Acórdão nº 1070/20.0T8BJA.E1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 30 de Novembro de 2022

Magistrado ResponsávelFERNANDO BAPTISTA
Data da Resolução30 de Novembro de 2022
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, Segunda Secção Cível I – RELATÓRIO AA, residente na Rua Vereador ..., em ..., instaurou contra BB, residente na Rua ..., em ..., ação declarativa com processo comum.

Alegou, em resumo, que é proprietário da fração autónoma designada pela letra “F”, correspondente ao 2º andar direito, destinado a habitação, sita na Rua ..., ..., em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob e nº ...05..., inscrito na matriz sob o nº ...43 da freguesia ... (...), a qual foi sua casa de morada de família até 12/6/2012, altura em que aí passaram a habitar, com permissão sua, a Ré, com quem viveu em união de facto e uma filha de ambos, justificando-se tal permissão com vista ao bem-estar da sua filha, motivo que deixou de existir, em Março de 2018, altura em que a sua filha passou a residir habitualmente consigo, permanecendo a Ré na fração contra a sua vontade apesar das interpelações para abandonar o imóvel.

Conclui pedindo a condenação da Ré a restituir-lhe o imóvel, bem como a pagar-lhe a quantia de € 25,00 diários por cada dia de atraso na desocupação do imóvel.

Contestou a Ré defendendo, em resumo, que é comproprietária da fração em partes iguais com o A., a qual foi adquirida por ambos e registada (apenas) a favor do A. por facilidades de recurso ao crédito e com vista a evitar a oneração da fração com eventuais penhoras motivadas por compromissos assumidos e incumpridos pelo seu ex-marido, com a promessa do A. de formalizar a contitularidade da Ré, depois de ultrapassados tais contingências financeiras e logo que o tivessem por oportuno, que a reiterada prática de atos materiais de posse na convicção de ser comproprietária da fração justifica a aquisição por usucapião e que, em qualquer caso, o A. age com abuso de direito por deduzir pretensão contrária à compropriedade “querida, afirmada e confessada” na constância da união de facto com a A.

Concluiu pela improcedência da ação e, em reconvenção, pediu o reconhecimento da aquisição, por usucapião, do direito de compropriedade sobre a fração ou, subsidiariamente, se declare transferido para a Ré o mesmo direito.

A A. respondeu à matéria da reconvenção por forma a concluir pela sua improcedência.

Admitido o pedido reconvencional, foi proferido despacho que afirmou a validade e regularidade da instância, identificou o objeto do litígio e enunciou os temas da prova.

Teve lugar a audiência de discussão o julgamento e depois foi proferida sentença, em cujo dispositivo designadamente se consignou: “

  1. Julgo a ação totalmente procedente e, em consequência, i.

    Reconheço o Autor AA dono e legítimo proprietário da fração autónoma designada pela letra “F”, correspondente ao segundo andar direito, do prédio urbano sito na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ...

    sob o n.º ...09 e inscrito na matriz sob o artigo ...43; ii.

    Condeno a Ré BB a restituir ao Autor o imóvel identificado em i) devoluto e livre de pessoas e bens.

    iii.

    Condeno a Ré BB a pagar ao Autor uma sanção pecuniária compulsória no montante diário de € 25,00 (vinte e cinco euros), por cada dia de atraso na desocupação do imóvel identificado em i).

  2. Julgo a reconvenção totalmente improcedente e, em consequência, absolvo o Autor AA de todos os pedidos reconvencionais deduzidos pela Ré BB.”.

    A Ré interpôs recurso de apelação, tendo a Relação de Évora, em acórdão, decidido julgar improcedente o recurso e, dessa forma, confirmar a sentença recorrida.

    ** De novo inconformada, vem a Ré BB, interpor recurso de revista (o qual entendeu ser “admissível por duas ordens de razões: a) porque os fundamentos da decisão de primeira instância e os da Relação são essencialmente diferentes (nº 3 do art. 671º do C.P.C.); b) porque está em causa questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito (a), 1, 672º); estão em causa interesses de particular relevância social (b), 1, 671º); há contradição entre o acórdão da Relação e acórdão(s) do Supremo (c), 1, 671º).”).

    Ou seja, a Ré – embora o não diga com a clareza que seria desejável – parece vir interpor recurso de revista normal “ao abrigo do nº 1 e 3 (este a contrario)” do artº 671º do C.P.C. (que cita), pois considera não haver dupla conforme e, outrossim (embora igualmente assim o não designando), interpõe (subsidiariamente, portanto) recurso de revista excepcional, com sustento no disposto nas diversas alíneas do artº 671º, nº2 do CPC – revista excepcional esta que tem como pressuposto a existência da dupla conforme.

    * Foi proferida decisão singular, na qual se decidiu: 1. Não admitir a revista normal ou comum, dada a verificação da situação de dupla conforme; 2. Determinar que, portunamente, os presentes autos sejam remetidos à Formação, para a verificação dos arrogados pressupostos que justifiquem, ou não, a pretendida revista excepcional.

