Acórdão nº 638/03 de Tribunal da Relação de Guimarães, 07 de Maio de 2003

Magistrado ResponsávelMANSO RAÍNHO
Data da Resolução07 de Maio de 2003
EmissorTribunal da Relação de Guimarães

Acordam em conferência na secção cível da Relação de Guimarães: V, Lda intentou, pelo tribunal da comarca de Guimarães, acção declarativa de condenação com processo na forma ordinária, contra o Estado Português, peticionando a condenação deste a indemnizá-la por todos os prejuízos patrimoniais e não patrimoniais que sofreu em consequência directa e necessária da errada decisão judicial que a declarou no estado de falência, indemnização a liquidar em execução de sentença.

Para o efeito alegou, em síntese, que por decisão proferida pelo tribunal da comarca de Guimarães, em 7 de Novembro de 1990, foi a Autora declarada em estado de falência. Acontece que tal só foi possível em virtude dessa decisão enfermar de vários erros grosseiros, quais sejam: a citação foi ordenada não obstante a requerente da falência não ter alegado quaisquer factos subsumíveis ao n° 1 do art. 1174° do Cód. Proc. Civil, sendo pois manifestamente evidente a falta de causa de pedir; não foi efectuada a notificação da requerida para a audiência de julgamento, não tendo o tribunal, face à ausência da requerida naquela audiência, verificado se a mesma havia ou não sido notificada para o efeito; os quesitos foram elaborados de forma obscura e contraditória e mesmo assim todos foram considerados provados; a matéria de facto provada ficou a sofrer dos mesmos defeitos dos quesitos formulados e, apesar de obscura e contraditória, bem como insuficiente para fundamentar a declaração de falência, o juiz deu procedência à acção e declarou a falência, em violação pois do disposto no art. 1174° do Cód. Proc. Civil. Acontece que esta decisão veio a ser anulada em via de recurso, mas a verdade é que por causa da falência decretada a Autora ficou impossibilidade de retomar a sua actividade, mantendo-se, mercê de diversas acções e recursos movidos, nomeadamente pelo administrador judicial, as respectivas instalações fechadas, pelo que é de prever a total deterioração das máquinas existentes no seu interior. Acresce que ficou impossibilitada de cumprir com os seus fornecedores. Tudo isto é fonte de prejuízos, que não se podem ainda quantificar, e cujo quantum reparatório deverá ser objecto de apuramento em liquidação de sentença.

O réu contestou, concluindo, no que agora ainda interessa, pela improcedência da acção.

A final foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu o R. do pedido.

Inconformada com o assim decidido interpôs a A. a presente apelação.

* Da respectiva alegação extrai as seguintes conclusões: 1ª. À Autora assiste o direito de exigir do Estado Português o pagamento de uma indemnização para a compensar dos prejuízos que sofreu em virtude dos erros grosseiros que estiveram na base da decisão judicial que determinou a sua falência.

  1. Tal direito tem o seu fundamento no disposto no artigo 22° da Constituição da República Portuguesa, o qual constitui, em primeiro lugar, um principio geral em matéria de direitos fundamentais, de natureza análogo à dos direitos, liberdades e garantias.

  2. O direito de indemnização tem o seu conteúdo essencialmente determinado ao nível das opções constitucionais, não dependendo da lei ordinária para se tornar liquido e certo, sendo certo que a responsabilidade civil cobre todas as funções do Estado.

  3. Os particulares lesados nos seus direitos, designadamente nos seus direitos, liberdades e garantias, por acções ou omissões de titulares de órgãos, funcionários ou agentes do Estado e demais entidades públicas, praticados no exercício das suas funções e por causa desse exercício, podem demandar o Estado - « responsabilidade do Estado » -, exigindo uma reparação dos danos emergentes desses actos (CRP, artigos 22°, 27°; ETAF, artigo 51°, nº 1 h)).

  4. Quanto ao Decreto-lei n.° 48.051, de 21/11/67, citado na decisão recorrida, o mesmo abrange apenas a responsabilidade da administração, com exclusão dos actos da função jurisdicional.

  5. O Decreto-lei n.° 48.051 de 21/11/67 não abrange a função jurisdicional, já que esta não integra a chamada administração, e os actos jurisdicionais no âmbito daquela função jurisdicional não suportam a qualificação de actos de gestão pública - Acórdão de 9/10/90 do STA, in RLJ, n.° 3804, pág. 77.

  6. Pelo exposto, não é de aplicar ao caso dos autos o estatuído no mencionado Decreto-Lei nº 48.051.

  7. Da matéria de facto dada como provada é manifesto concluir que na audiência de julgamento onde foi decretada a falência da Autora, os quesitos sugeridos, a sua resposta, os meios de prova considerados relevantes, as conclusões que a matéria de facto provada permitiu tirar e, principalmente, a decisão proferida, constituíram manifesto erro.

  8. Aliás, o próprio Estado na contestação apresentada no âmbito da presente acção reconheceu ter havido um lapso - lapso significa falta, erro, engano, por distracção, descuido ou esquecimento - apelidando a sentença recorrida de em mero lapso de escrita.

  9. Não é nenhum lapso de escrita, tanto mais que se assim fosse o princípio geral que se contém no artigo 249° do Código Civil permitiria a sua rectificação.

  10. Aliás, o próprio Tribunal da Relação do Porto ao decidir o recurso intentado pela então falida, analisou tal questão e não concluiu pela existência de um simples lapso de escrita: Mesmo que fosse lapso do Exmo Juiz na formulação do quesito 2°, haveria necessidade de, nos termos do n. ° 2, do artigo 712° do Código de Processo Civil, formular quesitos que abrangesse toda a matéria alegada com interesse para a decisão da causa. Sendo assim, face às contradições e obscuridades referidas há que anular o julgamento.

  11. Sublinhe-se que não se está perante um mero lapso de escrita, pois está em causa apurar-se concretamente a situação da então Ré, pois para a procedência da pretendida da falência desta era necessário a verificação de um dos factos-índíces previstos no artigo 1147° do Código de Processo Civil.

  12. É que para que a falência fosse declarada era necessário ficar demonstrada a verificação de um dos factos-índices previsto no n.° 1 do artigo 1174° do Código de Processo Civil, na redacção prevista no Decreto-lei 177/86, de 2 de Julho, e que expressamente referia que a cessação de pagamentos só seria causa de declaração de falência se insuficientemente significativa da incapacidade financeira do devedor.

  13. Perante tal dispositivo legal, é inequívoco o descuido e a desatenção com que foram formulados os quesitos, resultante, além do mais, da forma obscura e contraditória com que foram formulados.

  14. Não obstante, foram todos aqueles quesitos considerados provados, de onde resultou que a matéria de facto provada sofresse dos mesmos defeitos dos quesitos formulados, ou seja, a obscuridade, a contradição e a sua insuficiência para fundamentar a declaração de falência.

  15. Aliás, segundo o Código de Processo Civil, a falência é um instituto cujas normas de regulamentação são processuais e, portanto, de interesse e ordem públicos, estando em jogo, para além dos interesses das partes (devedoras e credoras), que visam obter a liquidação de um património em beneficio dos credores, o interesse público da ordem e paz social decorrente do eventual encerramento de uma empresa, com particular incidência sobre a classe trabalhadora e a economia regional. - in Assento 9/94 do STJ.

  16. Segundo a jurisprudência do Tribunal Constitucional, o princípio da confiança garante inequivocamente um mínimo de certeza e segurança das pessoas quanto aos direitos e expectativas legitimamente criadas no desenvolvimento das relações jurídico-privadas, podendo afirmar-se que, com base em tal principio, não é consentida uma normação tal que afecte de forma inadmissível, intolerável, arbitraria ou desproporcionadamente onerosa aqueles mínimos de segurança que as pessoas, a comunidade e o direito tem de respeitar.

  17. A decisão proferida que declarou a Autora no estado de falida constitui, pois, manifesto lapso ou erro, resultante da descuidada análise dos pressupostos de que dependia a sua verificação, constatável na forma como foi organizada e respondida a matéria de facto. Por tudo isto decidiu o Venerando Tribunal da Relação do Porto anular a decisão e ordenar a repetição do julgamento.

  18. Para além do que se acabou de expor, outros lapsos precederam a referida sentença, tal como se constata, aliás, da matéria de facto dada como provada no âmbito dos presentes autos, nomeadamente a não notificação da Requerida para a audiência de julgamento, o que constitui, aliás, grave violação dos princípios da igualdade processual das partes e do direito de acesso aos tribunais, constitucionalmente consagrados nos artigos 13° e 20° da Constituição da República. Portuguesa e nos artigos 1175° e 228° e seguintes do Código de Processo Civil.

  19. Os Tribunais não estão apenas ao serviço da defesa dos direitos fundamentais; eles próprios como órgãos do poder público, devem considerar-se vinculados pelos direitos fundamentais.

  20. Pelo...

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