Acórdão nº 201/21.8GACNF-A.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 20 de Abril de 2022

Magistrado ResponsávelLU
Data da Resolução20 de Abril de 2022
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)
  1. Nos autos de processo (inquérito) supra referenciados, requereu o Ministério Público que se tomem declarações para memória futura a AA e BB, nos seguintes termos e com os seguintes fundamentos: “Compulsados os autos, constata-se haver denúncia da prática de dois crimes de violência doméstica, p. e p. pelos artigos 152.º, n.º 1, alíneas a) e d) e n.º 2, alínea a), do Código Penal, sendo um na pessoa da denunciante, AA, e outro na pessoa da filha comum, BB, nascida a .../.../2012.

    Como decorre, AA e BB, atento o contexto da prática dos factos, a relação que mantiveram/mantêm com o arguido e, particularmente, no que respeita a BB, a sua idade, são pessoas especialmente vulneráveis, sendo certo que o decurso do tempo poderá fazer perigar um depoimento espontâneo e sem lapsos de memória, principalmente quanto à menor.

    Deste modo, de forma a dar cumprimento à citada Directiva e a evitar a revitimização das pessoas acima identificadas, entende-se deverão ser-lhes tomadas declarações para memória futura, nos termos do artigo 33.º, n.º 1, da Lei n.º 112/2009 (numa perspectiva ampla), de 6 de Setembro.

    Em tal diligência, deverão ser acompanhadas de técnico especializado que previamente seja designado para o efeito.

    Nestes termos, o Ministério Público promove:  Se designe data para tomada de declarações para memória futura a AA e BB, (artigo 271.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 33.º, n.º 1, da Lei n.º 112/2009, numa perspectiva ampla, de 6 de Setembro).

     Sejam as vítimas acompanhadas de técnico especialmente habilitado (artigo 271.º, n.º 4, do Código de Processo Penal).

     Que tais declarações sejam prestadas na ausência do(s) arguido(s) (artigos 271.º, n.º 6 e 352.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal).

     Se proceda ao seu registo de voz e imagem.

  2. A pretensão do Ministério Público foi indeferida por despacho judicial de 9 de fevereiro de 2022, o qual tem o seguinte teor no que para o efeito mais releva: “Nestes autos, o Ministério Público funda a sua pretensão na relação das ofendidas com o arguido e, especialmente no que se refere à BB, pela sua idade, a sua especial vulnerabilidade, acrescentando que o decurso do tempo poderá fazer perigar um depoimento espontâneo e sem lapsos de memória.

    Todavia, compaginando o ora exposto com tais fundamentos, considera-se que tal pedido é, atentos os elementos constantes actualmente do processo, desadequado.

    Como se disse, em face do enquadramento legal a que este Tribunal está vinculado (que não incluí as Directivas do Ministério Público), sendo legalmente facultativo o requerimento apresentado, o mesmo deve ser fundamentado com a invocação concreta de circunstâncias, ligadas à especificidade do caso, que justifiquem a realização da prova por declarações para memória futura.

    Note-se que se trata de uma diligência que se traduz indiscutivelmente num desvio em relação àquilo que são os princípios gerais e basilares da imediação e do contraditório, segundo os quais, e entre o mais, as testemunhas, incluindo as vítimas, são ouvidas em julgamento; o que é por demais notório no caso concreto em que inexiste qualquer outra prova além das próprias ofendidas.

    É de notar, aliás, que o legislador teve o cuidado de consagrar o expediente das declarações para memória futura em termos excepcionais, impondo-o em casos muito limitados (artigo 271.º, n.º 2 do CPP) e admitindo-o em circunstâncias muito específicas (artigos 271º, n.º 1 do CPP e 33.º, n.º 1 da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro).

    Quer isto dizer que, sendo os critérios de que depende o deferimento do requerido de apreciação casuística, não pode a prática judiciária criar uma regra (a de ouvir-se sempre a vítima em processos de violência doméstica) que o legislador não quis consagrar, pois que, se o tivesse querido fazer, decerto teria imposto as declarações para memória futura nos termos estritos que concebeu noutros quadrantes do ordenamento jurídico.

    Ora, o requerimento em apreço não enuncia quaisquer razões concretas que tornem justificado realizar a diligência pretendida (no sentido da necessidade de especificar tais razões vide Cruz Bucho, Declarações para memória futura, in https://www.trg.pt/ficheiros/estudos/declaracoes_para_memoria_futura.pdf, pgs. 68 e seguintes), assentando numa argumentação tabelar abstratamente aplicável a qualquer processo em que se investigue o crime de violência doméstica.

    Dos argumentos aduzidos, não se verifica nenhum que justifique a opção por um desvio à regra processual da imediação.

    Note-se, inclusive, que, dos elementos constantes dos autos, dúvidas podem existir acerca da própria qualificação jurídica dos crimes, razão pela qual se afigura que em momento algum a promoção aponta ou considera como indiciados tais factos (ancorando-se, ao invés, na sua denúncia).

    Desde logo, a especial vulnerabilidade resulta da classificação atribuída por lei às ditas vítimas de violência doméstica, nos termos do disposto no artigo 67.-ºA, n.º 1, alínea b) e n.º 3, com a referência ao artigo 1.º, alínea j), todos do CPP.

    Trata-se de uma classificação absolutamente automática e desgarrada da análise e ponderação de quaisquer elementos efectivos e factuais que permitam aferir da verificação dos pressupostos que, como regra, lhe são exigíveis.

    Disto isto, acrescenta-se que apenas à ofendida AA foi atribuído o estatuto de vítima, nos termos do artigo 14.º, n.º 1 da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro e da Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro (fls. 10); nada existindo no processo que indicia que a BB tem vindo a ser tratada como tal ou beneficia de esse estatuto.

    Neste contexto, nada nos autos permite concluir por uma efectiva vulnerabilidade a acautelar, o que ressalta em relação à ofendida AA, que disse estar separada do arguido há 4 anos, o que impele o Tribunal a questionar qual a relação mantida com o mesmo que torna premente a diligência pretendida.

    A esse propósito, acrescenta-se que dos autos não constam os respectivos assentos de nascimento, não se percebendo qual o concreto tipo de relação mantida entre ambos (se foram efectivamente casados, unidos de facto ou mantiveram uma relação de namoro).

    Ainda em relação à ofendida AA, nota-se que a mesma prestou depoimento por três vezes (no auto de 11 de Outubro de 2021, a fls. 3 e sgs.; no auto de 21 de Outubro de 2021, a fls. 39 e sgs.; e no DIAP em 1 de Fevereiro de 2022, a fls. 74 e sgs.), tendo manifestado vontade de dar continuidade ao processo, mas também vir a concordar com uma eventual suspensão provisória do processo. Ora, esta intervenção processual reiterada e o que dela se extrai é incompatível com a fundamentação aduzida pelo Ministério Público.

    Depois, diga-se que a factualidade referente ao crime do qual a BB é vítima encontra-se numa fase bastante embrionária: não se alcança de que modo é que a progenitora teve conhecimento das chamadas, a sua reiteração, duração, teor ou existência de registos.

    Ainda se nota que as declarações para memória futura, mesmo quando produzidas na fase de inquérito, constituem uma diligência presidida pelo juiz, a quem cabe a iniciativa primacial de efectuar a inquirição (artigo 271.º, n.º 1 do CPP), sendo que, no caso de testemunha menor de 16 anos (como sucederá com a BB), a inquirição deve mesmo ser realizada exclusivamente pelo juiz, nos termos em que o seria em julgamento (por nenhuma razão haver para que nesta sede se não dê aplicação ao determinado pelo artigo 349.º do CPP).

    Nisto, importa então concatenar as ideias de que a direcção do inquérito compete ao Ministério Público e de que o processo penal tem uma estrutura acusatória, por um lado, com a ideia de que é o juiz quem dirige as declarações para memória futura, por outro lado, para daí concluir que é ao último que cabe mais protagonismo no âmbito e nos termos da diligência.

    Perante isto, a única forma técnico-juridicamente acertada e eficaz do ponto de vista prático de lograr aquela concatenação de ideias (de sentido contrário ou divergente quanto aos papéis de cada magistratura) é a de o requerimento visando declarações para memória futura, desde logo quando formulado pelo Ministério Público, como será a regra, deve conter um enunciado de temas mais ou menos específicos e concretos que definam e delimitem o seu objecto (um pouco à semelhança do que sucede aquando da apresentação de arguidos detidos para primeiro interrogatório judicial).

    Admitir como processualmente regular um requerimento de declarações para memória futura formulado pelo Ministério Público em termos de todo não concretizados quanto ao âmbito fáctico e temporal da diligência equivaleria a atribuir poderes investigatório fora de tempo ao juiz de instrução, como se este fosse o titular do inquérito, pois que caber-lhe-ia em concreto decidir ampla e abertamente os pontos específicos a questionar, quiçá traçando ou condicionando as linhas de investigação ulterior.

    Isto para dizer que atento o estado dos autos, não cabe ao juiz decidir da abrangência dos depoimentos a prestar, o que é particularmente evidente no caso da BB.

    Mais, o objectivo primordial das declarações no âmbito do crime em investigação prende-se com a pretensão da prevenção da vitimização secundária das ofendidas.

    Todavia, vislumbra-se que a sua audição propiciaria essa mesma vitimização, especialmente no que se refere à BB. A criança convive ou contacta regularmente com o progenitor (o que permanece por esclarecer, diga-se, por ser omisso dos autos os termos em que foi efectuada a regulação do exercício das suas responsabilidades parentais), recentemente constituído arguido e confrontado com os factos em investigação.

    Está anunciada nos autos a pendência de processo de promoção e protecção em favor da BB (fls. 37 e 38), estando por apurar que diligências ali foram encetadas passíveis de contender com os presentes autos, nomeadamente se a criança foi ouvida, verbalizando os episódios também aqui em apreço.

    Se, em face destes elementos e incertezas o Ministério Público entende ser...

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