Acórdão nº 1276/18.2T9CVL.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 25 de Janeiro de 2023

Magistrado ResponsávelJOS
Data da Resolução25 de Janeiro de 2023
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam, em Conferência, os Juízes que compõem a 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra: I. Relatório 1. No âmbito dos autos de Processo Comum (tribunal Singular) registados sob o n.º 1276/18...., da Comarca ..., Juízo Local Criminal ..., foi proferida sentença, em 23/2/2022, cujo Dispositivo é o seguinte: “IV. DECISÃO: Pelo exposto, decide-se:

  1. Condenar a arguida AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física grave por negligência, p. e p. pelos arts. 15.º, al. a), 26.º e 148.º, n.ºs 1 e 3, por referência ao disposto no artigo 144.º, als. c) e d), todos do CP, na pena de 210 (duzentos e dez) dias de multa, à taxa de 25,00€ (vinte e cinco euros), o que perfaz 5.250,00€ (cinco mil duzentos e cinquenta euros).

  2. Condenar a arguida AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física grave por negligência, p. e p. pelos arts. 15.º, al. a), 26.º e 148.º, n.ºs 1 e 3, por referência ao disposto no artigo 144.º, al. d), todos do CP na pena de 190 (cento e noventa) dias de multa, à taxa de 25,00€ (vinte e cinco euros), o que perfaz 4.750,00€ (quatro mil setecentos e cinquenta euros).

  3. Condenar a arguida AA, em cúmulo jurídico das duas penas parcelares referidas em a) e b), pelo concurso efectivo de crimes referidos nessas alíneas, na pena única de 310 (trezentos e dez) dias de multa, à taxa diária de 25,00€ (vinte e cinco euros), o que perfaz 7.750,00€ (sete mil setecentos e cinquenta euros).

  4. Condenar a arguida AA no pagamento das custas do processo, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 513.º, n.ºs 1 e 3 do CPP e 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III do mesmo Regulamento, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC´s, atendendo à complexidade do processo, ao número de sessões de audiência de julgamento e ao número de pessoas inquiridas como testemunhas.” * Notifique.

    * Remeta certidão da sentença, com nota que ainda não transitou em julgado, conforme o solicitado (cfr. fl. 301), ao Conselho Médico-Legal.

    * Após trânsito: - Remeta-se boletins à D.S.I.C. – [cfr. art. 5.º, n.ºs 1, 2, al. a) e 3 e 6.º, al. a) da Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio].

    - Comunique para os efeitos tidos por convenientes ao Conselho Nacional da Ordem dos Médicos.” **** 2.

    A arguida, inconformado com a decisão, veio, em 18/4/2022, interpor recurso, extraindo da motivação as seguintes conclusões: 1. A Meritíssima Juíza do Tribunal a quo dá como provados alguns factos o que, com o devido respeito, implica que não fez a consideração e interpretação devida da prova produzida em sede de Audiência de Julgamento.

    2. Assim, a Meritíssima Juíza do Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos: “8) Como consequência directa e necessária da administração daquele fármaco, a ofendida sofreu, nesse mesmo dia, cerca das 18h30m, rotura uterina, pelo que teve que ser submetida a cesariana de urgência, com início às 18h49m e fim às 19h29m.

    9) A rotura uterina que a ofendida sofreu em resultado da administração daquele fármaco provocou-lhe dores abdominais excruciantes, tendo o feto entrado na cavidade abdominal da mãe.

    10) Ainda como consequência directa e necessária da administração daquele fármaco e da rotura uterina sofrida pela ofendida, o assistente BB nasceu em morte aparente, branco, hipotónico, sem reflexos, sem respiração e sem batimentos, sofreu asfixia aguda, com necessidade de intubação (índice APGAR 1).

    (…) 14) A Médica arguida tinha o dever de, conjugando os seus conhecimentos técnicos com os resultantes do acompanhamento da gravidez, obstar à administração daquele fármaco e, assim, evitar a verificação de um evento danoso para a vida e a saúde dos ofendidos.

    15) Ao expor a ofendida à acção do “misoprostol”, actuou a arguida sem o cuidado, atenção, perícia e cautelas que, como Médica especialista, naquelas circunstâncias, lhe eram exigíveis e de que era capaz, já que podia e devia ter previsto, que, com a administração daquele fármaco e com a progressão dos seus efeitos e do trabalho de parto com indução, poderia ofender o corpo e a saúde dos ofendidos, resultado que efectivamente se verificou e que a mesma previu, não se conformando com ele, ou provocar-lhes a morte, perigo a que os expôs e que previu, mas com o qual não se conformou e que se conseguiu evitar.

    16) A arguida sabia que a rotura uterina, a cujo risco submeteu a ofendida, é uma emergência obstétrica catastrófica, potencialmente fatal para a mãe e para o feto, e era meio apto a causar dores excruciantes, como também sequelas no útero que poderiam comprometer uma gestação posterior.

    17) A arguida agiu de forma livre, deliberada e consciente e sabia que a sua conduta, que previu poder ofender os assistentes mas com isso não se conformou, era proibida e punível pela lei penal.

    (…)” 3. Para dar estes factos como provados, o Tribunal a quo refere na Sentença o seguinte: “Quanto à indução do trabalho de parto da assistente, no dia 14-06-2018, com a administração, por via vaginal, de 50 microgramas de misoprostol e as consequências dessa concreta indução para os assistentes, o Tribunal teve em consideração: 1)As declarações da arguida que confirmou a sua profissão, a circunstância de ter acompanhado a segunda gravidez da assistente, (…) 2) Os esclarecimentos do Sr. Perito Dr. CC, nos termos do art. 158.º, n.º 1, al. a) do CPP, subscritor dos Pareceres da Consulta Técnico-Científica do Conselho Médico-Legal de Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia de fls. 302 e ss.; fls. 367 e ss. e fls. 566 e ss., que confirmou o teor dos Pareceres da Consulta Técnico-Científica do Conselho Médico-Legal de Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia de fls. 302 e ss. e de fls. 367 e ss. (o de fls. 566 e ss., conforme consta da acta de 28.10.2021, chegou aos autos no decurso da audiência de julgamento).

    (…) 9) Os Pareceres da Consulta Técnico-Científica do Conselho Médico-Legal de Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia de fls. 302 e ss.; de fls. 367 e ss. e de fls. 566 e ss., que foram essenciais para a formação da convicção do Tribunal, e que constituem tais provas periciais meios de prova vinculados, dotados de um especial valor probatório, constituindo o art. 163.º, n.º 1 do CPP uma excepção ao princípio geral da livre apreciação da prova pelo Juiz, princípio esse que está consagrado no art. 127.º do CPP, não divergindo, in casu, o Tribunal dos juízos contidos nesses três pareceres uniformes, coerentes, objectivos e robustos (cfr. art. 163.º, n.º 2 do CPP) que o lograram convencer.

    (…) - Já os Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em relação à assistente de fls. 290 e ss., esclarecimento de fls. 316 e Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal de fls. 350 e ss. em relação ao assistente, que também constituem prova pericial, não lograram o convencimento do Tribunal, divergindo o Tribunal, nos termos do art. 163.º, n.º 2 do CPP desses elementos periciais já que os mesmos são contrários às regras de experiência comum e aos registos clínicos de fls. 20 a 51, 160 a 161, 363 e Anexo e foram expressamente contrariados e afastados, de forma uniforme, coerente, objectiva e robusta pelos três Pareceres da Consulta Técnico-Científica do Conselho Médico-Legal de Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia de fls. 302 e ss.; de fls. 367 e ss. e de fls. 566 e ss. que, esses sim, lograram o convencimento do Tribunal e advêm de Srs. Peritos com formação médica especializada no domínio da obstetrícia.

    - Afastados também o foram os artigos estrangeiros de fls. 533 e ss. pois, como se disse supra, o Tribunal logrou ficar convencido com os Pareceres da Consulta Técnico-Científica do Conselho Médico-Legal de Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia de fls. 302 e ss.; de fls. 367 e ss. e de fls. 566 e ss. que, mormente, este terceiro parecer de fls. 566 e ss., os (a esses artigos) afasta expressamente, mencionando, nomeadamente, “esses estudos não avaliaram o misoprostol no contexto de maturação/indução do parto em grávidas de termo com cesariana anterior, (…) apresentando variações metodológicas que impedem o realização de meto-análises válidas”, sendo certo e seguro que não concernem, ao contrário dos três pareceres mencionados, à concreta assistente, ao concreto assistente e à concreta dose de misoprostol nas concretas circunstâncias em que foi administrada por decisão da concreta médica arguida.” 4. Face ao exposto, o douto Tribunal a quo formou a sua convicção para grande parte dos factos dados como provados apenas com base nos Pareceres da Consulta Técnico-Científica do Conselho Médico-Legal de Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia.

    5. É certo que o princípio da livre apreciação da prova é aqui limitado nos termos do disposto no artigo 163.º, n.º 1 do Código de Processo Penal (doravante designado CPP) como refere a douta Sentença. Consagra o artigo 163.º, n.º 1 do CPP que “O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.”. Contudo refere o n.º 2 deste mesmo artigo que “Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência.” 6. E foi exactamente da faculdade contida neste n.º 2 que a Meritíssima Juíza do Tribunal a quo usou para afastar outra prova pericial, nomeadamente, “os Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em relação à assistente de fls. 290 e ss., esclarecimento de fls. 316 e Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal de fls. 350 e ss. em relação ao assistente, que também constituem prova pericial” que segundo a mesma “não lograram o convencimento do Tribunal, divergindo o Tribunal, nos termos do art. 163.º, n.º 2 do CPP desses elementos periciais já que os mesmos são contrários às regras de experiência comum e aos registos clínicos de fls. 20 a 51, 160 a 161, 363 e Anexo e foram expressamente contrariados e afastados, de forma uniforme, coerente, objectiva e robusta pelos três...

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