Acórdão nº 1094/20.8T8BC.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 22 de Março de 2021

Magistrado ResponsávelCÂNDIDA MARTINHO
Data da Resolução22 de Março de 2021
EmissorTribunal da Relação de Guimarães

Desembargadora Relatora: Cândida Martinho Desembargador Adjunto: António Teixeira Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães.

I.

Relatório 1.

No processo de cassação nº894/2019, por decisão do Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, foi determinada a cassação do título de condução nº ........ de que é titular o arguido, ora recorrente, B. R..

Não se conformando com essa decisão, o arguido veio impugná-la judicialmente, dando origem aos presentes autos de processo de contra-ordenação nº 1094/20.8T8BCL, do Juízo Local Criminal de Barcelos, a qual julgou improcedente o recurso, confirmando integralmente a decisão administrativa.

  1. Inconformado com tal decisão dela interpôs recurso o arguido, concluindo do seguinte modo: 1. O quadro legal dos procedimentos em matéria de “cassação” da carta de condução está previsto no Código da Estrada (DL 114/94, de 03.05).

  2. Estipulando por sua vez o artº 169º, nº4 que “O presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária tem competência exclusiva, sem poder de delegação, para decidir sobre a verificação dos respectivos pressupostos e ordenar a cassação do título de condução.

  3. Ou seja, é organizado um processo próprio para averiguação dos requisitos da cassação do título de condução, cuja decisão compete exclusivamente ao Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, e que é regulado - no que aquele diploma não prevê - pelo regime geral das contra-ordenações.

  4. Ora, o processo administrativo nº 894/2019, incorporado nos presentes autos, desenvolveu-se e foi decidido com base em factos inverídicos, não obstante as sucessivas denúncias do arguido.

  5. Com efeito, refere tal processo administrativo que consta do Registo de Infracções do Condutor do ora recorrente o seguinte averbamento: “”crime de condução de veículo em estado de embriaguez, por infracção ao nº 1 do artºs 292º do Código Penal, praticado em 06/08/2018;” E que: “Constata-se assim que o condutor foi condenado em dois processos-crime de natureza rodoviária, tendo havido lugar a sentença judicial, transitada em julgado, nos respectivos processos.” 6. A ocorrência desta inveracidade foi reconhecida na sentença sub judice, não tendo contudo sido retiradas as devidas consequências jurídicas.

  6. É que, para além do mais, todo o exercício do direito à defesa e ao contraditório do arguido no processo administrativo de cassação desenvolveu-se perante um quadro factual inverídico e irreal.

  7. Só após a pronúncia do arguido colocado perante os factos verdadeiro que lhe sejam imputados é que permitirá o exercício pleno do direito ao contraditório e à defesa, e assim um desenvolvimento do processo administrativo como é de lei.

  8. Não compete ao Tribunal tramitar o processo próprio para averiguação dos requisitos da cassação do título de condução, cuja decisão, como referimos, compete exclusivamente ao Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária.

  9. Ao procurar rectificar e relevar os factos inverídicos constantes do processo de cassação da carta, o Tribunal a quo está a imiscuir-se nesse processo administrativo, num poder que não tem, o que representa até, de forma indireta, uma clara violação do princípio da separação de poderes.

  10. Ao Tribunal compete sindicar a legalidade de tal processo de cassação do título de condução, e não o exercício do poder de conformação do conteúdo do mesmo.

  11. Pelo que, desde logo, não poderá manter-se a decisão recorrida uma vez que não pode o Tribunal alterar o Registo Individual de Condutor e os factos em que assenta o processo administrativo de cassação, por carecer de legitimidade e competência para o fazer.” 13. Acresce que, a sentença em mérito, além de alterar os factos que constam do Registo Individual de Condutor do arguido, decide em manter a decisão de cassação, desconsiderando o exercício ao contraditório e desde logo as várias soluções plausíveis que a questão de direito certamente merecerá.

  12. A preterição de tal direito – imposto pelos citados artºs 50º do RGCO e 32º, nº10, da CRP – configura a nulidade insuprível do artº 119º, al. c), do CPP aplicável por força do disposto no artº 41º, nº1, do RGCO., contamina não só o julgamento e a sentença proferida mas todo o processado posterior à instauração do processo administrativo com base num Registo Individual de Condutor suportado em factos inverídicos.

  13. É no campo dos procedimentos de cariz sancionatório, em geral – desde logo os penais, mas também os contraordenacionais –, que princípios comuns a ambos, como os da audiência e da correlativa defesa do arguido assumem uma relevância tal que o legislador constitucional considerou justificar-se dar-lhes especial acolhimento.

  14. Na verdade, tais princípios são consagrados na segunda parte do nº 5 do art. 32º da Constituição da República, que assegura, o direito de audiência de todos os sujeitos processuais que possam vir a ser afectados pela decisão, de forma a garantir-lhes uma influência efectiva no desenvolvimento do processo. Particularmente no que respeita ao arguido, estão em causa as «garantias de defesa» a que alude o nº 1 do mesmo art. 32º.

