Acórdão nº 115/21.1TRPRT.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 07 de Abril de 2022

Magistrado ResponsávelANTÓNIO GAMA
Data da Resolução07 de Abril de 2022
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Processo n.º 115/21.1TRPRT.S1 Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça: I 1.

No Tribunal da Relação ..., o juiz desembargador na veste de JI, proferiu a seguinte decisão (transcrição): «Pelo exposto, nos termos do art. 308º nº 1 “in fine” do Cód. Proc. Penal, não pronuncio o arguido, determinando em consequência o arquivamento dos autos».

  1. Inconformado com o despacho de não pronúncia recorre o Ministério Público apresentando as seguintes conclusões (transcrição): I. Na douta decisão recorrida, entende-se que os factos praticados pelo arguido não integram a prática de qualquer crime de difamação, uma vez que não se indiciam os elementos típicos objetivos desse ilícito penal.

    1. Em primeiro lugar, cumpre contextualizar os factos praticados bem como os seus intervenientes - o arguido e o ofendido são procuradores da República, pessoas de formação superior que à data dos factos exerciam há muito mais do que uma década funções na Magistratura do Ministério Público.

    2. Durante o inquérito não foi reportada, nem apurada, a existência de qualquer conflito anterior à prática dos factos, tendo o dissídio nascido devido à posição assumida pelo ofendido determinando o arquivamento do inquérito instaurado na sequência de participação apresentada pelo arguido.

    3. No despacho de arquivamento não consta qualquer referência reveladora de desprezo, ironia ou de um juízo de valor desprimoroso sobre a matéria participada ou quanto aos conhecimentos de quem a levou a apreciação. O ofendido, usando uma linguagem técnico-jurídica, limitou-se a manifestar o seu entendimento no sentido de os factos participados não integrarem crime.

    4. O corpus delicti consubstancia-se num longo trecho de um requerimento que o arguido dirigiu à superiora hierárquica do ofendido, solicitando, nos termos do disposto no art.º 278.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, a intervenção da mesma e a prossecução do inquérito.

    5. Em segundo lugar, analisando o modus operandi usado pelo arguido. No requerimento, depois de ter tecido duras críticas ao despacho de arquivamento e ao seu autor (cfr. designadamente fls. 25 a 28 da peça processual), o arguido abordou o que designou por uma questão prévia.

    6. Neste trecho do requerimento ocupa-se com o facto de na participação ter identificado a pessoa que pretendeu denunciar pelo nome que a mesma usa profissionalmente, dado ser advogada – AA e o ofendido, no despacho de arquivamento se ter referido à mesma pessoa referindo o seu nome completo – AA.

    7. Esta questão não tem qualquer pertinência, sendo certo que o arguido deveria conhecer os trâmites da autuação de um inquérito – com a identificação completa dos denunciados – e que do rosto do processo a denunciada surge identificada “AA”, como é aliás obrigação dos funcionários da secção de inquérito quando têm de autuar o expediente e preencher o rosto dos autos no programa Habilus.

    8. No entanto, lançando mão de innuendo, a pretexto da crítica a um procedimento que entende ser extra processual, faz insinuações colocando em causa a honestidade do redactor do despacho cujo conteúdo lhe foi desfavorável.

    9. Começando por afirmar que a questão gira em torno de um mistério (…) que não pode deixar de envolver e, até, de assombrar todo o processo de inquérito com o pretexto do conhecimento pelo ofendido da identidade completa da denunciada, o arguido tece várias considerações imputando ao ofendido o uso de processos que não credibilizam a Justiça, aproveitando o ensejo lançar uma série do que classifica como sendo perguntas: E não pode deixar de se perguntar: Será que o titular do inquérito já conhecia, pessoalmente, a senhora advogada participada? Será seu familiar? Amigo? Será seu conhecido? Será vizinho da senhora advogada? E, a ser assim, será que esse conhecimento pessoal teve qualquer influência no estranho e insólito arquivamento destes autos? Ou terá havido qualquer outro tipo de intervenção e de intervenientes? E de que forma? E com que extensão? Porque razão esses procedimentos que, necessariamente, tiveram lugar, não constam, de forma clara e transparente nos autos? E o que leva o titular do inquérito a omitir, nos autos de inquérito, os procedimentos utilizados para obter um elemento fundamental do inquérito, a identificação do sujeito participado? Pretenderá furtar-se a qualquer tipo de escrutínio? Ou existirá outra razão? E, a ser assim, qual será essa outra razão? E haverá outra razão que esteja por detrás da outra razão? Por outras palavras: o que se terá passado, às ocultas, - à socapa, por assim dizer- e que não consta dos autos? XI. Ao formular o que refere serem perguntas sobre os procedimentos que entende serem extra processuais que não contribuem para credibilizar a ação da justiça tornando-a transparente e adensam o mistério (…) que não pode deixar de envolver e, até, de assombrar todo o processo de inquérito, o arguido estabelece um sem número de hipóteses todas elas apontando no sentido de o ofendido estar a esconder uma relação com a denunciada que o levou a produzir o despacho de arquivamento.

