Acórdão nº 500/22 de Tribunal Constitucional (Port, 14 de Julho de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Gonçalo Almeida Ribeiro
Data da Resolução14 de Julho de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 500/2022

Processo n.º 525/2022

3.ª Secção

Relator: Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro

Acordam, em conferência, na 3.ª secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Comarca de Viseu – Juízo de Instrução Criminal, em que é reclamante A. e reclamado o Ministério Público, o primeiro reclamou, ao abrigo do artigo 76.º, n.º 4, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, referida adiante pela sigla «LTC»), do despacho de 19 de abril de 2022, daquele Tribunal, que não admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional.

2. O aqui reclamante, na qualidade de arguido em processo-crime, foi acusado publicamente da prática de diversos crimes, designadamente corrupção passiva para ato ilícito de titular de cargo político agravado; fraude na obtenção de subsídio ou subvenção; prevaricação de titular de cargo político; e falsificação de documento.

Requereu a abertura da instrução, na qual, entre o mais, invocou a exceção de caso julgado, por os factos descritos na acusação pública já terem sido objeto de apreciação num outro inquérito criminal e objeto de arquivamento.

Realizada a instrução, veio a ser proferida a decisão instrutória, datada de 18 de março de 2022, na qual se decidiu, por um lado, indeferir a invocada exceção de caso julgado e, por outro lado, pronunciar o arguido nos precisos termos em que vinha acusado.

Notificado de tal decisão, o arguido dela interpôs recurso de constitucionalidade, através de requerimento com o seguinte teor:

«A., Arguido no processo à margem referenciado, notificado do douto despacho prolatado por este Digníssimo Tribunal em 18 de março de 2022, que sustenta, como ratio decidendi da decisão que indeferiu a excepção de caso julgado invocada no requerimento de abertura de instrução, a interpretação normativa dos art.ºs 84° e 467° do Código de Processo Penal, 580° e 581° do Código de Processo Civil e 29°, n° 5, da nossa Lei Fundamental, no sentido de que o regime aí prescrito não é aplicável a despachos de arquivamento, por estes não terem natureza jurisdicional, não serem definitivos nem transitarem em julgado (não obstante, verbi gratia, a interpretação normativa sustentada pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa no douto acórdão proferido em 19 de janeiro de 2021, segundo a qual “A decisão de arquivamento, não tendo natureza jurisdicional e, por conseguinte, não comportando a noção de trânsito em julgado, não deixa de produzir efeitos, pelo que decorridos os prazos para a sua impugnação, quer através da abertura de instrução, quer da intervenção hierárquica, tem ajora de caso decidido e, por conseguinte, a menos que haja lugar a reabertura de inquérito, se admissível, os Jactos dele objecto não podem ser de novo valorados noutro processo para efeito de poder ser o arguido, por via deles, perseguido criminalmente"), nem, outrossim, a decisões em que não esteja em causa o mesmo crime na acepção jurídico-penal (não obstante, verbi gratia, a interpretação normativa sustentada pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra no douto acórdão proferido em 9 de março de 2016, segundo a qual "O princípio do ne bis in idem, expresso no artigo 29°, n° 5, da Constituição da República Portuguesa proíbe que os factos imputados a um cidadão, num processo penal e em qualquer fase do processo, sejam avaliados mais do que uma vez. A lei é unívoca ao impedir nova apreciação dos mesmos factos, seja qual for a qualficação jurídica que lhes é atribuída"), interpretação normativa que o Arguido reputa de inconstitucional por violação do princípio constitucional do non bis in idem, previsto no art.º 29°, n° 5, da Constituição da República Portuguesa, dele vem, ex vi do disposto no art.º 70°, n° 1, al. b), 72°, n° 1, al. b), 75° e 75°-A, todos da Lei n° 28/82, de 15 de novembro, interpor recurso para o Colendo Tribunal Constitucional, a fim de a supra citada interpretação normativa ser sindicada por este Colendo Tribunal do ponto de vista da sua conformidade com a nossa Lei Fundamental.

Para tanto, e ex vi do disposto no n° 2, in fine, do art.º 75°-A do sobredito diploma legal, deve este recurso ser instruído com o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo Arguido (peça processual na qual foi previamente suscitada a questão de constitucionalidade normativa sub judice).

O presente recurso tem subida imediata, em separado e efeito suspensivo».

3. Foi então proferido o despacho de não admissão do recurso de constitucionalidade, datado de 19 de abril de 2022, fundamentado nos seguintes termos:

«Veio o arguido A. recorrer da decisão que indeferiu a exceção do caso julgado.

Nos presentes autos foi o arguido pronunciado nos precisos termos que constam da acusação.

Assim, nos termos do artigo 310.º, n.° l do CPP a decisão de pronuncia proferida nos autos não é recorrível.

