Acórdão nº 258/21.1PBBGC.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 24 de Outubro de 2022

Magistrado ResponsávelTERESA BALTAZAR
Data da Resolução24 de Outubro de 2022
EmissorTribunal da Relação de Guimarães

- Tribunal recorrido: Tribunal Judicial da Comarca de Bragança - Juízo L. Criminal de Bragança.

- Recorrente: O Ministério Público.

- Objecto do recurso: No processo comum com intervenção de tribunal singular n.º 258/21.1PB BGC, do Tribunal Judicial da Comarca de Bragança - Juízo L. Criminal de Bragança, foi proferida sentença, na qual, no essencial e que aqui importa, se decidiu o seguinte: “IV-DECISÃO Pelo exposto, julga-se a acusação pública improcedente nos termos supra expostos, absolvendo-se o arguido V. M., da prática dos crimes que lhes estavam imputados na douta acusação pública. E igualmente se julga improcedente o pedido efectuado pelo Ministério Público na douta acusação que em caso de condenação do arguido, conforme disposto no artigo 82º-A, do Cód. de Proc. Penal, conjugado com o artigo 21º, n.º1 e 2, da Lei n.º112/2009, de 16 de setembro.”.

(…)” – (o destacado e sublinhado é nosso).

***Inconformado com a supra referida decisão o Ministério Público, dela interpôs recurso, terminando a sua motivação com as conclusões seguintes (transcrição): “1. No âmbito da audiência de discussão e julgamento o arguido confessou integralmente e sem reservas os factos que lhe foram imputados pelo Ministério Público em sede de acusação pública, não tendo havido qualquer oposição do arguido à sua própria confissão.

  1. Ao declarar não provados os factos supra enunciados, respeitantes ao elemento subjectivo dos tipos de crimes imputados ao arguido pelo Ministério Público, o Tribunal omitiu as consequências legais da confissão integral e sem reservas.

  2. Tendo o Tribunal formado a sua convicção acerca da matéria de facto na confissão livre, integral e sem reservas prestada pelo arguido em julgamento, conjugada com a demais prova documental constante dos autos, surge como absolutamente contraditório e incongruente que o Tribunal não tenha dado como provada a totalidade da matéria de facto constante da acusação.

  3. Os factos praticados pelo arguido revelam um especial desvalor ao nível da intensidade da violência, perante os seus filhos menores C. M. e R. D. expondo-os a violência contra o património familiar e contra o seu espaço habitacional e, por tal razão, ofendendo-os severamente no seu bem-estar psíquico.

  4. O tipo legal do crime de violência doméstica visa, acima de tudo, proteger a dignidade humana, tutelando, não só, a integridade física da pessoa individual, mas também a integridade psíquica, protegendo a saúde do agente passivo, tomada no seu sentido mais amplo de ambiente propício a um salutar e digno modo de vida.

  5. A exposição das crianças à violência parental constitui uma forma séria de vitimização das crianças, com sérias implicações no seu desenvolvimento. Constitui ainda um factor de risco para a replicação de dinâmicas relacionais violentas no futuro.

  6. No caso não existem dúvidas de que a conduta desenvolvida pelo arguido preenche a factualidade típica da violência doméstica, quer quanto aos elementos objectivos, quer subjectivos. Com efeito, o arguido, diante dos seus filhos C. M., nascida em ..-12-2004, e R. D., nascido em ..-08-2006, de forma muitíssimo violenta e censurável destruiu o recheio da habitação onde moravam em conjunto, ofendendo, portanto, o espaço habitacional destes, que se constitui como um referencial de segurança e que, com o comportamento do arguido foi irremediavelmente colocado em causa.

  7. No que concerne à alteração substancial dos factos operada pelo Tribunal a quo, antes de mais deveremos assinalar que o Tribunal não comunicou quaisquer novos factos que importem alteração dos factos constantes da acusação pública, pelo que o Ministério Público desconhece os factos que, no entendimento do Tribunal, geraram a alteração substancial de factos.

  8. A alteração substancial dos factos descritos na acusação implica sempre apuramento de factos novos, ou modificação dos descritos, que não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação (art. 359.º, n.º 1, do Código de Processo Penal). O que não sucedeu no caso concreto.

    O Tribunal não comunicou, nem fez constar da sentença recorrida, quaisquer factos novos que não constavam da acusação pública.

  9. Ainda que o Tribunal considerasse que a factualidade referente ao crime de coacção imputado pelo Ministério Público ao arguido integraria, ao invés, a prática de crime de violência doméstica, o Tribunal não deveria ter procedido à comunicação aos sujeitos processuais que iria operar uma alteração substancial dos factos. Os factos já se encontravam imputados ao arguido na acusação pública pelo que a comunicação da alteração substancial dos factos carece de qualquer justificação legal.

  10. Consequentemente deverá o Tribunal da Relação revogar a parte da sentença que determinou a extracção de certidão da acusação pública e a remessa da mesma ao Ministério Público para efeitos de denúncia quanto a factualidade atinente aos novos factos, os quais são desconhecidos.

