Acórdão nº 863/22 de Tribunal Constitucional (Port, 21 de Dezembro de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Afonso Patrão
Data da Resolução21 de Dezembro de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 863/2022

Processo n.º 712/2022

3ª Secção

Relator: Conselheiro Afonso Patrão

Acordam na 3.ª secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores — Juízo de Instrução Criminal de Ponta Delgada, o Ministério Público interpôs o presente recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, referida adiante pela sigla «LTC»), do despacho proferido por aquele Tribunal em 7 de junho de 2022.

2. No âmbito dos presentes autos, o Ministério Público, por despacho datado de 25 de fevereiro de 2022, determinou o arquivamento do inquérito (fls. 459-472).

A ofendida requereu então a sua constituição como assistente e a abertura da instrução (fls. 485-498).

Distribuídos os autos, foi proferido despacho pelo juiz a quo, datado de 4 de maio de 2022, admitindo a intervenção da ofendida como assistente (fls. 510).

Seguidamente, foi proferido o despacho ora recorrido, pelo mesmo Juiz de Direito que havia admitido a constituição de assistente, foi proferido despacho, ora recorrido, que recusou aplicar a norma «ínsita no art. 40º/2, por referência, conjugadamente, ao nº 1/a) do mesmo preceito e aos arts. 17º e 268º/1/f), todos do CPP, na interpretação de que a decisão do JIC sobre a constituição de assistente determina o seu impedimento para a intervenção na instrução, por violação do princípio do juiz natural (art. 32º/9 da CRP) desproporcionalmente comprimido (art. 18º/2 da CRP) pelo legislador ordinário».

3. O Ministério Público interpôs então recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, que foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo (fls. 523).

Notificado para o efeito, o Ministério Público apresentou alegações pugnando pela improcedência do recurso, que concluiu nos seguintes termos:

« V. CONCLUSÕES

1. O M.mo juiz de instrução a quo identificou como violadora da Constituição a norma ínsita no art. 40º/ 2, por referência, conjugadamente, ao nº 1/ a) do mesmo preceito e aos arts. 17º e 268º/ 1/ f), todos do CPP, na interpretação de que a decisão do JIC sobre a constituição de assistente, proferida em sede de inquérito, determina o seu impedimento para a intervenção na instrução, por violação do princípio do juiz natural (art. 32º/ 9 da CRP) desproporcionalmente comprimido (art. 18º/ 2 da CRP) pelo legislador ordinário.

2. Como apontamento preambular à nossa alegação, devemos dizer que a questão colocada no recurso reveste transcendente relevância prática e tem inequívoco impacto sistémico no funcionamento do aparelho judiciário penal, uma vez que, a despeito da anunciada iniciativa de proposta de alteração legislativa apresentada pelo Governo ao Parlamento – e partindo do pressuposto que viesse a ser reposta a versão do art. 40.º do CPP anterior às alterações introduzidas pela Lei n.º 94/2021, de 21-12 – subsistirão sempre como controversos os efeitos das situações que ocorreram durante a vigência da versão do preceito conferida pela Lei n.º 94/2021. Manifestando as nossas dúvidas quanto à legitimidade de uma eventual disposição legal futura pretender disciplinar os efeitos transitórios pretéritos da (atual) versão do art. 40.º do CPP, parece-nos, s.m.o., que só uma apreciação em sede de fiscalização sucessiva de constitucionalidade poderia satisfatoriamente dar solução à situação entretanto gerada.

3. Donde, a manutenção do interesse e utilidade no conhecimento do objeto do presente recurso pelo Tribunal Constitucional – mesmo que, durante a sua pendência, venha a ser publicada Lei que altere a atualmente vigente versão do art. 40.º do CPP (já aprovada em 08-07-2022).

4. A evolução do conteúdo do art. 40.º do CPP, norma matricial no que concerne à tutela da “imparcialidade endoprocessual» tem registado uma tendência de sucessiva ampliação do seu círculo normativo (assim, PEDRO SOARES DE ALBERGARIA, «Os impedimentos entre a imparcialidade do juiz e funcionalidade do sistema. Notas sobre a recente alteração do art. 40.º CPP», Julgar Online, março de 2022, p. 2).

5. Aos sucessivos alargamentos dos fundamentos de impedimentos – soluções até agora consagradas, algumas impulsionadas por jurisprudência do Tribunal Constitucional, estabilizaram-se pelo decurso de 8 anos de vigência (desde 2013), podendo-se-lhes creditar uma aceitação doutrinal e jurisprudencial, se não unânime, ao menos generalizada, mas pacificada –, veio o legislador, através da Lei n.º 94/2021, proceder não apenas a uma alteração do regime, mas ao que com propriedade se poderá classificar de inversão dele, em “contra-ciclo” com a anterior tendência.