    A Formação entendeu admitir a revista excepcional.

    ** A Ré apresentou alegações na revista, as quais remata com as seguintes CONCLUSÕES (quanto ao mérito da revista – ou, como diz, quanto aos seus fundamentos): h) Fixada que está a matéria de facto, dela decorre que se configura um contrato de mandato sem representação por via do qual o autor-recorrido se vinculou a transferir para a ré-recorrente a propriedade do imóvel, na proporção de metade, sendo que o mandatário – o autor-reconvindo - recusou e recusa o cumprimento voluntário da obrigação que assumiu.

    1. Vale no nosso sistema jurídico - no nosso edifício civilizacional, dir-se-ia até - o princípio estruturante pacta sunt servanda, com consagração positiva em diversíssimas disposições legais, mormente no art. 406º do Código Civil, com o correlativo da liberdade contratual e o corolário da boa fé.

    2. Porque vivemos numa sociedade organizada e civilizada, que proíbe e reprime o recurso à auto-tutela, tutela que é exercida pela hetero-tutela estadual, por via dos tribunais, mal se entenderia que, permitindo-se a auto-vinculação com emergência de obrigações e direitos, a lei – que é a civilização vinculante – não previsse e não consagrasse os meios de tornar efetivas os direitos e obrigações tal qual voluntariamente assumidos pelos contraentes.

    3. É seguramente em vista também dessas razões que a generalidade da doutrina jurídica e muita da jurisprudência dos tribunais superiores tem defendido e adotado a tesede que o artigo 830º do Código Civil deve aplicar-se, direta ou indiretamente (por analogia) a todas as obrigações de prestação de facto fungível constituídas por contrato ou pela lei, ou seja, da suscetibilidade de execução específica do contrato de mandato sem representação.

    4. Assim é mormente com o acórdão do STJ de 21/02/2022, in proc. 21074/18.2T8PRT.P1.S1.

    5. A regra é, com efeito, a do cumprimento específico, que, no caso, ainda é possível (o prédio mantém-se na titularidade formal exclusiva do mandatário); trata-se de obrigação e bem no comércio jurídico; a obrigação é infungível: o bem a transferir é aquele bem, que não qualquer outro.

    6. Seria um contra-senso que a lei criasse um efeito, uma obrigação (a obrigação de transferir para o mandatário os direitos adquiridos em execução do mandato) e depois deixasse ao critério do obrigado a possibilidade de optar pelo incumprimento (ainda que sujeitando-se a indemnização pecuniária) - nem seria caso de abuso de direito, que pressupõe, em qualquer caso, um direito ainda que exercido desviadamente: seria caso de não-direito.

    7. A inserção sistemática do art. 830º do C.C. aponta no sentido de que a regra dos contratos é a da sua suscetibilidade de execução judicial específica, justificando-se a excecionalidade daquela norma dada a particular natureza do contrato-promessa a cujo incumprimento a lei alia, em princípio, efeitos indemnizatórios atinentes ou correlacionados a sinal.

    8. Como consagrou o acórdão do STJ de 20/01/2022, in proc. 21074/18.2T8PRT.P1.S1, o artigo 830º do Código Civil deve aplicar-se, direta ou indiretamente (por analogia) a todas as obrigações de prestação de facto fungível constituídas por contrato ou pela lei.

    9. À luz da doutrina que emana dos Acórdãos do STJ de 29/06/2010, in proc. 476/99P1.S1, e de 2/03/2011, in proc. 823/06.7TBLLE.E1.S1, e no caso de não se concluir pela execução nos termos referidos nas alíneas precedentes (ou seja, subsidiariamente), o tribunal deveria – deverá – convolar a condenação do autor-reconvindo para a condenação na obrigação pessoal de transmitir para a ré-reconvinte, por força do preceituado no nº 1 do art. 1181º do C.C., a quota parte do prédio urbano em causa.

    10. Tratar-se-ia de um minus admissível e de adoção vinculada e oficiosa, tal como emana daqueles acórdãos.

    11. Procedente que seja o presente recurso – nos termos principais ou subsidiários apontados – obviamente que deixará de ter sentido a aplicação à recorrente de qualquer sanção pecuniária compulsória – sanção que teria sentido aplicar-se ao recorrido mas que exorbita do âmbito do presente recurso.

    12. São termos estes em que o recurso deve ser julgado procedente, com a consequente revogação do douto acórdão recorrido.”.

    * Contra alegou o Recorrido – Autor/reconvindo – , sustentando que deve ser negado provimento ao recurso, mantendo‐se o Acórdão recorrido.

    ** II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO Nada obsta à apreciação do mérito da revista.

    Com efeito, a situação tributária mostra-se regularizada, o requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC). Para além de que tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC).

    ** Considerando que o objecto do recurso (o “thema decidendum”) é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, atento o estatuído nas disposições...

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