  11. O Tribunal recorrido entendeu, também, que os factos relacionados com o crime de coacção na forma tentada perpetrado pelo arguido contra M. M. seriam susceptíveis de qualificação no tipo crime de violência doméstica e não no tipo de crime de coacção.

  12. Sucede que M. M., nascida em ..-10-1996, maior de idade à data dos factos, é enteada do arguido e não coabita com este, pelo que a relação familiar ora descrita não é passível de protecção pela previsão do tipo de crime de violência doméstica, conforme dispõem as várias alíneas do artigo 152.º, n.º 1 do Código Penal.

  13. As expressões usadas pelo arguido dirigidas a M. M.: “ «Vinde já todos para cá, para reconstruir o que destruí e começar do zero, ou então deito fogo à casa» (…) «estou aqui em frente ao carro e estou prestes a destruí-lo todo se não vierdes em 10 minutos» (…) e «se não vindes para casa pego fogo a tudo»” foram objectivamente capazes de coarctar a liberdade individual de M. M., tendo como derradeiro intuito fazer com que esta se deslocasse para a habitação do arguido, ainda que contra a sua vontade.

    Nestes termos, deverá dar-se provimento ao recurso e, aproveitando- se a prova produzida no processo, determinar-se a condenação do arguido pela factualidade constante da acusação pública ou, assim não se entendendo, revogando-se a sentença recorrida e determinando-se a sua substituição por outra que condene o arguido nesses mesmos termos.”.

    – (O destacado e sublinhado é nosso)*O recurso foi admitido.

    *O Ex.mº Procurador Geral Adjunto, nesta Relação, emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

    *Cumprido o disposto no artigo 417º, n.º 2, do C. P. Penal, não veio a ser apresentada qualquer resposta.

    *Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, prosseguiram os autos para conferência, na qual foi observado todo o formalismo legal.

    **- Cumpre apreciar e decidir: A) - É de começar por salientar que, para além das questões de conhecimento oficioso, são as conclusões do recurso que definem o seu objecto, nos termos do disposto no art. 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

    1. – No recurso, no essencial, o Ministério Público entende: - Que a sentença recorrida padece de erro notório na apreciação da prova e contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.

    *- C - Matéria de facto dada como provada e não provada, na 1ª instância e sua motivação - (transcrição): “II- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO Da prova produzida na audiência de julgamento resultaram os seguintes: Factos provados com interesse para a decisão da causa: 1. O arguido V. M. vive em comunhão de cama, mesa, e habitação com S. P., há cerca de 19 anos, tendo fixado a sua última residência na Avenida …, n.º …, em Bragança.

  14. Dessa união nasceram três filhos, A. B., nascida a ..-08-2002, C. M., nascido em ..-12-2004 e R. D., nascido em ..-08-2006.

  15. S. P. é mãe de M. M., nascida em ..-10-1996.

  16. O arguido padece de perturbação de uso de álcool, o que potencia a sua agressividade e impulsividade.

  17. No dia 21-07-2021, cerca das 23H30, após ter ingerido bebidas alcoólicas, o arguido dirigiu-se à sua residência, encontrando-se no interior da mesma os seus filhos C. M. e R. D..

  18. O arguido após entrar em casa e bater com força a porta de entrada da habitação, dirigiu-se à cozinha e, na presença dos seus filhos, destruiu inúmeros objectos e alimentos que ali se encontravam, designadamente, louças, mobiliário e a máquina de lavar a louça, deslocou electrodomésticos do lugar e atirou-os ao chão, inutilizando-os.

  19. Na casa de banho da habitação, o arguido destruiu louça decorativa ali existente e, num dos quartos da habitação, destruiu a porta de entrada e atirou mobiliário e diversos objectos decorativos para o chão, inutilizando-os.

  20. O arguido inutilizou, ainda, a persiana de janela que dá acesso à Avenida ....

  21. Os seus filhos C. M. e R. D. aproximaram-se do mesmo e pediram-lhe para cessar com tal comportamento, continuando este a destruir os objectos que encontrava pelo caminho, tendo os seus filhos saído de casa a correr.

  22. De seguida, o arguido contactou, por intermédio de telefone, M. M. e proferiu-lhe as seguintes expressões: “Vinde já todos para cá, para reconstruir o que destruí e começar do zero, ou então deito fogo à casa (…) estou aqui em frente ao carro e estou prestes a destruí-lo todo se não vierdes em 10 minutos”.

  23. Passado pouco tempo, o arguido surge na via pública, nas imediações da sua residência, munido com um martelo, e, desferindo um golpe com o referido objecto, partiu o retrovisor do veículo com matrícula UV registado em nome de M. M., que ali se encontrava parqueado e que se trata de veículo utilizado pelos membros da família.

  24. Ao ver M. M. e a sua filha A. B., que acabavam de chegar àquele local e tentavam falar com o arguido, este começou a correr atrás das mesmas pela Avenida..., com o martelo em suspensão, tendo estas corrido em fuga até uma esplanada onde se encontravam pessoas e aí se refugiaram, até à chegada da Polícia de Segurança Pública.

  25. Já na presença da Polícia de Segurança Pública o arguido...

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