Na verdade, de acordo com o artigo 309.º, n.° l do CPP só seria possível a arguição da nulidade da decisão, no prazo de 8 dias, desde que o arguido fosse pronunciado por factos que importassem uma alteração substancial de factos da acusação.

E mesmo que assim não se entendesse qualquer outra nulidade ou irregularidade, teria de ser arguida no prazo legal e não em sede de recurso.

Esta não é manifestamente a situação dos autos.

A decisão em causa, legalmente e manifestamente.

A presente decisão é irrecorrível e desde a alteração do n.° 1 do artigo 310.° do CPP pela Lei n.° 48/2007, de 29-08 também as nulidades, questões prévias ou incidentais, apreciadas na dita decisão, são insuscetíveis de sindicância através de recurso.

Pelo exposto, nos termos do artigo 310.º, n.° l do CPP, não se admite o recurso interposto.»

4. Contra tal decisão foi apresentada a presente reclamação, nos termos que aqui se reproduzem:

«A., Recorrente no processo à margem referenciado, não se conformando com o douto despacho que não admitiu, por (putativa) irrecorribilidade, o recurso in casu interposto para o Colendo Tribunal ad quem, dele vem reclamar, ex vi do disposto no art.76°, n° 4, da Lei n° 29/82, de 15 de Novembro,

NOS TERMOS E COM OS SEGUINTES FUNDAMENTOS:

1.

Na linha do arrazoado infra oferecido e naturalmente ressalvado o devido respeito pela posição ali sustentada, considera o Recorrente ter o Digníssimo Tribunal a quo andado mal ao proferir o douto despacho reclamado [que não admitiu, por (putativa) irrecorribilidade, o recurso in casu interposto para o Colendo Tribunal ad quem], razão por que dele vem reclamar para este Colendo Tribunal ad quem, já que

2.

Entende estarem, in casu, preenchidos todos os requisitos legalmente previstos para a admissão do recurso subjudice. Senão vejamos.

3.

Da análise da parca fundamentação do douto despacho reclamado ressuma que, para concluir pela (putativa) irrecorribilidade, o Digníssimo Tribunal a quo se baseou nas regras de admissibilidade de interposição de recurso ordinário no âmbito da ordem jurisdicional penal e não nas específicas regras de admissibilidade do tipo de recurso de fiscalização concreta de inconstitucionalidade (en passant, basta atentar nas normas do Código de Processo Penal ali citadas), sendo que

4.

Como resulta cristalino da mera análise do requerimento de interposição do recurso in casu não admitido, o Recorrente não interpôs recurso para o Digníssimo Tribunal da Relação de Coimbra, mas sim para o Colendo Tribunal ad quem,

5.

O que inelutavelmente redunda na óbvia falha das premissas da correlata fundamentação do douto despacho reclamado. Neste sentido,

6.

Vide, por todos, a posição sustentada por Carlos Lopes do Rego, in "Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional", p. 220, que, de forma enfática, recorda que "Relativamente ao requisito da irrecorribilidade da decisão proferida pelo tribunal "a quo", e evidente que ela tem de ser valorada em função dos pressupostos específicos do tipo de recurso de fiscalização concreta interposto - e não obviamente da admissibilidade de interposição de recurso ordinário no âmbito da ordem jurisdicional em questão (sendo evidente e incontroverso que não constituem obstáculo à interposição de recursos para o Tribunal Constitucional as normas adjetivas que condicionam, por exemplo, os recursos ordinários à verficação de certos requisitos, v.g., valor da causa, em articulação com a alçada do tribunal, ou prescrevem que certa decisão é irrecorrível no âmbito de certa ordem jurisdicional)" (sic). De facto,

7.

O Recorrente, notificado do douto despacho prolatado pelo Digníssimo Tribunal a quo em 18 de março de 2022 [que sustenta, como ratio decidendi da decisão que indeferiu a excepção de caso julgado invocada no requerimento de abertura de instrução, a interpretação normativa dos art.ºs 84° e 467° do Código de Processo Penal, 580° e 581° do Código de Processo Civil e 29°, n° 5, da nossa Lei Fundamental, no sentido de que o regime aí prescrito não é aplicável a despachos de arquivamento, por estes não terem natureza jurisdicional, não serem definitivos nem transitarem em julgado (não obstante, verbi gratia, a interpretação normativa sustentada pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa no douto acórdão proferido em 19 de janeiro de 2021, segundo o qual "A decisão de arquivamento, não tendo natureza jurisdicional e, por conseguinte, não comportando a noção de trânsito em julgado, não deixa de produzir efeitos, pelo que decorridos os prazos para a sua impugnação, quer através da abertura de instrução, quer da intervenção hierárquica, tem a fora de caso decidido e, por conseguinte, a menos que haja lugar a reabertura de inquérito, se admissível, os factos dele objeto não podem ser de novo valorados noutro processo para efeito de poder ser o arguido, por via deles, perseguido criminalmente"), nem, outrossim, a decisões em que não esteja em causa o mesmo...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT