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 152.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, e 30.º, n.ºs 2 e 3, ambos do Código Penal; - De um crime de coacção agravado, p. e p. pelos artigos 154.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 30.º, n.ºs 2 e 3, do Código Penal.

* 2.

Por sentença de 14 de Abril de 2010, o Tribunal Colectivo condenou o arguido J... nestes termos: – Pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão; – Pela prática de um crime agravado de um crime de abuso sexual de crianças, com trato sucessivo, p. e p. pelos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2, 177.º, n.ºs 1, alínea a), 4 e 7 do Código Penal, na pena de 9 (nove) anos de prisão; – Pela prática de um crime de coacção agravado, na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 154.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alíneas a) e b), 30.º, n.ºs 2 e 3, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão; IV – Operado o cúmulo jurídico, na pena única de 12 (doze) anos de prisão.

* 3.

Inconformado, o arguido interpôs recurso do acórdão, extraindo da respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões: 1.ª – A decisão do Tribunal Colectivo padece de insuficiência de prova para a matéria de facto considerada; 2.ª – O recorrente não concorda com a sua condenação pela prática do crime de violência doméstica de que vinha acusado, nos termos em que lhe foi aplicada a pena de três anos de prisão; 3.ª – A prova carreada para a audiência de discussão e julgamento não foi suficiente para considerar como provada a matéria constante dos pontos 12, 13, 14, 17, 18, 19, 20 e 21; 4.ª – Na verdade, muitos dos supra identificados factos surgem definidos no que concerne à respectiva circunstância temporal, sem que qualquer prova, documental ou testemunhal, tivesse tornado possível estribar tal asserção; 5.ª – Aliás, no sentido de que se alcançaram asserções desprovidas da necessária fundamentação, o ponto 19.º da matéria de facto provada é disso exemplo paradigmático: considerou-se como provado que o arguido teria dito várias vezes à ofendida A...que “qualquer dia corto-te o pescoço” sem que um qualquer elemento probatório tenha existido, sem que uma qualquer testemunha tenha corroborado tal expressão.

  1. – Ou seja, a matéria de facto dada como provada excedeu manifestamente aquilo que os depoimentos e a prova documental autorizavam que se permitisse concluir.

  2. – Deverá assim ser alterada a resposta dada à matéria de facto nos pontos 12, 13, 14, 17, 18, 19, 20 e 21, no sentido de não provada, na exacta medida em que não se provou com clareza, isto é, sem margem para dúvidas, que os factos ali vertidos tenham ocorrida naquela forma, nem muito menos, naqueles precisos dias e horas (nem uma só testemunha fez uma só vez referência a qualquer data, apesar de se concluir que os diversos factos relatados tiveram lugar no dia até Dezembro de 2005, desde 25 de Agosto de 2006, no dia 7 de Setembro de 2006, pelas 18,30 horas, etc…!).

  3. – Daqui só pode advir a absolvição do arguido no que concerne à alegada prática do crime de violência doméstica.

  4. – Sem conceder e por imperativo do dever de patrocínio, se assim não se decidir, a indefinição da circunstância temporal no que concerne a alguns dos factos considerados como provados deveria, pela menos, fundar a aplicação de pena menos gravosa do que aquela que foi efectivamente aplicada, considerando-se que a pena mínima (um ano de prisão) é a adequada para o efeito.

  5. – No que concerne ao crime de abuso sexual de crianças, com trato sucessivo, e ao crime de coacção agravada, na forma continuada, ao considerar como provada a matéria dos pontos 22, 23, 24 e 25, o douto acórdão não respeitou o princípio do in dubio pro reo, antes funcionando o mesmo em claro prejuízo do arguido, uma vez que, na dúvida, o mesmo deveria funcionar a seu favor e não o inverso.

  6. – Efectivamente, não sendo subtraída a dúvida razoável incidente sobre a análise crítica da prova recolhida com referência à verificação dos factos que ao arguido são imputados, a mesma deveria ter funcionado em sentido favorável ao arguido.

  7. – O princípio contido no art. 127.º do CPP não pode significar – e não é esse o seu entendimento pacífico – que o tribunal pode decidir sem ponderar e indo para além das provas produzidas (ou ultrapassando a ausência das mesmas), decorrentes da audiência de julgamento.

  8. – Por outro lado, embora devessem militar a seu favor as circunstâncias atenuantes da confissão e do arrependimento manifestado em audiência – que constituem verdadeiro factor atenuativo da pena – na verdade, não foram minimamente ponderadas, o que significa que o douto acórdão ora posto em crise violou os critérios de dosimetria da pena previstos nos artigos 70.º e 71.º do Código Penal.

