Acórdão nº 792/22 de Tribunal Constitucional (Port, 17 de Novembro de 2022

Data17 Novembro 2022
Órgãohttp://vlex.com/desc1/2000_01,Tribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 792/2022

Processo n.º 601/19

2.ª Secção

Relatora: Conselheira Mariana Canotilho

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, em que é recorrente o Ministério Público e recorridos A. e outros, foi pelo primeiro interposto recurso de constitucionalidade, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (Lei do Tribunal Constitucional, adiante designada LTC), do despacho saneador-sentença proferido naquele tribunal, em 20 de maio de 2019, que, sustentando-se na jurisprudência do Tribunal Constitucional exarada no Acórdão n.º 328/2018 (retificado pelo Acórdão n.º 447/2018), recusou a aplicação da norma constante do n.º 8 do artigo 2.º do Novo Regime do Fundo de Garantia Salarial (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de abril).

Por outro lado, o saneador-sentença também recusou a aplicação da alínea a) do n.º 3 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de abril.

2. No que ora releva, importa notar, em síntese, que o processo a quo teve origem numa ação administrativa proposta pelos ora recorridos, em que pediram que o Fundo de Garantia Salarial fosse condenado a pagar determinados créditos salariais devidos pela sua entidade patronal, insolvente, decorrentes da cessação do respetivo contrato de trabalho.

A decisão recorrida sustentou o seguinte:

«Considera-se que o n.° 8 do artigo 2.° do DL n,° 59/2015, de 21/04, introduz um prazo de caducidade, durante o qual o trabalhador poderá exercer o seu direito ante o FGS com vista à proteção dos seus créditos laborais. Não se vê que o estabelecimento de um prazo de caducidade contrarie alguma norma da CRP, já que, nesta parte, a lei ordinária nada mais faz do que introduzir um prazo disciplinador ou ordenador para os seus destinatários, instando-os a uma atuação diligente e interessada em defesa dos seus direitos e durante um determinado período, que se considera satisfatório [um ano), obstando, assim, à incerteza e à insegurança jurídicas que se originaria na gestão de fundos públicos, caso fosse de exigir ao FGS uma espera sem prazo pela atuação dos trabalhadores.

Questão diversa é a que tem a ver com a possibilidade daquele prazo de caducidade poder ser objeto de suspensão ou interrupção, sabendo-se que por via do artigo 328.° do Código Civil "O prazo de caducidade não se suspende nem se interrompe senão nos casos em que a lei o determine".

E, compulsado o DL n.° 59/2015, de 21 de Abril, constata-se que nenhuma causa de interrupção ou suspensão do prazo de caducidade foi ali expressamente criada.

Nenhuma problemática de constitucionalidade do artigo 2.°, n.° 8, do DL n.° 59/2015, de 21 de Abril, se originaria, caso o deferimento dos pedidos de proteção dos trabalhadores ao FGS estivesse unicamente dependente da cessação do contrato de trabalho.

Acontece que não é assim. O diploma legal em análise, por opção do legislador de então, decidiu no seu artigo 1.°, n.° 1, alínea a), que "o Fundo de Garantia Salarial, abreviadamente designado por Fundo, assegura o pagamento ao trabalhador de créditos emergentes do contrato de trabalho ou da sua violação ou cessação, desde que seja;

a) Proferida sentença de declaração de insolvência do empregador:

b) Proferido despacho do juiz que designa o administrador judicial provisório, em caso de processo especial de revitalização".

Por outro lado, o n.° 2 do mesmo preceito legal, enuncia o seguinte: "Para efeitos do disposto no número anterior, o Fundo é notificado nos seguintes casos:

a) No âmbito do processo especial de insolvência, o tribunal judicial notifica o Fundo da sentença de declaração de Insolvência do empregador;

b) No âmbito do processo especial de revitalização, o administrador judicial provisório notifica o Fundo da apresentação do requerimento previsto no artigo 17.3 -C do CIRE com cópia dos documentos indicados nas alíneas a) e b) do artigo 24.e do CIRE e referidos na alínea b) do n.s 3 do artigo 17.s -C do CIRE, bem como do despacho do juiz que o designa".

E o artigo 5.°, n.° 2, alínea a), do mesmo decreto-lei, a propósito do requerimento do trabalhador, impõe que "o requerimento é Instruído, consoante as situações, com os seguintes documentos: 

a) Declaração ou cópia autenticada de documento comprovativo dos créditos reclamados pelo trabalhador, emitida pelo administrador de Insolvência ou pelo administrador judicial provisório" (todos os negritos e sublinhados meus).

Como se depreende das normas legais atrás enunciadas o sistema de proteção dos créditos laborais foi construído de modo a deixar o trabalhador, cujo contrato de trabalho cessa, totalmente dependente de requisitos acrescidos: a decisão judicial que decreta a insolvência da sua entidade empregadora ou do processo especial de revitalização (PER) ficando este último processo sujeito á vontade da própria empresa e de outros credores, que não exclusivamente os seus trabalhadores, conforme dimana do artigo 17.°-C, n.°1, do CIRE.

