Acórdão nº 421/18.2GCVRL.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 12 de Outubro de 2020

Magistrado ResponsávelJORGE BISPO
Data da Resolução12 de Outubro de 2020
EmissorTribunal da Relação de Guimarães

Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães: I.

RELATÓRIO 1.

No despacho de encerramento do inquérito com o NUIPC 421/18.2GCVRL.G1, que correu termos pela Procuradoria da República da Comarca de Vila Real - Procuradoria do Juízo Local Criminal de Vila Real - Secção de inquéritos, o Ministério Público concluiu não «(…) ter recolhido indícios suficientes de que a denunciada tenha efetivamente pretendido locupletar-se do dinheiro em seu benefício à custa do seu proprietário, mas simplesmente que ela recusou a devolução dele a quem entendeu não ser seu legítimo dono, tendo até devolvido por inteiro a quem entendeu sê-lo, os seus irmãos interditos. Ou seja, (…) entregou a coisa móvel alheia que lhe havia sido entregue por título não translativo de propriedade a quem entendeu ser seu dono, nunca tendo, durante quase 10 anos, dele usufruído» e que «cai por terra, portanto, o dolo de apropriação, isto é, o elemento subjetivo do crime abstratamente aqui em causa [abuso de confiança, previsto e punido pelo art. 205º, n.º 1, do Código Penal]».

Em conformidade, determinou o arquivamento do inquérito nos termos do art. 277º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

  1. Discordando desse arquivamento, a ofendida, M. M., requereu a sua constituição como assistente e a abertura de instrução, pedindo que, a final, a arguida E. S. fosse pronunciada pelo referido crime.

  2. Admitidos tais requerimentos e realizada a fase de instrução, no termo da mesma, o Mmº. Juiz proferiu decisão instrutória a não pronunciar a arguida, por entender não se verificarem os elementos objetivos, nem subjetivos, do crime de abuso de confiança, nem qualquer outro ilícito criminal.

  3. Novamente inconformada, a assistente recorreu, rematando a respetiva motivação nos seguintes termos (transcrição[1]): «CONCLUSÕES 1 – Nos presentes autos investiga-se a prática de um crime de abuso de confiança agravado, previsto e punido pelo artigo 205.º, n.º 1 e 4, al. b) do CP.

    2 – Foi proferida decisão de não pronúncia.

    3 – A Assistente interpõe o presente recurso alegando, para tanto, a nulidade da mesma, 4 – Em face da violação do disposto nos artigos 308.º, n.º 2 e 283.º, n.º 3, al. b) do CPP, ora, 5 – Não consta do douto despacho narração dos factos (indiciários ou não indiciários) que constituem fundamento da decisão de não pronúncia. Mais, 6 - O presente recurso tem como objeto matéria de direito, nos termos do disposto no artigo 412.º, n.º 2 do CPP, nomeadamente: 7 – Os depoimentos das testemunhas produzidos em sede de instrução não foram valorados pelo Mm. Juiz de Instrução porque, no entendimento do tribunal, não são legalmente admitidos.

    8 – Resulta, assim, a violação do disposto nos artigos 125.º e 129.º do CPP, uma vez que os referidos depoimentos, na parte em que devem ser considerados depoimentos indiretos, em face da verificação dos pressupostos, são prova admitida por lei.

    9 – Ora, o Juiz de Instrução aplicou o regime dos depoimentos indiretos erradamente.

    10 – Assegurando-se o contraditório dos depoimentos referidos (o que se verificou uma vez que responderam a todas as questões que a Ilustre Mandatária da denunciada colocou) e; 11 – Chamando-se a pessoa a que se ouviu dizer a depor (tendo a Assistente prestado declarações naquela mesma data), havia de se valorar, necessariamente, os referidos depoimentos.

    12 – Versa, também, este recurso sobre matéria de facto.

    13 – Em face da prova produzida há que considerar-se indiciariamente preenchido o elemento objetivo do tipo de crime.

    14 – Assim, a quantia em causa foi entregue por título não translativo da propriedade, segundo a prova feita através das declarações da Denunciada (conforme transcrição feita no despacho de arquivamento), ouvida como testemunha, e pela Denunciante (Declarações M. M.

    20200116144401_1384857_3994986).

    15 – A Denunciada passou, a dado momento, a comportar-se como sua proprietária: não deu contas do que fez com o dinheiro durante todo aquele período; 16 - Não entregou os juros que se venceram ao longo dos 10 anos que teve o dinheiro numa conta titulada por si; 17 - Não entregou o dinheiro quando para tal foi solicitada; 18 - Transferiu o dinheiro para quem bem entendeu dispondo do dinheiro, que bem sabe não lhe pertencer, de um modo que a sua legítima proprietária não pretendia; 19 - Os valores constantes da conta que foram transferidos, conforme documento bancário comprovativo junto aos autos, estavam em conta titulada pela Assistente; 20 - As pensões auferidas pelos filhos interditos pela Segurança Social visam fazer face às despesas inerentes à sua sobrevivência, isto é, alimentação, despesas médicas e medicamentosas e todas as que se mostrem essenciais àquela.

    21 - Através do depoimento das testemunhas ouvidas em sede de diligências de instrução (Declarações M. J.

    20200116154450_1384857_3994986 e Declarações M. F.

    20200116152742_1384857_3994986), que conjugado com as declarações prestadas pela Assistente (Declarações M. M.

    20200116144401_1384857_3994986), que manteve o que havia dito em sede de declarações de ofendida perante o OPC, fez-se prova das condições económicas da Assistente (que permitem diluir a dúvida quanto à titularidade do valor em causa), nomeadamente: subsídio do gado; venda do gado; pensão auferida a seu título e a título do marido falecido; valor que adveio da venda de um imóvel - atente-se aos depoimentos acima transcritos.

    22 – Assim, deverá atender-se aos depoimentos das testemunhas porque legalmente admissíveis.

    23 – Ainda, em face da prova produzida há que considerar-se preenchido o elemento subjetivo do tipo de crime. 24 - A Denunciada agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que os montantes em causa não lhe pertenciam, com intenção de integrar definitivamente no seu património os mesmos, acabando por transferir as quantias para quem bem entendeu, consubstanciando-se, este, como ato concludente de que o agente inverteu o título de posse e passou a comportar-se perante a coisa como proprietário, verificando-se, portanto, a deslocação da propriedade.

    25 – Atender, ainda, ao declarado pela Denunciada em sede de inquirição onde afirma que a Mãe lhe havia dito que “quando falecesse esse dinheiro ficava para a denunciada por ter sido sempre ela quem a ajudara a cuidar dos filhos deficientes”.

    26 – Concluir, em face das regras da experiência comum e da lógica, que a Denunciada se comportou conforme o referido (depositando o valor de 38.000 € em contas tituladas pelos irmão interditos) porque a Assistente apresentou queixa no âmbito dos presentes autos e, de modo ressentido, decidiu que se ela não ficava com aquele dinheiro também a sua Mãe não ficava.

    27 - Assim, em face da suficiência dos indícios recolhidos há que considerar-se altamente provável a futura condenação da denunciada e, em conformidade, ser proferida decisão de pronúncia de E. S. pela prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança agravado, previsto e punido pelo artigo 205.º, n.º 1 e 4, al. b) do CP.

    Termos em que concedendo V/Exas. total provimento ao presente recurso revogando-se, em consequência, a decisão recorrida, nomeadamente em face da nulidade arguida e, ainda, no que à prova não valorada respeita ou, não prosseguindo os referidos pedidos, atentos os indícios suficientes recolhidos, lavrando-se, em substituição da decisão recorrida, decisão de pronúncia, assim fazendo V/Exas., como habitualmente, INTEIRA JUSTIÇA!» 5.

    A Exma. Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância respondeu ao recurso, formulando as conclusões que a seguir se transcrevem: «1. A prova produzida em sede de inquérito e instrução é suficientemente elucidativa da inexistência de indícios suficientes da prática por parte da arguida do crime de abuso de confiança agravado que a assistente entende estar preenchido.

  4. A decisão instrutória recorrida não padece de qualquer nulidade ou irregularidade mormente as invocadas pela assistente e encontra-se devidamente fundamentada, quer de facto quer de direito, enunciando devidamente os factos em causa.

  5. A referida decisão não é possuidora de qualquer vício que inquine a sua validade substancial ou formal, devendo ser mantida nos seus precisos termos, julgando-se assim o recurso improcedente.» 6.

    Também a arguida respondeu à motivação, concluindo «[q]ue não houve, no caso em apreço, qualquer erro que viesse a provocar alguma nulidade na apreciação da prova ou violação de normas jurídicas por parte do tribunal a quo mas uma fundamentação com base na prova produzida e amplamente discutida que resultou na não pronúncia da arguida E. S.».

  6. Na intervenção a que se refere o art. 416º do Código de Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto nesta Relação emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, porquanto, no que concerne à questão da nulidade insanável da decisão por falta de indicação dos factos indiciados e não indiciados, reconhecendo que a decisão instrutória deverá enumerar os factos indiciados e não indiciados, o que a decisão recorrida não contém, tal não configura a verificação da invocada nulidade, antes e apenas uma nulidade sanável e dependente de arguição, pelo que a assistente deveria ter arguido tal nulidade no prazo de dez dias a contar da data da leitura da decisão instrutória, o que não fez, e não em sede de recurso. Por seu lado, quanto à questão da indiciação do crime de abuso de confiança, os elementos coligidos não demonstram indiciariamente a intenção de agir "animo domini" em relação ao dinheiro por parte da arguida.

  7. Cumprido o disposto no art. 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada qualquer resposta a esse parecer.

  8. Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c) do mesmo código.

    II.

    FUNDAMENTAÇÃO 1.

    DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO De acordo com o disposto no art. 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal...

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