Acórdão nº 678/22 de Tribunal Constitucional (Port, 20 de Outubro de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Mariana Canotilho
Data da Resolução20 de Outubro de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 678/2022

Processo n.º 203/21

2.ª Secção

Relatora: Conselheira Mariana Canotilho

(Conselheira Assunção Raimundo)

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Juízo Local Criminal da Amadora – Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., foi interposto recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional («LTC»), da sentença proferida por aquele Tribunal, em 18 de janeiro de 2021, que recusou a aplicação dos «artigos 43.º, n.º 1, c), d), e nº 6, do Decreto n.º 2-B/2020, na parte em que punem com pena agravada nos limites mínimo e máximo a desobediência às ordens legítimas das entidades competentes, quando praticadas em violação do disposto no respetivo decreto, por tais normas enfermarem de inconstitucionalidade orgânica e formal» (fls. 97-verso).

2. Admitido o recurso por despacho datado de 27 de janeiro de 2021 (fls. 101), e subidos os autos a este Tribunal Constitucional, depois de obtidos os elementos necessários à apreciação do recurso, notificou-se o recorrente para alegações, em 9 de setembro de 2021 (fls. 148).

O recorrente apresentou alegações, que conclui nos seguintes termos (fls. 161-166):

«35. O Ministério Público interpôs em 19 de Janeiro de 2021, a fls. 100 dos autos supra-epigrafados, recurso obrigatório, para este Tribunal Constitucional, do teor da douta decisão judicial de fls. 82 a 84 (à qual há que juntar a transcrição de fls. 107 a 132) proferida pelo Juízo Local Criminal da Amadora – Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste - Processo n.º 183/20.3PBAMD, “(…) ao abrigo do disposto nos artigos 70º, nº 1 al. a), 71º, nº 1 e 75º-A, nº 1 da Lei de Organização, Funcionamento e processo d[o] Tribunal Constitucional”.

36. Este recurso tem por objeto a sentença “que decidiu desaplicar os arts. 43º, nº 1, als. c) e d) e 6 do DL 2-B/2020, na parte em que punem com pena agravada nos limites mínimo e máximo a desobediência às ordens legítimas das entidades competentes, quando praticadas em violação do disposto nos respetivos decretos (…)”.

37. Os parâmetros de constitucionalidade violados, porque não explicitados na douta sentença recorrida, são tacitamente mencionados como causa da “inconstitucionalidade orgânica e formal” imputada à decisão impugnada.

38. Apesar da evidente dificuldade de apreensão dos diferentes tópicos acomodados pela fundamentação da douta decisão recorrida, porque logramos, ainda assim, descortinar o essencial da questão jurídico-constitucional suscitada e, bem assim, porque já tivemos ocasião de, noutros recursos que correm termos neste Tribunal, abordá-la e apreciá-la, passaremos a reproduzir, por tal se nos afigurar pertinente, o conteúdo de alegações anteriormente produzidas sobre a temática aqui convocada.

39. Feita esta ressalva, começaremos por lembrar que a questão jurídico-constitucional suscitada pelo tribunal “a quo” na douta decisão recorrida, e que agora é trazida perante o Tribunal Constitucional, decorre da ponderação de uma das inúmeras vertentes do quadro normativo que emergiu da necessidade de combater a pandemia de COVID-19 causada pelo novo Coronavírus, SARS-CoV-2.

40. No cenário de tal combate, e face ao agravamento da ameaça pandémica, declarou o Exm.º Sr. Presidente da República, por via do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, o estado de emergência com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública, pelo período de quinze dias.

41. Esta declaração do estado de emergência veio a ser renovada, por mais quinze dias, através da emissão do Decreto do Presidente da República n.º 17-A/2020, de 2 de abril.

42. À semelhança do que ocorrera com o primeiro destes decretos do Presidente da República (com a publicação do Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março) o Governo, por intermédio do seu Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de abril, procedeu à regulamentação da referida prorrogação do estado de emergência decretado pelo Presidente da República.

43. Ora, na verdade, as normas contestadas, fundamentalmente a plasmada no 6, do artigo 43.º, do Decreto 2-B/2020, de 2 de abril, agravou em um terço, nos seus limites mínimo e máximo, na parte aqui relevante, o sancionamento da “desobediência (…) às ordens legítimas das entidades competentes, quando praticadas em violação do disposto no presente decreto”, tendo o Governo, consequentemente, criado ex novo sem autorização da Assembleia da República, uma distinta moldura penal para o crime de desobediência quando praticado nos termos nela previstos.

44. A matéria sobre a qual o Governo legislou no referido n.º 6, do artigo 43.º, do Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de abril, é, indubitavelmente, do domínio da definição de penas e dos respetivos pressupostos e, por isso mesmo e por força do previsto na alínea c), do n.º 1, do artigo 165.º, da Constituição da República Portuguesa, matéria da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República.

45. Ora, a Assembleia da República não autorizou, em qualquer momento relevante, o Governo a legislar sobre o agravamento da pena aplicável ao crime de desobediência, designadamente quando resultante da “desobediência (…) às ordens legítimas das entidades competentes, quando praticadas em violação do disposto no presente decreto”, ou seja, quando praticadas em violação de normas contidas no decreto de regulamentação da primeira prorrogação do estado de emergência decretado pelo Presidente da República.

46. Assim, torna-se evidente ter o Governo legislado sobre matéria excluída da sua competência constitucional, em violação do disposto no já mencionado artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição da República Portuguesa, o que consubstancia, à partida, uma inconstitucionalidade orgânica porque violada uma norma de competência.

47. Dito isto, cumpre-nos apurar se, ainda assim, poderia o Governo ter legislado sobre a referida matéria sem ofender a Constituição, atento o contexto jurídico-constitucional conformado pelo Decreto do Presidente da República n.º 17-A/2020, de 2 de abril, que declarou o estado de emergência.

48. Acontece que, a Constituição da República Portuguesa é inequívoca ao prescrever no n.º 7 do seu artigo 19.º que “[a] declaração do estado de sítio ou do estado e emergência só pode alterar a normalidade constitucional nos termos previstos na Constituição e na lei, não podendo, nomeadamente afetar a aplicação das regras constitucionais relativas à competência e ao funcionamento dos órgãos de soberania (…)”.

49. Para além disto, atendendo ao conteúdo da norma desaplicada ou, melhor dizendo, cuja aplicação foi recusada, devemos ainda concluir que a mesma tem carácter inovatório, uma vez que, apesar de estatuir que a agravação determinada ocorre “nos termos do n.º 4 do artigo 6.º da Lei n.º 27/2006, de 3 de julho” - a Lei de Bases da Proteção Civil -, o que é certo é que os pressupostos de que o legislador ordinário faz depender a agravação da moldura penal não se encontravam previstos, previamente, em qualquer outra norma aprovada pela Assembleia da República.

50. Consequentemente, não sendo aplicável às situações abrangidas pelo Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de abril, nomeadamente as que constituem pressuposto do regulado pelo n.º 6 do seu artigo 43.º, e não se limitando a reproduzir uma norma que reitere uma outra validamente aprovada pela Assembleia da República, só poderemos inferir que a norma naquele contida apresenta carácter inovador.

51. Em suma, somos forçados a concluir que o Governo, ao legislar, inovatoriamente e sem autorização legislativa, sobre definição de penas e respetivos pressupostos, matéria da reserva relativa da competência da Assembleia da República, violou o disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição da República Portuguesa.

52. Assim, atento o explanado, não podemos deixar de, perante o conteúdo da interpretação normativa extraída do disposto, conjugadamente, nos números 1, alíneas c) e d); e 6, do artigo 43.º, do Decreto 2-B/2020, de 2 de abril, acolhido pela douta decisão impugnada e cuja aplicação foi recusada, sustentar a sua inconstitucionalidade orgânica por violação do disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição da República Portuguesa.

53. Por força do exposto, deverá ser tomada decisão no sentido de julgar organicamente inconstitucional a interpretação normativa desaplicada - a extraída do artigo 43.º, números 1, alíneas c) e d); e 6, do Decreto 2-B/2020, de 2 de abril - negando-se, assim, provimento ao presente recurso»

3. O recorrido, devidamente notificado, não apresentou contra-alegações.

Na sequência da discussão do processo em sede de Secção, operou-se a mudança de Relatora, nos termos do artigo 79.º-B, n.º 2, da LTC.

Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

4 . Questão de constitucionalidade semelhante à colocada nos presentes autos – quanto à conformidade com a Constituição da República Portuguesa da dimensão normativa extraída das alíneas c) e d) do n.º 1 e do n.º 6, do artigo 43.º do Decreto n.º 2-B/2020, no sentido de punir com pena agravada nos limites mínimo e máximo a desobediência às ordens legítimas das entidades competentes, quando praticadas em violação do disposto nos respetivos decretos – foi já apreciada e decidida pelo Tribunal Constitucional, nesta 2ª Secção, no Acórdão n.º 619/2022, tendo sido julgada inconstitucional a dimensão normativa em referência.

Na verdade, nesse aresto, estava em causa a recusa de aplicação da dimensão normativa resultante do previsto no artigo 46.º, n.º 7, do Decreto n.º 2-C/2020, de 17 de abril, da Presidência do Conselho de Ministros, segundo a qual a desobediência e a resistência às ordens legítimas das...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT