Acórdão nº 103/18.5T8MTR.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 19 de Junho de 2019

Magistrado ResponsávelHEITOR GONÇALVES
Data da Resolução19 de Junho de 2019
EmissorTribunal da Relação de Guimarães

Acordam os Juízes da 1ª Secção Civel da Relação de Guimarães I. (…), começou por requerer a prestação de contas àos sócios da (…) Lda, da qual é sócio e gerente, processo que a convite do tribunal convolou para inquérito judicial deduzido contra aquela sociedade nos termos dos artigos 67º, 216º e 292º, do CSC, e 1048º, nº2, do Cód. Processo Civil, representada pelos sócios (…) e (…) .

No essencial e em síntese, alegou que em função do seu estado de saúde raramente se desloca a sede da sociedade; que os outros sócios também mudaram as fechaduras e não lhe deram uma chave; os outros gerentes recusam-se a prestar-lhe contas desde 2010; destruíram elementos da contabilidade, e os elementos que lhe foram entregues em 27-11-2018 não correspondem à realidade.

  1. Conclusos os autos, o tribunal indeferiu liminarmente o requerimento de inquérito judicial nos termos do artigo 590º, nº1, do CPC, em função da manifesta improcedência da pretensão: “A acção de inquérito judicial à sociedade tem duas tramitações distintas, consoante se pretenda a prestação de informações e junção de documentos ou a prestação de contas.

    No primeiro caso segue a tramitação regulada nos arts. 1048º e segs. do Código de Processo Civil e, no segundo caso, a tramitação prevista no art. 67º do Código das Sociedades Comerciais, por expressa remissão do art. 1048º, nº 3, do Código de Processo Civil.

    Nos termos do disposto no art. 1048º nº1, do Código de Processo Civil: «O interessado que pretenda a realização de inquérito judicial à sociedade, nos casos em que a lei o permita, alegará os fundamentos do pedido de inquérito, indica os pontos de facto que interessa averiguar e requerer as providências que repute convenientes.» Com interesse para a presente acção os casos em que a lei permite a realização do inquérito judicial são quando ao sócio de uma dada sociedade tenha sido recusada a informação ou tenha sido dada informação presumivelmente falsa, incompleta ou não elucidativa (art. 216º do Código das Sociedades Comerciais) ou quando as circunstâncias do caso fizerem presumir que a informação não será prestada ao sócio (arts. 292º nº6 e 216º nº2, ambos do Código das Sociedades Comerciais).

    Ora, o requerente é, indiscutivelmente, sócio da sociedade referida, sendo, além de sócio, também seu gerente (tal como se alcança da certidão integral da sociedade junta aos autos).

    A questão que se coloca é a de saber se, sendo o requerente gerente da sociedade, pode pedir o inquérito judicial ou se tal pedido só pode ser feito pelo sócio não gerente.

    Os artigos 216º e 292º do Código das Sociedades Comerciais falam apenas no direito do sócio, não ressalvando a situação de só se aplicar aos sócios não gerentes.

    Mas, quanto a nós, tal não significa que os gerentes-sócios o possam fazer.

    Abílio Neto defende que o direito de requerer o inquérito judicial é um direito que também assiste aos sócios gerentes e justifica-se dizendo que “são numerosos os casos de gerentes que só o são de nome ou que são impedidos pelos outros gerentes do acesso às informações e aos livros e documentos da sociedade” (inCódigo Comercial e Código das Sociedades Comerciais Anotados, 14ª ed., p. 629).

    Afigura-se-nos que este argumento não pode proceder. Com efeito, se a justificação residisse no facto de haver gerentes que só o são de nome, já que na prática por impedimento do(s) outro(s) gerente(s) não exercem as respectivas funções, então teríamos de concluir que os gerentes gozariam de diferentes direitos consoante fossem ou não sócios da sociedade. Se o fossem poderiam requerer a realização de inquérito judicial. Se não o fossem não poderiam requerer o inquérito já que a lei só confere esse direito aos sócios como resulta expressamente dos citados artigos 216º e 292º.

    E se não podiam requerer o inquérito significa que não poderiam ter acesso à informação da sociedade, o que é, no mínimo, absurdo e configuraria um tratamento diferenciado de duas situações perfeitamente idênticas, não havendo qualquer fundamento para essa diferenciação.

    Mas para além deste argumento outros há que nos fazem pender para uma solução contrária à defendida por Abílio Neto.

