Acórdão nº 625/22 de Tribunal Constitucional (Port, 27 de Setembro de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Vice-Presidente
Data da Resolução27 de Setembro de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 625/2022

Processo n.º 1094/2021

Plenário

Relator: Conselheiro Pedro Machete

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. Por decisão de 26 de fevereiro de 2020, a Entidade das Contas e Financiamentos Políticos (doravante, “ECFP”) julgou prestadas, com irregularidades, as contas apresentadas pelo Partido Socialista (PS), relativas à campanha eleitoral para a eleição para o Parlamento Europeu, realizada em 25 de maio de 2014 [cf. artigos 27.º, n.º 4, da Lei n.º 19/2003, de 20 de Junho (Lei do Financiamento dos Partidos Políticos e das Campanhas Eleitorais, doravante, “LFP”) e 43.º, n.º 1, da Lei Orgânica n.º 2/2005, de 10 de Janeiro (Lei de Organização e Funcionamento da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos, doravante, “LEC”)].

As irregularidades apuradas foram as seguintes:

a) Existência de despesas valorizadas abaixo do valor de mercado e com deficiências no suporte documental, em violação do artigo 12.º, n.ºs 1 e 2, da LFP, aplicável ex vi artigo 15.º da mesma Lei;

b) Existência de despesas inelegíveis, em violação do disposto no artigo 19.º, n.º 1, da LFP.

2. Na sequência da referida decisão relativa à prestação das contas, a ECFP levantou um auto de notícia e instaurou um processo de contraordenação contra o PS, pela prática de irregularidades verificadas naquela decisão (cf. PC n.º 4/2020).

O arguido foi notificado do processo de contraordenação, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 44.º, n.ºs 1 e 2, da LEC e 50.º do Regime Geral das Contraordenações (Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro – doravante “RGCO”), tendo apresentado a sua defesa.

No âmbito do referido procedimento contraordenacional, a ECFP, por decisão de 7 de abril de 2021, aplicou ao PS uma coima no valor de 14 (catorze) SMN de 2008, perfazendo a quantia de € 5.964,00 (cinco mil novecentos e sessenta e quatro euros), pela prática da contraordenação prevista e punida pelo artigo 31.º, n.ºs 1 e 2, da LFP.

3. Inconformado, o arguido impugnou esta decisão junto do Tribunal Constitucional, nos termos dos artigos 23.º e 46.º, n.º 2, da LEC, e do artigo 9.º, alínea e), da LTC, tendo concluído as suas alegações nos seguintes termos:

«A. A ECFP aplica ao Partido Socialista a sanção de coima no valor de 14 (catorze) SMN de 2008, o que perfaz a quantia de €5.964,00 (cinco mil novecentos e sessenta e quatro euros).

B. Alega no ponto 4. que o PS registou nas contas apresentadas várias despesas de campanha (melhor identificadas na decisão condenatória), cujos preços se encontram abaixo do valor de mercado e não foram apresentados elementos complementares de comparação de preços não permitissem concluir sobre a razoabilidade da despesa face aos valores de mercado.

C. A ECFP considera como violados os preceitos previstos no artigo 12° ex vi artigo 15° n.º 1 da Lei 19/2003 de 20 de junho (cfr. normativos transcritos em sede de alegações supra).

D. O Partido Socialista aqui arguido não praticou qualquer infração ou irregularidade, o que vai ficar aqui provado junto do Tribunal Constitucional.

E. Alega ao longo dos pontos 5. a 12. do libelo acusatório, que o PS registou nas contas apresentadas várias despesas de campanha (melhor identificadas no auto), cujo descritivo é incompleto e a ausência de elementos complementares de comparação de preços não permite aferir sobre a razoabilidade das despesas face aos valores de mercado de referência indicados na Listagem n.º 38/2013.

F. E o PS terá, alegadamente, violado os preceitos previstos no artigo 12 n.º 1 e 2, ex vi artigo 15°, n° 1 da Lei n° 19/2003, de 20 de junho, além do mais, invoca que os argumentos apresentados pelo arguido em sede de defesa são extemporâneos.

G. Mais uma vez, deve ficar claro que o PS não cometeu a infração ou irregularidade invocada, o que vai ficar aqui provado junto do Tribunal Constitucional.

H. Considera a ECFP conforme ponto 13. do libelo acusatório, que o PS registou nas contas apresentadas várias despesas de deslocação “quilómetros” (melhor identificadas no auto), com ausência de demonstração da origem, do motivo e destino das referidas despesas.

I. Ora e conforme largamente explicitado na defesa apresentada em 04/06/2020, da norma incriminatória, não resulta qual o fundamento da tal razoabilidade, não se extraindo da norma dos artigos 12° e 15° supratranscritos, que razoabilidade está em causa.

J. É que a entidade administrativa fiscalizadora não esclarece que tipo de razoabilidade está em causa – razoabilidade dos montantes? razoabilidade no tipo de despesa? Será? Ficamos sem saber...

K. Apenas refere que a infração é exclusivamente sustentada nos seguintes factos:

Ø Preços abaixo do valor de mercado;

Ø Ausência de elementos complementares de comparação de preços;

Ø Falta de demonstração da respetiva razoabilidade.

L. Conforme se comprova do texto acusatório, uma coi[s]a que ali não existe é a determinabilidade do tipo legal, uma vez que é pura e simplesmente ininteligível qual ou quais os normativos violados, afetando, na sua totalidade o princípio da legalidade invocado supra (cfr. aprofundado na terceira nota prévia supra - ponto II das alegações);

M. Ademais, não é possível determinar o que verdadeiramente pretende a entidade administrativa ECFP quando faz apelo ao princípio da razoabilidade (cfr. descrito na segunda nota prévia supra - ponto II das alegações).

N. Nem na decisão da ECFP de fevereiro de 2020 que deu origem aas presentes autos de contraordenação, nem agora através da acusação aqui sob recurso, é feita prova da alegada infração, bem sabendo que o ónus da prova cabe – “in casu” – ao Estado, através dos seus agentes/ órgãos.

O. Pelo que a acusação agora notificada ao arguido Partido Socialista é NULA, não podendo subsistir, nulidade que se invoca para os devidos e legais efeitos.

P. Por outro lado, a ECFP adensa a dificuldade em compreender as linhas pelas quais se rege, quando refere: …«que os esclarecimentos prestados em sede de defesa pelo arguido a tanto não bastam e, ainda que bastassem, tal seria agora extemporâneo, visto que ocorreria em sede de processo de contraordenação e, apesar de dever ser valorado na apreciação de uma eventual sanção a aplicar, não seria idóneo a afastar a violação legal verificada em sede de procedimento de prestação de contas»

Q. O ora arguido não percebe o que isto significa, pois será que a fase de defesa – artigo 50° do RGCO – de nada serve para apresentar provas, carrear elementos para o processo que comprovem que o libelo acusatório contem erros, que o arguido não praticou a infração, ou se existe não nos termos vertidos no auto lavrado pela entidade competente pela fiscalização?

R. Já não bastava o princípio em branco, o tal princípio a razoabilidade, como agora a ECFP refere, taxativamente, que os elementos juntos pelo arguido em sede de defesa não extemporâneos porque foram apresentados em sede de defesa.

S. Se é isto, estamos perante uma decisão que viola frontalmente o direito de defesa do arguido, direito sacrossanto previsto no artigo 32°, n° 10 da CRP, no sentido de que nos processos de contraordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e de defesa.

T. Ora, tendo a ECFP considerado extemporâneos os meios de prova juntos pelo arguido, é nula a decisão administrativa proferida nos autos, por ofender o direito de defesa do arguido ao considerar extemporâneo o rol de provas apresentadas e que contrariam a violação do princípio da razoabilidade – art. 41° n° 1 do D.L. 433/82 de 27/10 e art. 120 n° 2 al. d) do Código de Processo Penal.

U. Nulidade e inconstitucionalidade que ficam invocadas.

V. Por outro lado, e não menos importante, os factos que sustentam a presente condenação em relação à infração são insuficientes para concluir pela existência de qualquer infração contraordenacional.

W. Nem o auto de notícia, nem agora em sede de acusação, são mencionados – claramente – “os factos que constituem a infração, e as circunstâncias em que foi cometida”, sendo que no caso em concreto tais “circunstâncias”, porque factuais, se apresentavam de extrema importância para indicar e sinalizar que, ou que tipo de infração está em causa.

X. Com efeito, tal como já acontecia na fase da defesa, em que invocámos que o auto de notícia (e agora a acusação) se apresenta amputado de factos, conclusivo, vago e genérico, viciado pela ausência de uma concreta factualidade sinalizadora do (alegado) comportamento infrator do arguido, com todas as suas consequências e reflexos em termos acusatórios, quer como delimitador do próprio libelo acusatório e sustentáculo-básico de uma posterior decisão condenatória, quer ainda, e não menos importante, no quadro e em parâmetros do cabal exercício de um direito de defesa por parte do arguido.

Y. A verdade é que a totalidade dos vícios imputados ao auto de notícia estão vertidos na acusação aqui sob recurso.

Z. E muito embora estejamos no domínio do direito contraordenacional prevenido no RGCO, não se pode ignorar nem minimizar, tal como já foi enquadrado mais acima, o apelo que nos arts. 32° e 41° se faz ao direito penal e processual criminal, como direito subsidiário, com todas as suas consequências.

AA. Assim, e consequentemente, há que considerar nula a acusação ao arguido, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 41° n.º 1, do DL 433/82 e al. b) n.º 3 artigo 283° do CPP.

BB. A ECFP lavra em erro na interpretação de tal inciso legal, na medida em que a razoabilidade, ou a falta dela, não tem qualquer arrimo ao dispositivo legal invocado pela entidade administrativa.

CC. E não se diga que da leitura do disposto na Lei n° 19/2003 (na redação atual) se retira tal efeito da razoabilidade, na medida em cabe à entidade fiscalizadora (e...

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