Acórdão nº 5330/20.2T9BRG.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 23 de Janeiro de 2023

Magistrado ResponsávelJ
Data da Resolução23 de Janeiro de 2023
EmissorTribunal da Relação de Guimarães
  1. Relatório Nos autos de processo comum singular, com o NUIPC 5330/20.2T9BRG, que correm termos no Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Local Criminal ... – Juiz ..., após ter sido remetido à distribuição, para efeitos do despacho de saneamento previsto no art. 311º do CPP, foi proferido o seguinte despacho: “Autue como processo comum, com intervenção do Tribunal Singular.

*O Tribunal é competente.

Nos termos do disposto no artigo 311º, nºs 2, a), do Código de Processo Penal, recebidos os autos no tribunal sem que tenha havido instrução, o juiz pode rejeitar a acusação se a considerar manifestamente infundada, o que se verifica quando, designadamente, os factos descritos não constituam crime (nº3, d)).

*No caso em apreço, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido AA, pela prática, em autoria material, de um crime de ameaça, p. e p. pelos arts. 153º, nº1, Cód. Penal.

Imputa-lhe, para tanto, em suma, a circunstância de ter dito ao assistente, por interposta pessoa, “… que um dia ia aparecer esticado numa esquina todo partido, isto também se trata, a seu tempo logo se trata”.

Acrescenta que o arguido “atuou da forma descrita, com o propósito de provocar medo e inquietação em BB, desiderato que logrou alcançar. O arguido sabia que a sua conduta, além de censurável, era proibida e punida por lei.” O crime de ameaça é p. e p. pelo artigo 153º, nº1, Código Penal, nos termos do qual: “[Q]uem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, (…) de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação, ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias” (artigo 153º/1)”.

No que ora nos importa, o tipo subjetivo pode ser preenchido por qualquer modalidade de dolo, constituído pelo conhecimento dos elementos objetivos do tipo e pela vontade de agir por forma a preenchê-los (artigos 13º e 14º do Código Penal), independentemente da vontade de concretizar a ameaça, bastando a consciência por parte do agente de que a sua conduta é suscetível de produzir medo ou inquietação ao destinatário e vontade de que tal se verifique.

A estrutura do dolo comporta um elemento intelectual (representação pelo agente de todos os elementos que integram o facto ilícito – o tipo objetivo de ilícito) e um elemento volitivo (especial direção da vontade do agente na realização do facto ilícito), do que resultará a imputação de um dolo direto – se há intenção de realizar o facto, dolo necessário – se há previsão do facto como consequência necessária da conduta, dolo eventual – se há conformação da realização do facto como consequência possível da conduta.

Impõe-se, quanto ao elemento subjetivo, num crime doloso como o dos autos, que se afirme que o arguido atuou de forma livre (sendo capaz de determinar a sua ação, podendo agir de forma diversa, assim se afastando a existência de causas de exclusão da culpa), deliberada (que quis realizar o facto criminoso) e consciente (representando todas as circunstâncias do facto, sendo imputável), sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (com consciência da ilicitude) – neste sentido, Acs. TRE de 6.10.2015, TRC 1.6.2011, in www.dgsi.pt.

O tipo subjetivo de ilícito inclui, por isso, o dolo do tipo e o dolo da culpa.

Ora, na acusação pública deduzida nos autos - e ainda que nada obste a que se abdique da utilização das fórmulas habituais – o certo é que nada se diz quanto à (essencial) liberdade da atuação do arguido, à liberdade e capacidade de o mesmo determinar a sua ação, de molde a afastar qualquer causa de exclusão da culpa, pelo que o elemento subjetivo se mostra insuficientemente narrado.

Por força do princípio do acusatório e da vinculação temática, com consagração constitucional (art. 35º nº 2 da CRP), o tribunal só pode investigar e julgar dentro dos limites da acusação, que define e fixa o objeto do processo e delimita os poderes de cognição do Tribunal, que não pode servir-se dos mecanismos previstos nos arts. 358º e 359º, CPP, para transformar condutas atípicas submetidas a julgamento, que merecem absolvição, em condutas típicas, dignas de condenação (a este propósito, Ac. Unif. Jurisprudência nº 1/2015, Diário da República n.º 18/2015, Série I de 2015-01-27, pp. 582 – 597).

*No tocante à acusação particular deduzida pelo assistente pela prática do crime de difamação, diga-se que dispõe o art. 180º, CP: «[Q]uem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa a é 240 dias».

Como crime de mera atividade e doloso que é, tem como elementos constitutivos, objetivamente, a ação adequada a produzir um resultado consubstanciado na ofensa à honra ou consideração de outrem, e, subjetivamente, o dolo, constituído pelo conhecimento dos elementos objetivos do tipo e pela vontade de agir por forma a preenchê-los (artigos 13º e 14º do Código Penal).

No que respeita ao elemento subjetivo, e dando por reproduzido o que ficou dito supra, a este propósito, em relação à acusação pública, concluímos que nada se diz, na acusação particular apresentada, sobre o elemento emocional do dolo, enquanto tipo de culpa, habitualmente traduzido na expressão de que os arguidos atuaram “sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei” ou outra equivalente.

A este propósito, conforme ficou dito no Ac. TRG, 19/06/2017, Proc. 430/15.3GEGMR.G1 in www.dgsi.pt: «I) A alegação de que a arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal não é inócua e desnecessária, não passando de um protocolo ou fórmula pré-determinada acolhida pela prática judiciária, sem qualquer valor funcional. Ao contrário, a alegação da consciência da ilicitude, seja com a utilização daquela fórmula ou através da descrição mais objetiva desse facto da vida interior, corresponde à necessidade de descrever um dos elementos do tipo subjetivo, traduzido no dolo da culpa, o qual, segundo as modernas conceções dogmáticas da teoria do crime, defendidas entre nós por Figueiredo Dias, constitui uma categoria autónoma, relativamente ao dolo do tipo, ao passo que na conceção tradicional não se distinguia entre os elementos do tipo e os elementos do tipo de culpa. II) Na acusação deduzida nos autos, a assistente limita-se a alegar, em termos de factos relativos ao preenchimento dos elementos subjetivos, que ao dirigir-lhe as palavras "filha da puta" e "pretendia a arguida atingir a assistente na sua honra e consideração social, o que conseguiu". Esta articulação contém factos que integram o elemento volitivo do dolo (direto) e do elemento intelectual do dolo. Já em relação aos elementos integrantes da consciência da ilicitude (elemento emocional), habitualmente traduzido na expressão de que "o arguido atuou sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal", ou por qualquer outra que comporte o respetivo conteúdo, a acusação omite toda e qualquer referência. III) Concluindo-se, assim, que a acusação particular deduzida nos autos não contém a descrição dos factos integrantes da...

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