Pois bem, e precisamente neste concreto aspeto que se levanta uma pertinente questão sobre a compatibilidade de tal exigência com o texto da CRP, sobretudo, na medida em que não está prevista a instauração do processo de insolvência ou do processo especial de revitalização como causas suspensivas ou interruptivas do prazo de caducidade.

E não se olvide que o trabalhador fica totalmente subordinado a processos que não controla, ou seja, uma vez intentada a ação de insolvência ou requerido o processo especial de revitalização, nenhuma responsabilidade se lhe pode imputar pelo tempo que demoram tais processos na fase judicial, nomeadamente, até à obtenção de uma sentença declarativa da insolvência da sua entidade empregadora, transitada em julgado, numa ação judicial sempre sujeita a formalidades, diligências ou incidentes que não domina.

Aliás, veja-se que, no caso vertente, quer a nomeação de administrador judicial provisório no decurso do 2.° PER da entidade empregadora dos AA., quer a sentença declarativa da insolvência dessa mesma empresa, foram decisões proferidas já na vigência do DL n.° 59/2015, de 21 de Abril.

Portanto, é precisamente este ambiente de incerteza e insegurança jurídicas, que o diploma legal introduziu e não se pode aqui aceitar, pois criou um prazo de caducidade sem que igualmente lhe tivesse acoplado causas de interrupção ou suspensão protetoras do trabalhador ante eventos que não controla, como seja, o tempo de tramitação da ação de insolvência ou do processo de revitalização da sua entidade empregadora.

É tempo de convocar o entendimento expendido no douto acórdão do Tribunal Constitucional, sob o n.° 328/2018, "in" www.tribunalconstitucional.pt quando, em determinada passagem, diz o seguinte: «Porém, não é irrelevante a pouca clareza do regime legal, espelhada na norma em causa, considerada em si mesma ou sistematicamente inserida no diploma que a contém. O elemento de incerteza deste regime (evidenciado à saciedade, nestes autos, pelas posições assumidas na decisão recorrida, nas alegações e contra-alegações de recurso e no item 2.2., supra) compromete seriamente a efetividade da tutela que corresponde ao mecanismo do FGS, apresentando-se o complexo normativo do NRFGS, ao gerar estas interpretações díspares, com uma consistência pouco definida — para não dizer insuportavelmente ambígua —, cuja interpretação muito dificilmente assumirá um sentido minimamente claro, gerador de segurança nos destinatários beneficiários do seu âmbito de proteção. Isto ao ponto destes não disporem, consistentemente, da possibilidade de, agindo com normal diligência, anteverem com suficiente segurança o comportamento que devem adotar para formular atempadamente a sua pretensão junto do FGS, assim se comprometendo as exigências mínimas de certeza decorrentes do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2/ da Constituição)".

Ainda que o aludido acórdão do TC tenha sido emitido em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, nos termos do artigo 280.°, n.° 1, alínea a), da CRP, entende-se que, no caso em apreço, é de aplicar a doutrina plasmada nesse mesmo acórdão, razão pela qual, ao abrigo do artigo 204.° da CRP, ê de recusar a aplicação, neste caso concreto, por materialmente inconstitucional, do n.° 8 do artigo 2° do DL n ° 59/2015, de 21/04 (neste mesmo sentido, entre outros, vide o douto acórdão do TCAN, de 21/12/2018, proferido no processo n.° 01777/17.0BEPRT, inwww.dgsi.pt).

Mas não só. O caso em apreço evidencia-nos outra problemática: tem a ver com a aplicação do artigo 3.°, n.° 3, alínea a), do DL n.° 59/2015, de 21/04, que preceitua o seguinte:

"Ficam sujeitos ao novo regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado em anexo ao presente decreto-lei, sendo objeto de reapreciação oficiosa:

a) Os requerimentos apresentados, na pendência de Processo Especial de Revitalização, instituído peta Lei n.º 16/2012, de 20 de abril.

O comando legal acabado de citar abre a porta para uma reapreciação oficiosa de requerimentos que hajam sido apresentados ao FGS por trabalhadores na pendência de um PER. O legislador, nesta parte, introduz novamente um critério pouco claro e gerador de incerteza, porquanto, nunca tendo o artigo 318.°, n.°s 1 e 2, do Regulamento do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.° 35/2004, de 29/07 - que, nesta parte, se manteve em vigor até à aprovação do DL n.° 69/2015, de 21/04 - prevista expressamente o PER como uma das situações abrangidas pela proteção do FGS, vem agora o artigo 3.°, n.° 3, alínea a), do DL n,° 59/2015, de 21/04, admitir a reapreciação oficiosa dos requerimentos apresentados na pendência de um PER. É, no mínimo, introduzir um pressuposto de decisão aleatório, adstrito à mera "sorte" ou "azar" entre aqueles trabalhadores que, "tentando a...

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