    O direito à informação é um direito geral dos sócios que tem como objectivo assegurar a transparência da realidade da situação da empresa e que se encontra consagrado no art. 21º nº1, al. c) do Código das Sociedades Comerciais.

    O âmbito deste direito varia de acordo com o tipo de sociedade, estando regulado, quanto às sociedades por quotas, nos arts. 214º a 216º do mesmo diploma.

    Sendo embora um direito com uma grande amplitude, o certo é que em determinadas circunstâncias ele pode ser cerceado: ou por regulamentação no próprio contrato de sociedade ou por se recear utilização abusiva da informação (arts. 214º nº2 e 215º nº1).

    Ora, se se entendesse que o direito à informação consagrado no art. 214º valia para o sócio gerente teríamos de concluir que ao gerente, ou seja, à pessoa que administra e representa a sociedade, poderia ser vedado o acesso a determinadas informações, o que é inaceitável.

    Acresce que é ao gerente que cabe precisamente decidir quais as informações que não devem ser dadas aos sócios nos termos do art. 215º, não sendo admissível que um gerente decidisse que outro gerente não deveria ter conhecimento de determinadas informações.

    O gerente, seja ou não sócio, na medida em que as suas funções são as de administração e representação da sociedade, tem obrigatoriamente que ter um “direito à informação” muito mais amplo que o direito dos sócios, direito esse que não poderá ser limitado quer contratualmente quer legalmente.

    Neste sentido Raul Ventura afirma o seguinte: “Sujeito activo desta relação é o sócio não gerente. (...) O sócio gerente não necessita deste direito porque a sua função dentro da sociedade envolve o poder de conhecer directamente todos os factos sociais e tem pessoalmente ao seu alcance aquilo que o sócio não gerente necessita de obter por meio daquele direito. Algum conflito entre gerentes resolve-se por outros processos e nada tem a ver com este direito á informação. Nem faria sentido que a lei instituísse o dever de os gerentes prestarem informação a outros sócios e, por outro lado, forçasse o gerente a dirigir-se a um colega quando aquele pretendesse, para si próprio, uma informação.” (in Sociedades por quotas, Vol. I, Almedina, p. 290).

    Também na mesma linha de orientação, Pinheiro Torres escreve que “não se pode deixar essa tutela do direito do gerente a estar informado dos assuntos e da situação da sociedade confiada apenas ao direito do sócio à informação. Isto é: tem seguramente de haver uma tutela de grau superior, uma vez que a necessidade de informação do gerente tem de ter uma resposta sem condições, ou seja, não pode conhecer limites.”“É irrecusável que tem de haver uma tutela própria para o acesso à informação do gerente (sócio ou não), bem diversa da que incide sobre o direito do sócio à informação. diversidade que se revela, desde logo, na própria natureza das situações: ao gerente tem de se lhe reconhecer um direito de acesso à informação, digamos, um acesso directo, enquantoque ao sócio apenas se lhe reconhece um direito à prestação de informação pelos gerentes, isto é, um acesso indirecto.”. “Os argumentos aduzidos bastam para fazer concluir ser irrefutável a ideia de que tem de existir uma tutela própria do direito do gerente de aceder à informação de que necessitar, que não se pode restringir à tutela própria do direito do sócio à informação.” (inO Direito à Informação nas Sociedades Comerciais, Almedina, 1998, p. 177-178).

    Significa isto que o direito dos gerentes é um direito muito mais amplo que o dos sócios. Para desempenhar as suas funções o gerente precisa de estar informado sobre toda a situação da empresa, ou eventualmente, caso haja distribuição de pelouros, sobre todas as informações relativas ao seu pelouro, não sendo admissível que lhe sejam vedadas quaisquer informações necessárias para o desempenho das suas funções.

    E se lhe for vedado o acesso às informações? Então o gerente sócio, tal como o não sócio, terá de, lançando mão da tutela específica que lhe assiste “exigir condições para o pleno exercício das funções e da competência que, por lei, lhe cabem -cfr. artigos 295º e 252 nº1.” (Pinheiro Torres, op. cit., p. 179).

    Como refere o mesmo autor, seria uma situação idêntica à aquela que ocorreria se impedissem o gerente de entrar na sede social ou de levantar a sua remuneração.

    Por todo o exposto é forçoso concluir que aos gerentes, sejam ou não sócios, não é possível lançar mão da acção de inquérito judicial com base na falta...

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