    10. A confirmar o clima de suspeição já criado o arguido lança mão da expressão popular gato escondido com o rabo de fora e afirma taxativamente e que, nestes autos, não pode deixar de ser fonte de todas as suspeições, inquinando de forma irremediável a transparência de procedimentos aqui utilizados.

    11. Na parte final do trecho em análise o arguido associa o procedimento que imputa ao ofendido aquilo que de mais deplorável e degradante tem a nossa administração pública – os procedimentos ocultos, dissimulados, feitas à socapa e que, abrigados neste secretismo, permitem a realização dos mais variados e obscuros acordos.

    12. Embora interrompa estrategicamente as imputações que faz ao ofendido com a frase que neste caso não terão, certamente, acontecido – acreditamos nisso - mas que poderiam, efetivamente, ter ocorrido pois estavam criadas as condições para tal, continua em forma de crítica a um procedimento que entende ter ficado demonstrado que o Ministério Público, por maioria de razão, tem a obrigação de se manter ao abrigo de qualquer destas suspeições. E isso só será possível se houver um esforço sério em descrever com rigor, de forma transparente e límpida, todos os procedimentos de inquérito, abstendo-se de recorrer a procedimentos extra processuais tal como os que, necessariamente, aqui forma utilizados. E o desconforto decorrente desta suspeição, decorrente deste procedimento anómalo, não pode deixar de se evidenciar, sobretudo quendo o desfecho deste inquérito – o seu arquivamento - é tão bizarro e desconcertante conforme se irá demonstrar. Concluindo com a expressão de facto, “não vale tudo”.

    13. A coberto do direito à crítica, o arguido lança suspeições gratuitas e infundadas sobre os procedimentos do ofendido, sendo que do texto constam expressões que colocam em causa os deveres de isenção, objectividade, independência, respeito pela Lei e prossecução da Justiça a que o ofendido está obrigado, lançando também uma acusação sobre a honestidade deste como Magistrado do Ministério Público.

    14. Esta conclusão, surge reforçada no final do requerimento de intervenção hierárquica, onde o arguido afirma: Em conclusão Expostos que foram os factos, e com os elementos constantes dos autos, não parece, pois, que se possa considerar desde já a inexistência de um crime de burla na forma tentada – afigurando-se, pelo contrário, que o presente Despacho, com a decisão de arquivamento, desafiando flagrantemente o direito, está sim a esboçar a prática de um outro crime, bem mais grave – até do ponto de vista ético - e que se traduz na impunidade de um comportamento contrário à lei.

    15. Apesar de, na douta decisão recorrida se considerar que este considerando, mais uma vez não concretiza nem imputa nenhum delito, como pretende a acusação, por isso situa-se no esboço de uma imputação quase genérica, entendemos que a insinuação lançada sobre o ofendido de que este, enquanto Magistrado do Ministério Público cometeu um crime, sem concretizar qual o crime cometido, constitui por si mesma uma afirmação que preenche o tipo legal de crime de difamação XVIII. Contudo, no caso em apreço mostra-se evidente a que crimes o arguido se estava a referir pois ao longo do texto tinha lançado sobre o ofendido acusações de ter recorrido a processos extra processuais para obtenção de um elemento anódino e irrelevante e tinha também insinuado a existência de uma relação com a denunciada. Assim, ao afirmar que o despacho de esboça ele mesmo a prática de um crime, parece-nos evidente que o arguido pretendeu dizer que o ofendido ao determinar o arquivamento do inquérito estava a adoptar uma conduta que integra o tipo legal de crime de favorecimento pessoal (art.º 367.º do Código Penal) ou até mesmo o crime de prevaricação (art.º 369.º do mesmo diploma).

    16. Em terceiro lugar, atente-se à postura assumida nos autos pelo arguido - no interrogatório a que foi submetido limitou-se a afirmar que apenas pretendia criticar um procedimento que considerava pouco claro. A seguir, confrontado com a acusação proferida no inquérito, designadamente com a interpretação dada ao texto por si produzido, no requerimento de abertura de instrução, não refutou o sentido que foi dado ao seu texto, apenas tecendo considerações sobre a acusação e insistindo no que anteriormente tinha dito sobre liberdade de expressão e direito à crítica.

    17. Porque entendemos que o arguido ao usar as palavras constantes do seu escrito estava a insinuar que o ofendido tinha sido desonesto e criminoso, o que nos parece integrar o tipo legal de crime de difamação, afigura-se-nos fundamental para a devida compreensão e devido enquadramento jurídico-penal que o arguido explique o peso específico de cada palavra que escreveu.

    18. Só assim, em audiência de julgamento, caso ali o arguido pretenda falar, poderemos dissipar qualquer dúvida sobre os seus propósitos quando teceu as considerações que constam do requerimento dirigido à...

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