Acórdão nº 861/22 de Tribunal Constitucional (Port, 21 de Dezembro de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Afonso Patrão
Data da Resolução21 de Dezembro de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 861/2022

Processo n.º 609/2022

3ª Secção

Relator: Conselheiro Afonso Patrão

Acordam na 3.ª secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte — Juízo de Instrução Criminal de Loures, o Ministério Público interpôs o presente recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, referida adiante pela sigla «LTC»), do despacho proferido por aquele Tribunal em 18 de maio de 2022.

2. No âmbito do inquérito nos presentes autos, foi proferido despacho, a 16 de fevereiro de 2022, admitindo a intervenção da ofendida como assistente (fls. 145).

Por despacho datado de 23 de fevereiro de 2022, o Ministério Público decidiu arquivar parcialmente o inquérito (fls. 153-155).

Discordando com a decisão de arquivamento, a assistente requereu a abertura de instrução. Tendo os autos sido distribuídos, para tramitação da fase processual da instrução, à mesma Juíza de Direito que havia admitido a constituição de assistente, foi proferido despacho, ora recorrido, que recusou aplicar a norma aplicar a norma constante do artigo 40.º, n. 2, conjugada com o n.º 1, alínea a) do mesmo preceito legal (na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 94/2021 de 21 de Dezembro) e com os artigos 17.º e 268.º, n.º 1, alínea f), todos do Código de Processo Penal (CPP) «quando interpretada no sentido de que a decisão do juiz de instrução que verse sobre a constituição de assistente nos autos, proferida em sede de inquérito, determina o seu impedimento para intervir na fase de instrução, por violação dos princípios do juiz natural e da tutela jurisdicional efectiva (cfr. artigos 32.º, n.º 9, e 20.º, ambos da Constituição da República Portuguesa» e decidindo, em consequência, que «sendo desaplicada a aludida norma, não se verifica qualquer impedimento da ora signatária no que respeita à sua intervenção na fase de instrução».

3. O Ministério Público interpôs então recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, que foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo (fls. 223).

Notificado para o efeito, o Ministério Público apresentou alegações pugnando pela improcedência do recurso, que concluiu nos seguintes termos:

1. « A Senhora juíza de direito a quo faz assentar a consideração da inconstitucionalidade (material) da norma contida no enunciado normativo conjugado e resultante dos artigos 40.º, n.º 1, al. a), na versão introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21-12, 268.º, n.º 1, al. f) e 68.º, n.ºs 3, al. b) e 4 todos do Código de Processo Penal, na interpretação de que o/a juiz/a que admite a intervenção de assistente nos autos, em fase de inquérito, fica, por esse facto, impedido/a de intervir em instrução, por violação dos princípios do juiz natural e da tutela jurisdicional efetiva (artigos 32.º, n.º 9 e 20.º, ambos da Constituição).

2. Invoca a M.ma Juíza a quo que não se afigura possível interpretar restritivamente o normativo legal do art. 40.º do CPP, por forma a excluir do respetivo âmbito determinados atos (como seria eventualmente o caso de uma inócua constituição de assistente), não sendo possível extrair que tal tenha sido o efetivo propósito do legislador, quando a letra da lei aponta precisamente no sentido inverso (cfr. artigo 9.º do Código Civil).

3. Porém, sendo que a previsão pelo legislador, de um impedimento como o ato de admissão de constituição de assistente em fase de inquérito – ou seja, uma intervenção inócua –, para a realização da instrução, configura uma solução com desvio injustificado à regra do juiz natural, com assento constitucional, a mesma careceria de ser motivada por razões da mesma grandeza, que reclamem o afastamento do magistrado judicial do caso e, por essa via, garantam uma justiça justa e equitativa.

4. Mais invoca que, contrariamente «ao que sucede, por exemplo, com a decisão de aplicação de uma medida de coação, em que o Juiz assume uma intervenção processual relevante em termos de contacto com a factualidade indiciada e com os meios de prova existentes, a decisão sobre a constituição de assistente respeita a uma mera análise de pressupostos formais relativos à legitimidade, tempestividade, representação judiciária e pagamento de taxa de justiça do requerente, que não importam uma análise substantiva do processo», e ainda,

5. (…) tal intervenção do Juiz não levanta, sob nenhum prisma, qualquer desconfiança relativamente à sua isenção e/ou imparcialidade e não justifica, a nenhuma luz, o seu impedimento para a fase processual posterior, i.e., para a fase de instrução, e

(…) Por fim, cumprirá realçar que tal solução legal será, ainda, geradora de atrasos consideráveis na tramitação dos processos judiciais, obstando a uma justiça célere e dificultando a prolação de uma decisão em tempo útil, valores que a Lei Fundamental quis igualmente proteger, ao consagrar o princípio fundamental da tutela jurisdicional efetiva (cfr. artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa).»

