Acórdão nº 39/19.2JELSB-A.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 26 de Outubro de 2022
Magistrado Responsável | PEDRO LIMA |
Data da Resolução | 26 de Outubro de 2022 |
Emissor | Court of Appeal of Coimbra (Portugal) |
ACÓRDÃO Acordam, em conferência, os juízes da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra: I – Relatório 1.
No Juízo de Instrução Criminal de Viseu (J1), do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, e no processo em que é arguido AA, solteiro, estudante, natural de ..., ..., nascido a .../.../1999, filho de BB e de CC, residente na Rua ..., ..., ..., ..., foi em 26/05/2022 proferido despacho que indeferiu o requerimento daquele arguido para restituição de determinados bens que no decurso do inquérito lhe haviam sido apreendidos, no mesmo despacho e pelo contrário sendo tais bens declarados perdidos a favor do Estado.
2.
É dessa decisão que o arguido recorre, pugnando pela revogação do despacho e determinação da restituição dos bens, das suas motivações de recurso extraindo as seguintes conclusões: «I – O presente recurso vem interposto do douto despacho (…) que decidiu “- Indeferir o pedido de restituição de bens; - Declaram-se os objetos apreendidos perdidos a favor do Estado nos termos do artigo 35 DL 15/93”.
II – Por requerimento apresentado em juízo a 03/06/2019, o ora recorrente solicitou a devolução de diversos bens que haviam sido apreendidos ao mesmo, a saber: Computador portátil da marca ..., modelo ...; Carregador do computador portátil, marca ...; Recetor Bluetooth, marca ..., que se encontrava conectado numa porta USB do lado esquerdo do computador; Telemóvel Apple ... e respetiva capa de couro, também marca ..., onde se encontrava inserido.
III – Tal requerimento foi inicialmente alvo de um despacho que dizia expressamente que “logo que não se revelar necessária a manutenção da sua apreensão serão entregues ao arguido” – após se realizar a perícia.
IV – Tal despacho proferido já há muito que transitou em julgado! (pois, o mesmo foi notificado a 07/06/2019).
V – Ainda, a 07/04/2022, foi promovida a sua restituição por “não haver indícios que tais objetos tenham sido adquiridos de forma ilegal e não haver razões para serem declarados perdidos a favor do Estado ou retirados do comércio jurídico, sendo certo que tais objetos já foram devidamente examinados, não se perdendo a eventual prova que putativamente houvesse necessidade de produzir”.
VI – Note-se que os bens anteriormente referidos estavam na posse do arguido, e são da sua propriedade.
VII – A declaração de perda a favor do Estado depende da verificação de um dos seguintes requisitos: ou de que tais bens tenham servido à prática de uma infracção ou que os mesmos tenham sido produzidos e sejam o resultado dessa infracção.
VIII – Ora, tais requisitos não se verificam no caso sub judice! IX – Porquanto, e contrariamente ao referido no douto despacho recorrido, nos presentes autos foi, sim, aplicada uma SPP (suspensão provisória do processo); X – Não tendo resultado dos mesmos uma condenação propriamente dita.
XI – Sendo certo que o art. 32.º da Constituição da República Portuguesa (CR) inclui entre as garantias do processo criminal, no seu n.º 2, a de que “Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação (…)”.
XII – O princípio da presunção de inocência, ali consagrado, “integra uma norma directamente vinculante e constitui um dos direitos fundamentais dos cidadãos (art. 18.º, nº 1 da CR)”.
XIII – Logo, apenas em sede de sentença é que tal juízo poderá ser efectuado, pois antes do arguido ser submetido a julgamento não se pode concluir se os bens apreendidos serviram ou resultaram da prática de um facto ilícito típico.
XIV – O certo é que, não é manifestamente o caso dos bens cuja restituição está em causa, já que o arguido não foi condenado por nenhum crime! XV – Em suma, o tribunal a quo ignorou, salvo o devido respeito por douto entendimento contrário, tais princípios que derivam da lei fundamental.
Sem prescindir e por mera cautela, invoca-se XVI – Das disposições conjugadas dos art. 186.º e 374.º, n.º 3, al. c), ambos do Código de processo penal (CPP), resulta claramente que só em sede de sentença é que o tribunal pode declarar perdidos a favor do Estado os bens apreendidos, sendo este o momento próprio para o efeito.
XVII – Diversa é a jurisprudência nesse sentido, a título exemplificativo, refira-se o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proferido a 12/04/2016, no processo n.º 1072/11.8GTABF-B.E1, por aplicação mutatis mutandis, resulta: “I – Após o trânsito em julgado do acórdão condenatório, no âmbito do qual o tribunal omitiu pronúncia sobre o destino dos objetos que se encontravam apreendidos, de detenção lícita por particulares, deve ser dado cumprimento ao disposto no n.º 2 do art. 186.º do CPP, não sendo lícito determinar, por despacho posterior, o perdimento desses bens a favor do Estado”.
XVIII – Mais à frente tal Acórdão prescreve: “Há que distinguir: Se o bem ou objecto em causa é, por sua própria natureza, algo cuja detenção é proibida por particulares, o seu perdimento a favor do Estado deve ser declarado em despacho autónomo, mesmo após o trânsito em julgado da sentença onde, com desrespeito pelo estatuído no artº 374º, nº 3, al. c), se omitiu o destino a dar-lhe. Com efeito, carece de qualquer razoabilidade permitir, por exemplo, que ao abrigo do disposto no art. 186.º, n.º 2 do CPP, seja devolvido ao arguido condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, a droga que lhe foi apreendida, se o tribunal omitiu na decisão final o destino a dar-lhe. Se, porém, o objecto tem, em si, natureza lícita (rectius, se em abstracto a sua detenção por particulares é permitida por lei), então a sentença é o único momento em que pode ser declarado o seu perdimento a favor do Estado, verificados os pressupostos de que depende essa decisão. Entendimento contrário sempre consubstanciaria violação de caso julgado e, fundamentalmente, constituiria uma flagrante deslealdade processual e uma manifesta violação das garantias de defesa do recurso (…). Porque assim, mutatis mutandis, forçoso é concluir in casu que o despacho judicial recorrido deve ser revogado e substituído por outro que cumpra o disposto no art. 186.º, n.º 2, do CPP, já que os bens apreendidos são de detenção lícita por particulares e não foram objecto de declaração de perdimento a favor do Estado, no ‘momento correcto’, no acórdão proferido em 12/07/2013, transitado em julgado – no mesmo sentido, v.g. Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 30/06/2004, proferido no processo nº 0413638 e de 17/05/2006, proferido no processo nº 0610514 e do Tribunal da Relação de Guimarães de 12/01/2009, proferido no processo nº 2200/08.2, de 28/09/2009, proferido no processo nº 2143/05.5 TBBCL, de 17/01/2011, proferido no processo nº 1168/03.0 PBGMR e de 21/10/2013, proferido no processo nº 316/09.0 JABRG-F.G1, todos disponíveis em www.dgsi.pt”.
XIX – Em suma, da análise da diversa jurisprudência advém que o momento próprio para declarar perdidos a favor do Estado bens apreendidos é a sentença.
XX – Em momento anterior à sentença, apenas pode ser proferido despacho a ordenar a restituição dos bens, se tal se compadecer com os pressupostos legais, mas nunca a ordenar a sua perda a favor do Estado, a menos que se trata de bem ilícito pela própria natureza.
XXI – E, de facto, esse despacho foi proferido, em data anterior a 07/06/2019 – vide notificação datada de 07/06/2019, com a referência 84400732.
XXII – A verdade é que, a declaração de perda a favor do Estado também não pode resultar de despacho posterior ao proferimento da sentença.
XXIII – Considerando que o arguido não foi condenado pelo crime de que vinha acusado; XXIV – Considerando que os bens apreendidos não são bens ilícitos pela própria natureza; XXV – Considerando que, os bens apreendidos destinam-se ou resultaram da actividade de estudante desenvolvida pelo arguido – sendo todos de proveniência lícita; XXVI – Considerando que a decisão que pôs termo aos presentes autos não declarou perdidos a favor do Estado os bens em causa; XXVII – Considerando que a decisão que pôs termo aos presentes autos foi proferida a 01.02.2021, tendo há muito transitado em julgado; XXVIII – Considerando que em tal decisão não foi ordenada a perda a favor do Estado dos bens apreendidos, XXIX – Considerando que a declaração da perda dos bens a favor do Estado foi feita em despacho posterior – o que é ilegal, XXX – A apreensão efectuada ofende o direito de propriedade.
XXXI – Assim sendo, o douto despacho proferido é nulo por violar ou dar errada interpretação ao disposto no art. 32.º da CR, art. 109.º do Código Penal (CP), ao estatuído no art. 35.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01, e ao prescrito nas disposições conjugadas dos art. 186.º e 374.º, n.º 3, al. c), ambos do CPP, sendo consequentemente nulo, nulidade essa que expressamente se invoca, para os devidos efeitos legais, até mesmo inconstitucional».
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Admitido o recurso, respondeu-lhe o MP, pugnando por que lhe seja negado provimento, dessa resposta igualmente formulando conclusões que são as seguintes: «I – A perda de objectos opera nos casos em que existe perigo de repetição de cometimento de factos ilícitos através do instrumento.
II – Não foi mal interpretado e aplicado o disposto no art. 109.º do CP.
III – Por outro lado, estamos perante uma situação do art. 35.º do Dl 15/93, de 22/01, na medida em que o arguido só cometeu os factos por ter na sua posse meios informáticos, sem os quais não era possível praticá-los.
IV – Apesar de não existir sentença condenatória pela prática do crime, nada impede que sejam declarados perdidos a favor do Estado os objectos apreendidos.» 4.
Subidos os autos, o Sr. procurador-geral adjunto emitiu parecer em que, aderindo à resposta do MP em primeira instância, e desenvolvendo-a, igualmente pugna pelo não provimento do recurso, e, cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o recorrente [….].
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Após exame preliminar a que se não patentearam dúvidas relevantes, sem outras vicissitudes se colheram os vistos e foram os autos à conferência.
II – Fundamentação 1.
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