Acórdão nº 781/22 de Tribunal Constitucional (Port, 17 de Novembro de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Lino Rodrigues Ribeiro
Data da Resolução17 de Novembro de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 781/2022

Processo n.º 399/2022

3.ª Secção

Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro

(Conselheira Joana Fernandes Costa)

Acordam, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

1. Nos presentes autos, vindos do Juízo de Instrução Criminal de Leiria – Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., o primeiro vem interpor recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), do despacho proferido pelo Juiz de Instrução, que não deu a sua concordância à suspensão provisória do processo proposta pelo Ministério Público e aceite pelo arguido, por considerar que os factos indiciados nos autos não eram criminalmente relevantes.

Para o efeito, recusou o tribunal recorrido a aplicação da norma incriminatória constante do n.º 3 do artigo 387.º do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto, por considerar que a mesma padece de inconstitucionalidade material (cf. as fls. 115-119). Fundou-se o juízo de inconstitucionalidade na violação dos artigos 18.º, n.º 2 e 27.º, n.º 1, da Constituição, por um lado, e do artigo 29.º, n.º 1, da Constituição, por outro. Ou seja, na violação tanto do princípio do direito penal do bem jurídico quanto no da legalidade criminal na dimensão de tipicidade.

2. Notificadas as partes para alegar, apenas o recorrente aduziu alegações, sustentando a não inconstitucionalidade, o que fez, fundamentalmente, nos seguintes termos:

«II

(Questões de constitucionalidade)

(...)

c) Interesses constitucionalmente protegidos

10. O artigo 1.º (República Portuguesa), que inaugura o texto e os “princípios fundamentais” da Constituição, dispõe: “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária” (na redação que lhe foi conferida pelo artigo 2.º da Lei Constitucional n.º 1/98 (Segunda revisão constitucional) , de 8 de julho).

No caso vertente releva aqui a passagem “sociedade (...) justa e solidária”. Procuraremos seguidamente determinar o tipo de enunciado normativo e o conteúdo dos conceitos de “sociedade justa” ou “sociedade solidária”.

11. A própria lei constitucional qualifica este enunciado normativo como “princípio fundamental”.

Neste caso a expressão “princípio” vale por uma regra jurídica com caráter finalístico ou teleológico, dirigida primacialmente ao legislador, ao qual impõe a prossecução e consecução de um “estado de coisas”, no caso uma sociedade “justa” e “solidária”, ou seja, é uma norma-fim ou norma programática.

Enquanto princípio “fundamental” expressa “valores” básicos que devem ser prosseguidos, e alcançados, pela sociedade e pelo legislador.

Aliás, será relevante notar a peculiar natureza deste enunciado constitucional, pois o mesmo estabelece um programa para consecução de um “estado de coisas” predicado como “valor”, não apenas social ou político, mas sobretudo, de “justiça” e “solidariedade”. Numa renomada conceituação, embora com terminologia própria, é o enunciado de uma “política que afirma um princípio” [Ronald Dworkin, “The model of rules I”, Taking Rights Seriously, 22 e 23, Duckworth: Londres, 1987, aludindo a “policies” (um standard que estabelece certas finalidades a realizar, geralmente de progresso económico, político ou social) e a “principles” (um standard que estabelece certas exigências de justiça, equidade ou de “outra dimensão da moralidade”)].

12. De todo o modo, como “princípio” (norma-fim ou norma programática) e como “valor” (fundamental), há certas caraterísticas que devem ser destacadas para os presentes efeitos.

Por uma parte, tal norma constitucional impõe ao legislador um dever jurídico, de atividade, em ordem à consecução daquelas finalidades (“sociedade justa e solidária”). Mas como são estabelecidos de forma “aberta”, com grande indeterminação normativa [(...)] o legislador tem uma considerável “margem de apreciação” quanto à determinação, atualização e concretização e aos modos concretos para alcançar tais finalidades.

13. Encetando pela norma-fim e pelo valor da “solidariedade” – por se afigurar que o conteúdo e sentido desse “fim” e desse “valor” está mais prontamente disponível para os nossos efeitos – , convém aqui atentar no seu aspeto de “solidariedade horizontal ou solidariedade pelos deveres ou solidariedade fraterna”, que é “(…) a solidariedade ou responsabilidade que a cada um cabe pela sorte e destino do demais membros da comunidade” e, como sublinha a melhor doutrina que estamos a citar, pode “integrar (...) os deveres para com os nosso companheiros da aventura humana – os animais, as plantas e até os rios, os mares – que, ao contrário do que por vezes se ousa afirmar não constituem direitos (humanos!) dos animais (…)” [José Casalta Nabais, “Algumas reflexões críticas sobre os direitos fundamentais” e “Algumas considerações sobre a solidariedade e a cidadania”, Por uma liberdade com responsabilidade / Estudos sobre direitos e deveres fundamentais, Coimbra: Coimbra Editora, 2007, pp. 108, 109, 137 (e nota de rodapé 18), 238 e 239 (e nota de rodapé 112)].

Ou seja, o dever (ou a competência) do legislador em ordem à realização da finalidade e do valor da “solidariedade fraterna”, numa interpretação atualista da mesma, em função da textura aberta do termo constitucional e em consonância com a “ideia de Direito” vigente na “consciência jurídica geral”, pode, legitimamente, ter por objeto a proteção dos “interesses dos animais”.

14. Essa “solidariedade fraterna” também poderá ser fundamentada numa ideia de “responsabilidade” humana: a “responsabilidade (…) pela preservação desses interesses dos animais por força de uma certa relação atual (passada e/ou potencial) que com eles mantém. Em causa está uma responsabilidade do humano, como indivíduo em relação com um concreto animal, e também como Homem, i.e., enquanto membro de uma espécie, cujas superiores capacidades cognitivas e de adaptação estratégica o investem numa especial responsabilidade para com os seres vivos que podem ser (e são) afetados pelas suas decisões e ações” (Teresa Quintela de Brito [“Crimes contra animais: os novos projetos-lei de alteração do Código Penal”, Anatomia do Crime, n.º 4, Jul-Dez de 2016, p. 104]).

15. Finalmente, não será impertinente referir, neste contexto, algum do acquis da mais abalizada teoria ética sobre a questão do “estatuto moral” dos animais, na exata medida em que esta doutrina poderá ser “recebida” pela Constituição, i. e. poderá ser “constitucionalizada” a título de parte integrante da “ideia de Direito” vigente na nossa comunidade, aqui e agora.

Assim, “Em virtude da sua vida mental, uma grande parte dos animais tem interesses consideravelmente fortes. Mas que interesses? Certamente o interesse em não sofrer. Para lá de qualquer dúvida razoável, o sofrimento é algo que toma a vida de um animal pior para ele mesmo. A força deste interesse depende da capacidade de sofrimento, que parece variar bastante em função da espécie. Mas a verdade é que, numa boa parte dos animais, esta capacidade não é muito inferior à nossa. Como nós, eles estão sujeitos não só à dor passageira e meramente incómoda, mas também à agonia”.

E, mas adiante, com direta e especial relevância para o nosso ponto, aduz o seguinte: “Os animais têm estatuto moral. Temos o dever de considerar seriamente os seus interesses, isto é, de atender ao seu bem-estar. Não devemos agir como se só os interesses dos seres humanos importassem. Contudo, os animais não têm direitos. Ponderados os interesses em conflito, pode ser eticamente aceitável — ou até obrigatório — fazer algo que não é do interesse de alguns animais, matando-os ou fazendo-os sofrer.” E, finalmente, “Estando assente que os animais têm interesses, não é difícil justificar a ideia de que temos obrigações para com eles. As tentativas de resistir a essa justificação fracassam.” [Pedro Galvão, Ética com Razões, FFMS: Lisboa, 2015, sob a epígrafe “Além da vida humana / As fronteiras da ética”, pp. 58 a 74 (maxime, pp. 61, 62, 66 e 67) e, no plano jurídico, CARLA AMADO GOMES, “Direito dos animais: um ramo emergente?”, RJLB, Ano 1 (2015), n.º 2, pp. 366 e 367.]

16. Mas também poderá relevar no presente contexto, por si próprio, mas até em conjugação com o valor da “solidariedade”, o “princípio” de uma sociedade “justa”.

Com efeito, um dos mais eminentes cultores da “teoria da justiça” assevera que “certamente é errado ser cruel para os animais e a destruição para de toda uma espécie pode ser um grande mal. A capacidade para sentimentos de prazer e sofrimento e para as formas de vida das quais os animais são capazes, claramente impõe deveres de compaixão e humanidade no seu caso” [John Rawls, A Theory of Justice, 2.ª ed., revista, Belknap Press: Cambridge, Massachusetts, 1999, pp. 444 e 448 (embora exprimindo escrupulosa e metódica hesitação sobre a integração da “conduta correta relativamente aos animais e ao resto da natureza” no âmbito da sua celebérrima teoria, denominada “justice as fairness”)].

17. Concluímos, assim, que o dever (responsabilidade ou competência) constitucional do legislador, em ordem à consecução de uma sociedade “justa” e, sobretudo, “solidária”, pode integrar a proteção dos interesses dos animais, em particular aqueles relativos ao respetivo “bem-estar”, que por tal via ficam a valer como “interesses constitucionalmente protegidos”.

Este novo âmbito do dever (ou competência) constitucional do legislador, em ordem à consecução de uma sociedade “justa e solidária” preocede de uma atualização do sentido das normas constitucionais (no caso, que impõem “tarefas” e “fins” ao Estado), uma fenomenologia com larga tradição nas mais maduras experiências constitucionais, e que encontra superlativa expressão no dictum...

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