Acórdão nº 793/22 de Tribunal Constitucional (Port, 17 de Novembro de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Mariana Canotilho
Data da Resolução17 de Novembro de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 793/2022

Processo n.º 952/19

2.ª Secção

Relatora: Conselheira Mariana Canotilho

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Juízo de Trabalho de Leiria (Tribunal Judicial da Comarca de Leiria), em que é recorrente o Ministério Público e recorrida A., foi pelo primeiro interposto recurso de constitucionalidade obrigatório ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, adiante designada por LTC), da sentença proferida por aquele Tribunal, em processo especial por acidente de trabalho, em 12 de maio de 2019 (fls. 265-282).

2. Em consequência de acidente de trabalho que vitimou a ora recorrida, foi instaurado o competente processo no tribunal a quo, que declarou a existência de uma obrigação de pagamento, por parte da entidade empregadora, pela qual responde a entidade seguradora, sem prejuízo do direito de regresso sobre aquela, entre outras prestações, de uma prestação suplementar por assistência a terceira pessoa, no valor mensal de € 397,50 com início em 27.07.2016, a pagar 14 vezes ao ano e atualizável anualmente de acordo com a atualização da RMMG”. Para o que aqui releva, o acórdão recorrido dispõe o seguinte:

“Atendendo, ainda, a que necessita de ajuda permanente de terceira pessoa pelo período de 6 horas diárias, tem direito à prestação suplementar prevista nos arts 53° a 55° da LAT.

No que a esta matéria respeita temos que:

Conforme resulta do auto de junta médica, a autora, em virtude do acidente de trabalho sofrido, padece, para além do mais, de amputação pelo terço distal do úmero.

Atendendo às inerentes dificuldades nas atividades do dia-a-dia causadas por tal incapacidade, como sejam as relacionadas com higiene pessoal, confeção de alimentos, arranjo de roupas, entre outras, dada a "perda" do membro superior direito, encontra-se necessitada de ajuda de terceira pessoa pelo período de 6 horas diárias, conforme parecer dos srs peritos médicos. A reparação das consequências de um acidente de trabalho que determine uma situação de dependência do sinistrado para as tarefas básicas diárias, implica a atribuição da denominada "prestação suplementar para assistência a terceira pessoa", prevista nos arts 53° a 55° da Lei n° 98/2009 de 04 de setembro (de ora avante LAT/2009).

Como decorre do art 53°, n°s 1 e 2 da LAT/2009, esta prestação suplementar destina-se, nos termos da lei, a "compensar os encargos com assistência de terceira pessoa em face da situação de dependência em que se encontre ou venha a encontrar o sinistrado por incapacidade permanente para o trabalho, em consequência de lesão resultante de acidente" e "depende de o sinistrado não poder, por si só, prover à satisfação das suas necessidades básicas diárias, carecendo de assistência permanente de terceira pessoa.".

Esta prestação suplementar era já prevista no art 19° da Lei n° 100/97, de 13 de setembro (de ora avante LAT/1997).

Como diferença fundamental, face ao regime atual, o facto de a prestação ser calculada tendo por referência, como seu limite máximo, a remuneração mínima mensal garantida. Diversamente, a LAT/2009 toma como limite máximo o valor de 1.1. do IAS, substancialmente inferior à RMMG (1.1. do IAS hoje de € 479,34 e à data do acidente de € 461,14).

Tendo em atenção que a natureza das coisas determina que a sinistrada, para prover às suas necessidades, tenha de contratar e remunerar terceira pessoa para lhe dar apoio diário, o montante de 1.1. do IAS é manifestamente inferior ao que receberia um trabalhador do serviço doméstico (correspondente, pelo menos, à retribuição mínima mensal garantida, atualmente de € 600,00).

Cabe perguntar quem, em situações normais, se prestaria a realizar tais tarefas tendo como referência tal montante?

E não é a justa reparação dos trabalhadores pelas consequências derivadas de acidentes de trabalho princípio consagrado na nossa Lei Fundamental (art 59° n° 1 alínea f) da CRP)?

Seria injusto e gravoso para a sinistrada ter o encargo de pagar, a pessoa com quem celebrasse contrato de trabalho, remuneração superior à que resulta do limite máximo imposto legalmente para esta prestação suplementar, dado que manifestamente contrário ao princípio da "justa reparação", sendo certo que o princípio que norteou a consagração deste direito à prestação suplementar foi o de compensar os sinistrados, em situação de dependência, pelos encargos que tenham de suportar com a contratação de terceiros.

Por outro lado, seria violador do princípio constitucional da igualdade permitir que um trabalhador que tivesse sofrido um acidente de trabalho antes de 01 de janeiro de 2010, com consequências para a sua autonomia no dia-a-dia, determinantes da atribuição desta prestação suplementar, tenha direito a uma prestação para assistência de terceira pessoa de montante substancialmente superior ao de um trabalhador que sofra um sinistro após essa data, sendo certo que, conforme supra, o valor do IAS é muito inferior ao da RMMG e que durante muitos anos não foi atualizado, nem sequer de acordo com a taxa de inflação.