6. Face a essas considerações, entendeu recusar a aplicação da norma constante do artigo 40.º, n.º 2, conjugada com o n.º 1, alínea a) do mesmo preceito legal e os artigos 17.º e 268.º, n.º 1, alínea f), todos do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que a decisão do juiz de instrução que verse sobre a constituição de assistente nos autos, proferida em sede de inquérito, determina o seu impedimento para intervir na fase de instrução, por violação dos princípios do juiz natural e da tutela jurisdicional efetiva (cfr. artigos 32.º, n.º 9 e 20.º, ambos da Constituição da República Portuguesa).

7. Como apontamento preambular às nossas alegações, devemos dizer que a questão colocada no recurso reveste transcendente relevância prática e tem inequívoco impacto sistémico no funcionamento do aparelho judiciário penal, uma vez que, a despeito da anunciada iniciativa de proposta de alteração legislativa apresentada pelo Governo ao Parlamento – e partindo do pressuposto que viesse a ser reposta a versão do art. 40.º do CPP anterior às alterações introduzidas pela Lei n.º 94/2021, de 21-12 – subsistirão sempre como controversos os efeitos das situações que ocorreram durante a vigência da versão do preceito conferida pela Lei n.º 94/2021. Manifestando as nossas dúvidas quanto à legitimidade de uma eventual disposição legal futura pretender disciplinar os efeitos transitórios pretéritos da (atual) versão do art. 40.º do CPP, parece-nos, s.m.o., que só uma apreciação em sede de fiscalização sucessiva de constitucionalidade poderia satisfatoriamente dar solução à situação entretanto gerada.

8. Donde, a manutenção do interesse e utilidade no conhecimento do objeto do presente recurso pelo Tribunal Constitucional – mesmo que, durante a sua pendência, venha a ser aprovada nova Lei.

9. A evolução do conteúdo do art. 40.º do CPP, norma matricial no que concerne à tutela da “imparcialidade endoprocessual» tem registado uma tendência de sucessiva ampliação do seu círculo normativo (assim, PEDRO SOARES DE ALBERGARIA, «Os impedimentos entre a imparcialidade do juiz e funcionalidade do sistema. Notas sobre a recente alteração do art. 40.º CPP», Julgar Online, março de 2022, p. 2).

10. Aos sucessivos alargamentos dos fundamentos de impedimentos – soluções até agora consagradas, algumas impulsionadas por jurisprudência do Tribunal Constitucional, estabilizaram-se pelo decurso de 8 anos de vigência (desde 2013), podendo-se-lhes creditar uma aceitação doutrinal e jurisprudencial, se não unânime, ao menos generalizada, mas pacificada –, veio o legislador, através da Lei n.º 94/2021, proceder não apenas a uma alteração do regime, mas ao que com propriedade se poderá classificar de inversão dele, em “contra-ciclo” com anterior tendência.

11. O seu recorte atual, fixado pela Lei n.º 94/2021, de 21-12, emerge a partir da Proposta de Lei 90/XIV, do Governo, e do Projeto de Lei 876/XIV (do PSD). A primeira mantinha intocadas as alíneas a), b), d) e e) do n.º 1 do art. 40.º, aditando-lhe um número 2 nos termos do qual “[n]enhum juiz pode intervir em instrução relativa a processo em que tiver participado nos termos previstos nas alíneas a) ou e) do número anterior”; a mais disso, na alínea c) do n.º 1, sobre ter participado em julgamento anterior, estipulava um impedimento decorrente de o juiz ter participado em tentativa (frustrada) de celebração de acordo sobre a pena aplicável, que, no quadro da proposta sobre «negociação de penas» no âmbito da “Estratégia Nacional Anti-Corrupção 2020-2024” vinha propugnada.

12. Na redação conferida pela Lei n.º 94/2021, de 21-12, o art. 40.º do CPP ficou com a seguinte redação (em itálico as alterações relativamente ao regime pretérito):

“1 – Nenhum juiz pode intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão relativos a processo em que tiver:

a) Praticado, ordenado ou autorizado ato previsto no n.º 1 do artigo 268.º ou no n.º 1 do artigo 269.º;

b) Dirigido a instrução;

c) Participado em julgamento anterior;

d) Proferido ou participado em decisão de recurso anterior que tenha conhecido, a final, do objeto do processo, de decisão instrutória ou de decisão a que se refere a alínea a), ou proferido ou participado em decisão de pedido de revisão anterior;

e) Recusado o arquivamento em caso de dispensa de pena, suspensão provisória ou a forma sumaríssima por discordar da sanção proposta.

2 – Nenhum juiz pode intervir em instrução relativa a processo em que tiver participado nos termos da alínea a) ou e) do número anterior.

3 –...

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