  15. O direito a todas as garantias de defesa estabelecido neste nº 1 quer significar que ao arguido devem ser dados os instrumentos processuais necessários a poder contrariar, ao longo do processo, as posições da entidade administrativa sancionadora.

  16. Trata-se de assegurar o princípio do contraditório e da audição prévia, segundo o qual assiste ao arguido o direito de contestar e impugnar não só os factos iniciais já conhecidos mas quaisquer outros que surjam e que o tribunal pretenda levar em consideração, de modo a que não seja proferida qualquer decisão/surpresa contra o arguido, por factos dos quais não teve oportunidade de se defender.

  17. Verificando-se, assim, que a alteração dos factos constantes do registo individual de Condutor do arguido e do processo administrativo de cassação da licença de condução foi decidida e considerada sem o arguido ter tido a oportunidade de apresentar os seus argumentos e requerer a produção de meios de prova, deve concluir-se que foram postergados os direitos de defesa daquele, na dimensão dos princípios do contraditório e da audição do mesmo, a que se vem aludindo.

  18. Essa omissão constitui uma nulidade insanável que torna também insanavelmente nula a sentença recorrida.

  19. Pelo que, sempre deverá revogar-se a sentença em mérito e proferida decisão que anule todo o processado no processo administrativo de cassação, ordenando-se nova notificação do arguido para apresentar sua defesa perante os factos corrigidos.

  20. Por outro lado, a sentença recorrida não deu como provados nem não provados os factos alegados pelo arguido nos artºs 32º, 33º, 34º, 35º, 36º, 37º, 38º, 40º, 41º, 42º, 44º, 46º, 47º, 48º, 51º e 52º do seu recurso de impugnação o que constitui o vício de nulidade da sentença por omissão de pronúncia.

  21. Tais factos são importantes para a boa decisão da causa, nomeadamente para verificação das ilegalidades e inconstitucionalidades apontadas à decisão administrativa impugnada, bem como para o apuramento do eventual estado de perigosidade ou inaptidão do recorrente para a prática da condução de veículos com motor 24. A omissão de pronúncia constitui nulidade (art.º 379º/1-c) do CPP), nulidade essa que deve ser arguida e conhecida em sede de recurso (art.º 379º/2 do CPP), sendo de conhecimento oficioso.

  22. Pelo que, sem minimamente prescindir do supra alegado, sempre deverá declarar-se a nulidade da sentença recorrida, que deve ser substituída por outra que se pronuncie sobre as referidas questões, isto é, sobre se considera provado ou não provado os factos alegado nos supra referidos artigos do recurso de impugnação judicial apresentado.

  23. Sem minimamente prescindir do supra alegado, e mesmo caso não se considerem procedentes os vícios apontados à sentença em mérito, sempre se dirá que de qualquer forma a mesma não se poderá manter.

  24. Na verdade, do conjunto dos factos julgados provados não consta nenhum facto que, analisado isoladamente ou na conjugação com outros também julgados provados, demonstre a existência de um estado de perigosidade ou inaptidão do recorrente para a prática da condução de veículos com motor.

  25. Pelo que, vista a decisão, fica por saber se a cassação se ficou a dever ao eventual estado de perigosidade ou à hipotética inaptidão para a condução, sendo certo que só um destes pressupostos (ou ambos, cumulativamente) a tal pode fundamentadamente conduzir.

  26. Como tal, sempre deverá ser julgado procedente o presente recurso e revogar-se a decisão de cassação do título de condução do arguido.

  27. Ainda sem prescindir, sempre se dirá que a norma que atribui a competência ao Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária para decidir sobre a verificação dos respectivos pressupostos e ordenar a cassação do título de condução - art. 169, n.º 4, do Código da Estrada -, na redacção dada pelo D.L. n.º 113/2008 de l de Julho, é materialmente inconstitucional.

  28. São os Tribunais Judiciais, por força da competência constitucional atribuída e exclusiva, que podem apreciar tais pressupostos e aplicar tal medida de segurança, conforme estatuído nos artigos 101.º,102.º e 103.º do Código Penal Português e artigos 27.º, n.º 2 e 202.º da Constituição da República Portuguesa.

  29. Ao atribuir tal competência ao presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, o artigo 169.º, n.º 4 do Código da Estrada, na redacção dada pelo D.L. n.º 113/2008, de 1 de Julho, está, pois, ferido de inconstitucionalidade material.

  30. Pelo que sempre deverá o Tribunal decidir pela não aplicação das normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados supra referidos.

  31. Sem conceder, ainda se dirá que a cassação do título de condução do arguido, terá este facto consequências devastadoras para a sua vida profissional e pessoal, resultando claramente tal num impedimento de exercício da...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT