Acórdão nº 105/20.0T8RDD.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 27 de Setembro de 2022

Magistrado ResponsávelCARLOS CAMPOS LOBO
Data da Resolução27 de Setembro de 2022
EmissorTribunal da Relação de Évora

Acordam em Conferência na Secção Criminal (2ª subsecção) I – Relatório 1.

No âmbito do processo de cassação n.º 85/2020, que correu seus termos na Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (doravante ANSR), foi determinada, a AA, melhor identificado nos autos, a cassação do título de condução nº PT-..-.., nos termos do fixado no 148º, nºs 4, alínea c) e 10 do CEstrada.

  1. O recorrente impugnou judicialmente essa decisão, tendo o tribunal de 1ª instância, por sentença proferida a 27 de outubro de 2021, julgado improcedente a impugnação, mantendo, em consequência, a decisão da ANSR.

  2. Inconformado com tal decisão AA interpôs o presente recurso defendendo que se declare a sentença nula por violação do princípio de proporcionalidade, violação do princípio do acusatório e do princípio ne bis in idem, para o que apresentou as seguintes conclusões que extrai da sua motivação: (transcrição) A. No âmbito do processo supra identificado foi proferida douta sentença de que ora se recorre, da qual resulta B. que se mantém a decisão da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária e, em consequência, o Recorrente vê o seu título de condução cassado.

    C. Ora, apesar de ter calcorreado todos os pontos identificados na impugnação judicial, o Tribunal a quo não se pronunciou sobre a prova, entretanto, carreada para os autos, nomeadamente em audiência de julgamento.

    D. Com efeito, como pressuposto material da aplicação da cassação do título de cassação deveria averiguar-se da especial censurabilidade e da idoneidade do condutor no caso concreto.

    E. O Recorrente não tem quaisquer antecedentes criminais e não resulta dos autos que a conduta do mesmo tenha causado perigo para bens jurídicos próprios ou alheios, patrimoniais ou pessoais, não tendo sido intervenientes em qualquer acidente de viação.

    F. Contudo, na verdade, tal instituto de subtração de pontos aplica-se de forma automática, sem qualquer notificação, não se ponderando a necessidade prática de aplicação ao arguido, ou seja, não há valoração de qualquer elemento ligado à prevenção especial, nem tão pouco uma graduação da culpa. G. Por outro lado, ainda, trata-se aqui da perda de direitos profissionais, constitucionalmente consagrados, na medida em que o Recorrente se vê impedido de exercer a respetiva profissão, uma vez que é motorista profissional de veículos.

    H. O direito ao trabalho, constitucionalmente consagrado no artigo 58.º da CRP, é um verdadeiro direito social e consiste no direito de exercer uma determinada atividade profissional, I. Mas com a cassação do título de condução, o Recorrente vê-se totalmente impedido de exercer a sua profissão e, como tal, verifica-se uma compressão desproporcional dos seus direitos profissionais.

    J. Não foi, como facilmente se perceciona, sido ponderada a circunstância de o Recorrente ficar sem o título de condução e, consequentemente, sem o seu emprego.

    K. Não se vislumbra nenhum juízo, por parte do Tribunal a quo, de proporcionalidade, do qual resulte a prevalência de um direito sobre o outro.

    L. A aplicação da cassação resultará no impedimento do Recorrente trabalhar, bem como irá colocá-lo à margem da sociedade, violando-se, desta forma, o disposto no artigo 40º, nº 1 do Código Penal – aplicável ex vi artigo 132º do Código da Estrada (DL n.º 114/94, de 03 de maio) e artigo 32º do Regime Geral das Contraordenações (DL n.º 433/82, de 27 de outubro).

    M. A presente sentença, ao comprimir de forma injustificada os direitos do aqui Recorrente, mormente o direito ao trabalho, viola o princípio da proporcionalidade constitucionalmente consagrado no artigo 18.º, número 2, da Constituição da República Portuguesa.

    N. Por outro lado, diga-se, desde logo, que não tem fundamento a possibilidade de alguém frequentar ações de formação quando tem 5 pontos, mas não quando tem 6 pontos.

    O. O Arguido, após a condenação no processo-crime n.º 66/17.4GBRDD, nunca foi notificado dos pontos que perdeu pela prática da infração, nem sobre a possibilidade de frequentar ações de formação para adquirir mais pontos.

    P. Em momento algum, constou ou foi mencionado, que ao aqui arguido lhe seriam retirados pontos da sua carta de condução, ou sequer que a medida seria comunicada à ANSR para efeitos de desconto de pontos de carta de condução.

    Q. A subtração de pontos que configura uma verdadeira sanção acessória deveria ser referida ao Recorrente, de forma expressa e clara, ou até tácita, ao longo de todo o processo, nomeadamente na sentença.

    R. A primeira vez que o Recorrente é confrontado com a aplicabilidade desta pena acontece com a decisão administrativa que ora se recorre, sem que lhe fosse dada a oportunidade de se defender quanto a esta importante e específica disposição legal.

    S. A omissão de tal referência viola o princípio do acusatório, constitucionalmente consagrado no artigo 32.º, n.º 5 da CRP.