6. O seu recorte atual, fixado pela Lei n.º 94/2021, de 21-12, emerge a partir da Proposta de Lei 90/XIV, do Governo, e do Projeto de Lei 876/XIV (do PSD).

7. Na redação conferida pela Lei n.º 94/2021, de 21-12, o art. 40.º do CPP ficou com a seguinte redação (em itálico as alterações relativamente ao regime pretérito):

“1 – Nenhum juiz pode intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão relativos a processo em que tiver:

a) Praticado, ordenado ou autorizado ato previsto no n.º 1 do artigo 268.º ou no n.º 1 do artigo 269.º;

b) Dirigido a instrução;

c) Participado em julgamento anterior;

d) Proferido ou participado em decisão de recurso anterior que tenha conhecido, a final, do objeto do processo, de decisão instrutória ou de decisão a que se refere a alínea a), ou proferido ou participado em decisão de pedido de revisão anterior;

e) Recusado o arquivamento em caso de dispensa de pena, suspensão provisória ou a forma sumaríssima por discordar da sanção proposta.

2 – Nenhum juiz pode intervir em instrução relativa a processo em que tiver participado nos termos da alínea a) ou e) do número anterior.

3 – Nenhum juiz pode intervir em processo que tenha tido origem em certidão por si mandada extrair noutro processo pelos crimes previstos nos artigos 359.º ou 360.º do Código Penal.”

8. O direito à tutela jurisdicional efetiva, proclamado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (e densificado no seu n.º 4), consagra, essencialmente, o direito de os particulares recorrerem aos tribunais a fim de obterem, em prazo razoável, uma decisão judicial, com força de caso julgado, que incida sobre as suas pretensões, desde que apresentadas de forma procedimentalmente adequada e, bem assim, o direito a obter a execução de tais decisões.

9. Ou seja, encontramo-nos perante um complexo de direitos, constitucionalmente sustentados, garantes, individual e institucionalmente, da obtenção, por parte dos tribunais, da adequada proteção jurisdicional das suas legítimas pretensões. Ou seja, o direito à tutela jurisdicional efetiva garante que, numa ótica instrumental, processual e procedimental, se encontra constitucionalmente assegurada aos particulares uma adequada resposta jurisdicional às suas legítimas pretensões, regularmente suscitadas, independentemente da sua valia substantiva.

10. No caso que agora nos ocupa, não se vislumbra que a alteração legislativa precipitada pela Lei n.º 94/2021 ao art. 40.º do CPP, se configure, em qualquer medida, como uma violação dessas garantias de acesso aos tribunais a fim de obter uma decisão jurisdicional incidente sobre pretensões processualmente deduzidas, designadamente quanto à admissão de intervenientes como assistentes, em fase de inquérito, precludindo, assim, a possibilidade de o mesmo juiz intervir em julgamento nesse mesmo processo.

11. Importa sublinhar, desde logo, que o incidente de admissão de pessoas com legitimidade para se constituírem assistentes no processo criminal (art. 68.º, n.º 1 do CPP) reveste uma natureza jurisdicional, sujeita a contraditório (art. 68.º, n.º 4 do CPP), conquanto seja uma intervenção eminentemente formal, que aprecia a verificação de requisitos legais, sem necessidade de apuramento de circunstancialismo factual respeitante ao acervo factual imputado ao arguido ou suspeito.

12. Poderá dizer-se que pelo facto de um interveniente processual ser admitido a intervir como assistente, e tal implicar que não possa ser o mesmo juiz a dirigir a fase (facultativa) de instrução ou de julgamento desse processo, o processo pode conhecer um “desaforamento” relativamente a uma regra de atribuição de competência anteriormente estabelecida quanto ao concreto juiz (substituto) titular do tribunal, designadamente em comarcas onde não haja Juízos de Instrução Criminal ou naqueles núcleos onde haja apenas um Juízo Local Criminal com competência residual em matéria de instrução criminal.

13. Porém, esse óbice a uma “estabilidade” do tribunal não decorre diretamente de qualquer violação dos direitos instrumentais de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva dos sujeitos processuais, plasmados no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, em conjugação com o disposto no n.º 4 da mesma disposição, resultando, antes, da legítima opção legislativa promotora de uma intensificação dos motivos de impedimentos do tribunal por anterior participação no processo.

14. Por seu turno, o princípio do juiz natural, ou juiz legal, consiste essencialmente na predeterminação do tribunal competente para o julgamento, «proibindo a criação de tribunais ad hoc ou a atribuição da competência a um tribunal diferente do que era legalmente competente à data do crime», como anotam GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª Ed revista, Coimbra Ed, Coimbra, 1993, p. 205) e, como ensinam os mesmos Autores, prosseguindo, «Juiz legal é não apenas o juiz da sentença em primeira instância, mas todos os juízes chamados a participar numa decisão (princípio dos juízes legais). A exigência...

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