O princípio da igualdade é um princípio estruturante da nossa Ordem Jurídica e um dos pilares de um Estado de Direito Democrático e Social.

Conforme J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in "Constituição da República Portuguesa Anotada" - 3a edição, 1993, fls 124 a 131 - na "dimensão democrática", o princípio da igualdade exige a explícita proibição de discriminações (positivas e negativas) na participação no exercício do poder político..." na sua dimensão social acentua a função social "impondo a eliminação das desigualdades fácticas (económicas, sociais e culturais), de forma a atingir-se a igualdade real...", protegendo-se, assim, a "igual dignidade social" de todos os cidadãos".

São inadmissíveis as "diferenciações de tratamento sem qualquer justificação razoável", estando totalmente proibido o "arbítrio", nomeadamente do legislador, apesar de não se coartar a "liberdade de conformação legislativa".

Proíbe-se, assim, a "discricionariedade legislativa", impondo que a diferenciação tenha um fundamento racional e objetivo, seja materialmente fundada " sob o ponto de vista da segurança jurídica, da proporcionalidade, da justiça e da solidariedade.".

E só podemos concluir que a alteração legislativa ocorrida não obedeceu a qualquer critério objetivo, é irracional, não materialmente fundada, conduzindo à injusta diferenciação de cidadãos na mesma posição somente pelo facto de terem sofrido acidentes de trabalho em datas diferentes.

Em referência à Proposta de Lei n° 88/X, aprovada em Conselho de Ministros, que visava proceder à regulamentação da matéria de acidentes de trabalho e doenças profissionais, e que previa que o referencial para o cálculo desta prestação (entre outras) passasse a ser o que resulta do montante da pensão mínima mais elevada do regime geral da Segurança Social (in DAR II série A n° l/X/2 de 16-09-2006), escreveu Viriato Reis in "Nótulas sobre a Proposta de Lei que regulamenta o Código do Trabalho relativamente a acidentes de trabalho e doenças profissionais" in Maia Jurídica Ano V, n° 1 (Jan - Junho 2007): "uma alteração tão significativa nos direitos dos pensionistas, sinistrados e familiares seus beneficiários, com forte incidência nos valores pecuniários em que os mesmos se traduzem, exigiria uma explicação do legislador quanto à opção tomada de alteração do referencial-base para o cálculo de todas essas prestações. Todavia, da exposição de motivos da PL não consta qualquer referência a essa matéria, sendo certo que na parte preambular do diploma se referem outras alterações e aspectos que o próprio legislador considera serem inovatórios e, por isso, merecedores de serem destacados.".

Continuando na análise desta inversão de posição do legislador, que já se adivinhava na vigência do CT2003, conforme supra, mas agora com referência ao Projeto Lei n° 786/X, que está na origem da Lei n° 98/2009, de 04 de setembro, publicado na separata do DAR n° 104, de 30-05-2009, escreveu ainda o mesmo Ilustre Autor, in "A Lei de Acidentes de Trabalho Aspetos Controversos da Sua Aplicação", cujo texto foi apresentado na Conferência Comemorativa do Centenário da 1a Lei de Acidentes de Trabalho, organizada pelo Instituto de Seguros de Portugal, que decorreu em 28.11.2013:

"Foi, assim, apresentado o Projecto de Lei 786/X, no qual o referencial para o cálculo daqueles subsídios e prestações complementares já previstos no regime anterior (da LAT de 1997) passou a ser o valor de 1,1 IAS, o que, como se sabe, veio a ser consagrado na LAT de 2009.

Ora, também quanto a esta opção o legislador não deu qualquer explicação, sendo que na exposição de motivos do Projecto de Lei surgem elencados alguns dos aspectos que os deputados proponentes entenderam que mereciam destaque, sem mencionar esta alteração a que estamos a fazer referência, e tendo, simultaneamente, deixado escrito que não se visava romper com o regime jurídico anterior."

Com efeito, conforme exposição de motivos deste projeto lei, o mesmo não visava "romper com o regime jurídico estabelecido quer pela Lei n° 100/97, de 13 de setembro, regulamentada pelo Decreto-Lei n° 143/99, de 30 de abril, quer pelo Decreto-Lei n° 248/99, de 2 de julho, quer mesmo pelas disposições normativas constantes no anterior Código do Trabalho entretanto revogadas, mas sim proceder a uma sistematização das matérias que o integram, organizando-o de forma mais inteligível e acessível, e corrigir os normativos que se revelaram desajustados na sua aplicação prática, quer do ponto de vista social, quer do ponto de vista constitucional e legal (...)"

Mas o certo é que se "rompeu" efetivamente com o regime anterior consagrando um regime de reparação que, no que a esta prestação...

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