  9. – Assim, foram violadas as normas contidas nos artigos 70.º, 71.º, 152.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, 171.º, n.ºs 1 e 2, 177.º, n.º 1, alínea a), n.ºs 4 e 7, todos do Código Penal, enfermando o acórdão prolatado do vício a que alude o art. 410.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal.

  10. – Com fundamento nas invocadas violações dos normativos a que supra se faz referência e dos princípios in dubio pro reo e da presunção de inocência do arguido, requer o arguido a alteração do douto acórdão recorrido, no sentido de absolver o mesmo da prática do crime de violência doméstica, ou assim não se entendendo, de reduzir a respectiva pena ao mínimo legal; e 16.ª – Ponderando igualmente, para além do expendido, as circunstâncias que militam a seu favor e que não foram minimamente consideradas, dever ser reduzida a pena aplicada pela prática do crime agravado de abuso sexual de crianças, com trato sucessivo, para um pena que se deve situar nos cinco anos, reduzindo de igual forma, a final, o respectivo cúmulo das penas aplicadas, tendo em atenção a absolvição e redução ora operadas, nos termos consagrados nos artigos 77.º e 78.º, do Código Penal.

  11. – Não deixará, assim, de realizar a justiça, continuando a garantir-se a satisfação das necessidades preventivas gerais e especiais.

Nestes termos e nos que V. Ex.ªs suprirão, deve ser dado parcial provimento ao recurso, julgando-se a douta decisão do Tribunal Colectivo a quo nos termos supra alegados e absolvendo-se e condenando-se a final o arguido, com as legais consequências, assim se fazendo, como habitualmente, serena e objectiva justiça! * 4.

Em resposta, o Magistrado do Ministério Público na 1.ª instância pugnou pela total improcedência do recurso.

* 5.

Neste Tribunal da Relação, em parecer a fls. 527/528, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta defendeu, de igual modo, a manutenção integral do decidido pelo Tribunal Colectivo de 1.ª instância.

* 6.

Cumprido o disposto no n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal, o arguido não exerceu o seu direito de resposta.

* 7.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

*** II. Fundamentação: 1.

Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso: Conforme Jurisprudência constante e pacífica, são as conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações que delimitam o âmbito dos recursos, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso, indicadas no art. 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.

Tendo em conta as conclusões formuladas pelo recorrente, resumem-se ao seguinte quadro as questões de que cumpre conhecer: A) Alterabilidade da matéria de facto; B) Vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [artigo 410.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Penal].

  1. Violação do princípio in dubio pro reo; D) Uma vez alterada a matéria de facto, segundo os desígnios do arguido/recorrente, se este deve ser absolvido da prática do crime de violência doméstica ou, caso assim não seja entendido, se a pena correspondente é de fixar em 1 (um) ano de prisão; E) Medida da pena relativa ao crime de abuso sexual de crianças agravado; F) Quantum da pena única.

* 2.

No acórdão recorrido, foram dados como provados os seguintes factos: 1. Em 1990 o arguido J...e A... iniciaram uma relação amorosa passando a viver juntos, como se de marido e mulher se tratasse, partilhando cama, mesa e habitação desde essa data.

  1. Em 30.06.1993 casaram-se e viveram juntos até Abril de 2008, data em que se separaram, tendo o divórcio entre ambos apenas sido decretado por sentença transitada em julgado em 15 de Setembro de 2009.

  2. O arguido é pai de C... nascida a 25.02.1995.

  3. Durante o ano de 1991, data de nascimento de F..., segundo filho do casal, o arguido começou a discutir com a ofendida A…, por questões relacionados com o consumo e tráfico de estupefacientes, chamando-a, no decorrer das discussões, de “puta” e “coirão” e agredindo-a ainda com bofetadas na cara.

  4. Estas situações ocorriam na residência que ambos partilhavam com os seus filhos B..., nascida em 1990, e F..., nascido em 1991, sita em XX..., por vezes na presença destes e com uma frequência não concretamente apurada mas não inferior a duas vezes por mês.

  5. Em 1998, o casal mudou-se para uma residência sita no lugar do L..., na N..., onde passaram a habitar na companhia dos seus filhos B..., F... e de C...entretanto nascida em 1995.

  6. Em 1999, o arguido, depois de ter estado ausente a cumprir pena de prisão, regressou à residência familiar acima indicada...

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