Acórdão nº 471/08.7GAVVD de Tribunal da Relação de Guimarães, 23 de Janeiro de 2012

Magistrado ResponsávelFERNANDO CHAVES
Data da Resolução23 de Janeiro de 2012
EmissorTribunal da Relação de Guimarães

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães I – Relatório Nestes autos de processo comum com intervenção do tribunal singular n.º 471/08.7GAVVD, a correr termos no 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Braga, por despacho de fls. 294 a 299, foi rejeitada a acusação pública deduzida contra a arguida Ana R... pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de burla qualificada previsto e punido pelo n.º 1 do artigo 218.º do Código Penal.

Inconformado com tal decisão, o Ministério Público dela interpôs recurso, retirando da sua motivação as seguintes conclusões (transcrição): “1- Inexiste fundamento válido para a rejeição da acusação sub judice.

2- No nº 3 do artº 311º do Código de Processo Penal são elencados casos extremos em que a acusação é insusceptível de correcção sem prejuízo do direito de defesa fundamental que a falta dos elementos aí mencionados traria. Nele se prevêem nulidades da acusação sui generis, insuperáveis e insanáveis, que permitem ao Juiz do julgamento uma intromissão na estrutura acusatória do processo que de outro modo não seria admissível. No caso da alínea d) da mencionada norma prevê-se uma dessas situações limites - a falta de objecto legal. Este apenas poderá ser verificado quando a factualidade descrita não conf‌igura a prática de qualquer crime.

3- A acusação rejeitada contém os factos integradores do tipo de ilícito em questão, o crime de burla qualificada.

4- Aliás, toda a narração dos factos se desenvolve em tomo do “esquema” empregue pela arguida para obter um crédito a que não teria, não fosse ele, acesso. Toda a estrutura da acusação é de molde a tomar perceptível que a arguida desenvolveu uma conduta astuciosa que provocou um engano que determinou à concessão do crédito, mediante a narração dos factos naturalísticos, omitindo conclusões.

5- A acusação rejeitada tem, por conseguinte, condições de viabilidade e é fundamento bastante da realização de julgamento.

6- O douto despacho recorrido violou o disposto nos artºs 218º, nº 1, do Código Penal e 311º, nº 2, al. a) e nº 3, al. d), do Código de Processo Penal.

Pelo exposto, somos do parecer que o despacho recorrido deve ser revogado por outro que receba a acusação sub judice, seguindo-se os ulteriores termos processuais.

Assim julgando, farão V. Ex.ªs inteira JUSTIÇA!”.

* A arguida não respondeu ao recurso.

Nesta instância o Exmo. Procurador Geral-Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 416.º do Código de Processo Penal, emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

No âmbito do disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, a arguida nada disse.

Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

* II - Fundamentação 1. O despacho recorrido (por transcrição): “O tribunal é o competente.

O Ministério Público está dotado de legitimidade para o exercício da acção penal.

Inexistem quaisquer nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.

*** De harmonia com o disposto no artigo 311º, nº 2, alínea a) do Código de Processo Penal, quando o processo é remetido para julgamento sem ter havido instrução, a acusação pode ser rejeita, se for considerada manifestamente infundada, o que, nos termos do nº 3 do referido artigo, acontecerá quando: a) Não contenha a identificação do arguido; b) Não contenha a narração dos factos; c) Não indique as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; d) Os factos não constituam crime; Nos presentes autos o Ministério Público deduziu acusação contra Ana R... imputando-lhe a prática de um crime de burla qualificada, p.p. pelo artigo 218º, nº 1 do Código Penal.

Decorre do disposto no nº 1 do artigo 217º do Código Penal, que “quem, com intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”.

Por sua vez, o nº 1 do artigo 218º do Código Penal dispõe que “Quem praticar o facto previsto no nº 1 do artigo anterior é punido, se o prejuízo patrimonial for de valor elevado, com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias”.

Com este tipo legal de crime visa-se a protecção do património, entendido numa acepção jurídico-económica e, neste sentido, coincidente com um conjunto de utilidades económicas cuja disponibilidade e fruição o ordenamento jurídico tutela ou, pelo menos, não desaprova.

A protecção ao património coloca-se no momento em que evento danoso ocorre, em que o prejuízo patrimonial se verifica - sob a forma de dano emergente ou de lucro cessante -, sendo esse, justamente, o momento da consumação do crime.

Ora, os elementos do crime de burla são os seguintes: a) A “astúcia” empregue pelo agente; b) O “erro ou engano” da vítima devido ao emprego da astúcia; c) A “prática de actos” pela vítima em consequência do erro ou engano em que foi induzida; d) O “prejuízo patrimonial” – da vítima ou de terceiro – resultante da prática dos referidos actos; e) Nexo causal: é necessário que entre os elementos acima descritos existam sucessivas relações de causa e efeito, nomeadamente que: da astúcia resulte o erro ou engano; do erro ou engano resulte a prática de actos pela vítima; da prática desses actos resulte o prejuízo patrimonial; f) Intenção do agente de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo: é necessário que se verifique a existência de dolo.

Quanto à conduta do agente, o artigo 217º nº 1 do Código Penal determina que o erro do sujeito passivo tem de ser provocado astuciosamente.

“É usada astúcia quando os factos invocados dão a uma falsidade a aparência de verdade, ou são referidos pelo burlão factos falsos ou este altere ou dissimule factos verdadeiros, e actuando com destreza pretende enganar e surpreender a boa fé do burlado, de forma a convencê-lo a praticar actos em prejuízo do seu património ou de terceiro” (Ac. do STJ de 20/03/2003, processo nº 03P241 disponível em www.dgsi.pt).

Por sua vez, o erro deve ser considerado como a falsa ou nenhuma representação da realidade concreta, que funcione como vício do consentimento da vítima.

Já no caso do engano, “o burlão terá que ter cometido a mentira adequada a lograr o burlado” (Marques Borges, citado in Código Penal Anotado, Leal-Henriques e Simas Santos, Editorial Rei dos Livros, Vol. II, pág. 839).

No entanto, não basta qualquer erro ou engano; é ainda necessário que ele tenha sido provocado ou aproveitado astuciosamente, nos termos supra referidos.

Sendo certo que o erro pode ser provocado pelo agente quando este descreve a outrem, por palavras...

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