    T. O facto de não ter sido notificado não permitiu ao Recorrente consciencializar-se e procurar soluções, nomeadamente frequentar ações de formação que permitissem adquirir novos pontos.

    U. E, mais ainda, a interpretação de que não é necessária a notificação da subtração de pontos, nos termos do artigo 148.º do Código da Estrada, para que o Recorrente tome conhecimento e consciência de tal subtração, viola o princípio do acusatório previsto constitucionalmente no artigo 32.º, número 5, da Constituição da República Portuguesa.

    V. É da própria matéria de facto dada como provada que se constata, pelo exame realizado na entidade competente para o efeito, que o Recorrente se encontra apto para conduzir.

    W. Do ne bis in idem resulta que o mesmo facto não pode ser valorado por duas vezes, ou seja, a mesma conduta ilícita não pode ser apreciada com vista à aplicação de sanção por mais do que uma vez.

    X. Se se entender que a perda de pontos poderá preencher o elemento formal da pena acessória ou efeito da pena, já não preenche qualquer elemento ou pressuposto material.

    Y. O princípio do ne bis in idem consagra a proibição do duplo julgamento ou, como é o caso dos autos, de dupla punição pelos mesmos factos.

    Z. O Recorrente que cumpriu as penas a que foi condenado nos processos-crime, mormente pena de multa e sanção acessória de inibição de conduzir, vê-se agora novamente punido pelos mesmos factos e, pior ainda, a título definitivo! AA. Assim, a presente sentença ao entender que não existe uma dupla punição pelos mesmos factos viola o princípio do ne bis in idem, constitucionalmente consagrado no artigo 29.º, número 5 da Constituição da República Portuguesa.

    I. Do pedido Nestes termos e nos mais de Direito, requer-se a V. Exa. se digne: a) Declarar a presente sentença nula por violação do princípio da proporcionalidade, previsto no artigo 18.º, número 2, da Constituição da República Portuguesa; b) Declarar a presente sentença nula por violação do princípio do acusatório, constitucionalmente consagrado no artigo 32.º, número 5 da Constituição da República Portuguesa; e c) Declarar a presente sentença nula por violação do princípio do ne bis in idem, constitucionalmente consagrado no artigo 29.º, número 5, Constituição da República Portuguesa.

    Assim se fazendo a acostumada Justiça! 4.

    O Digno Mº Pº respondeu ao recurso, defendendo a manutenção do despacho recorrido, tendo concluído assim a sua resposta: (transcrição) I. O Tribunal a quo decidiu julgar improcedente o recurso interposto pelo recorrente e manter a decisão de cassação da carta de condução.

    II. Salvo o devido respeito por opinião contrária, inexiste qualquer violação do princípio da proporcionalidade, porquanto face aos elevados índices de sinistralidade rodoviária existentes nas estradas portugueses, a cassação do título de condução por parte das autoridades administrativas, que tem como pressuposto a aptidão para a condução, afigura-se ser adequado e proporcional, visando com este mecanismo acautelar os interesses públicos que uma condução perigosa pode afetar.

    III. Por outro lado, o direito ao trabalho, não é um direito absoluto, devendo ser ponderado com outros direitos constitucionais consagrados, como o direito à vida. Os custos profissionais advindos do impedimento de conduzir por pare do recorrente mostram-se proporcionais e adequados à irresponsabilidade estradal e às condutas ilícitas manifestadas pelo mesmo e às exigências de segurança rodoviária.

    IV. A cassação da carta de condução opera automaticamente com a perda de pontos, nos termos do artigo 148.º do Código da Estrada e não é uma pena acessória, trata-se de uma sanção de natureza administrativa, pelo que não se impunha a notificação ao recorrente.

    V. Também não poderia o recorrente frequentar ações de formação de segurança rodoviária, porque a primeira vez que lhe foram retirados pontos, ficou com 6 pontos e artigo 148.º, n.º 4, al. b) do Código da Estrada, refere expressamente que para frequentar essas ações de formação, tinha que ter 5 pontos e nunca poderia ter ganho 3 pontos, porque o mesmo não teve uma boa conduta rodoviária.

    VI. Entende o Ministério Público que também não há qualquer violação do princípio do ne bis in idem, porquanto o recorrente não foi submetido a novo julgamento pela prática dos mesmos factos. A decisão da entidade administrativa que incidiu sobre a apreciação da cassação da carta de condução teve por finalidade averiguar a falta de idoneidade do condutor para a condução de veículos a motor revelada pela prática de crimes rodoviários e não de apreciar os mesmos factos.

    VII. Os fundamentos que conduziram à aplicação das penas acessórias nos processos crime, e os fundamentos que levaram à cassação da carta de condução são de natureza diferente, têm finalidades diferentes e as normas jurídicas aplicadas também não são as mesmas.

    VIII. Assim, assume o Ministério Público que a sentença proferida pelo Tribunal a quo não merece qualquer censura, devendo manter-se nos seus precisos termos.

    Face ao supra exposto e pelos fundamentos invocados, entende-se que deve ser negado provimento ao recurso interposto...

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