Acórdão nº 193/22 de Tribunal Constitucional (Port, 17 de Março de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Lino Rodrigues Ribeiro
Data da Resolução17 de Março de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 193/2022

Processo n.º 325/21

3.ª Secção

Relator: Concelheiro Lino Rodrigues Ribeiro

(Conselheira Joana Fernandes Costa)

Acordam na 3.ª secção do Tribunal Constitucional

I – Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Juízo Local Criminal da Amadora – Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., foi interposto recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional («LTC»), da sentença proferida por aquele Tribunal, em 25 de janeiro de 2021, que recusou a aplicação dos «artigos 43.º, n.º 1, c), d), e 6 do Decreto n.º 2-B/2020, na parte em que punem com pena agravada nos limites mínimo e máximo a desobediência às ordens legítimas das entidades competentes, quando praticadas em violação do disposto no respetivo decreto, por tais normas enfermarem de inconstitucionalidade orgânica e formal».

2. O Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional.

3. O recorrente apresentou alegações, que conclui nos seguintes termos:

1. Está em causa nos autos ajuizar da inconstitucionalidade orgânica e formal da norma contida nos preceitos enunciados e transcritos em III., sendo a questão jurídico-constitucional sobre a qual incide a douta decisão judicial impugnada resultante da ponderação de uma das diversas dimensões do quadro normativo que emergiu da necessidade de combater a pandemia de COVID-19 causada pelo novo Coronavírus, SARS-CoV2, que já foi designada como «Ordem jurídica da crise pandémica».

2. Apesar da dificuldade de apreensão dos diferentes tópicos plasmados na fundamentação da douta decisão recorrida, porque logramos, ainda assim, descortinar o essencial da questão jurídico-constitucional suscitada e, bem assim, porque já abordada e apreciada noutros processos, passaremos a reproduzir, por tal se nos afigurar pertinente, o conteúdo de alegações do Ministério Público anteriormente produzidas sobre a temática aqui convocada.

3. No cenário do combate à Pandemia COVID-19, e face ao seu agravamento, em termos de propagação e de sobrecarga do Serviço Nacional de Saúde, declarou o Senhor Presidente da República, por via do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, o estado de emergência com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública, pelo período de quinze dias.

4. Esta declaração do estado de emergência veio a ser renovada, por mais quinze dias, através da emissão do Decreto do Presidente da República n.º 17-A/2020, de 2 de abril.

5. À semelhança do que ocorrera com o primeiro destes decretos do Presidente da República (com a publicação do Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março) o Governo, por intermédio do seu Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de abril, procedeu à regulamentação da referida prorrogação do estado de emergência decretado pelo Presidente da República.

6. É, por conseguinte, neste último decreto que se encontram, fundamentalmente, sediadas as normas cuja aplicação foi recusada pelo douto tribunal a quo, a saber, as plasmadas nos n.ºs 1, alíneas c) e d) e 6, do artigo 43.º, e no art. 5.º do Decreto 2-B/2020, de 2 de abril, que prescrevem, conforme já vimos, para além do mais e na sua dimensão mais relevante, que “[a] desobediência e a resistência às ordens legítimas das entidades competentes, quando praticadas em violação do disposto no presente decreto, são sancionadas nos termos da lei penal e as respetivas penas são sempre agravadas em um terço, nos seus limites mínimo e máximo, nos termos do n.º 4 do artigo 6.º da Lei n.º 27/2006, de 3 de julho”.

7. Na verdade, as normas contestadas, fundamentalmente a inserta no n.º 6, do artigo 43.º, do Decreto 2-B/2020, de 2 de abril, operam a agravação em um terço, nos seus limites mínimo e máximo, na parte aqui relevante, o sancionamento da “desobediência (…) às ordens legítimas das entidades competentes, quando praticadas em violação do disposto no presente decreto”, tendo o Governo, consequentemente, criado ex novo, sem autorização da Assembleia da República, uma distinta moldura penal para o crime de desobediência quando praticado nos termos nela previstos.

8. Uma tal conclusão, que procuraremos fundamentar, leva-nos a concordar com o teor do decidido pela M.ma Juíza recorrida e a convergir, a final, com o entendimento por ela sustentado.

9. A matéria sobre a qual o Governo legislou no referido n.º 6, do artigo 43.º, do Decreto n.º 2-B/2020, de 02-04, é, inquestionavelmente, do domínio da definição e determinação de penas e dos respetivos pressupostos e, por isso mesmo e por força do previsto na alínea c), do n.º 1, do artigo 165.º, da Constituição da República Portuguesa, matéria da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República.

10. De acordo com o disposto no referido complexo normativo, «[é] da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo (…) [d]efinição dos crimes, penas, medidas de segurança e respetivos pressupostos, bem como processo criminal».

11. A Assembleia da República não autorizou, em qualquer momento relevante, o Governo a legislar sobre o agravamento da pena aplicável ao crime de desobediência, designadamente quando resultante da “desobediência (…) às ordens legítimas das entidades competentes, quando praticadas em violação do disposto no presente decreto”, ou seja, quando praticadas em violação de normas contidas no decreto de regulamentação da primeira prorrogação do estado de emergência decretado pelo Presidente da República.

12. Afigura-se, pois, ter o Governo legislado sobre matéria subtraída da sua esfera de competência constitucional, em violação do disposto no já mencionado artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição da República Portuguesa, o que consubstancia uma inconstitucionalidade orgânica, porque violada uma norma de competência.

13. Além do que se expôs, cumpre-nos apurar se, ainda assim, poderia o Governo ter legislado sobre a referida matéria sem ofender a Constituição, atento o contexto jurídico-constitucional conformado pelo Decreto do Presidente da República n.º 17-A/2020, de 2 de abril, que declarou o estado de emergência.

14. Sucede que, a Constituição da República Portuguesa é inequívoca ao prescrever no n.º 7 do seu artigo 19.º que «[a] declaração do estado de sítio ou do estado e emergência só pode alterar a normalidade constitucional nos termos previstos na Constituição e na lei, não podendo, nomeadamente afetar a aplicação das regras constitucionais relativas à competência e ao funcionamento dos órgãos de soberania (…)».

15. Tal norma impede a subversão ou modificação do conteúdo da esfera de competência constitucional dos órgãos de soberania, mesmo em momentos de reconhecida e imperiosa excecionalidade jurídico-constitucional, como o estado de emergência.

16. Acresce, ainda, que a própria Lei n.º 44/86, de 30 de setembro, que regula o regime do estado de sítio e do estado de emergência, numa formulação muito semelhante à redação da norma transcrita e reforçando o comando constitucional identificado, determina no seu artigo 3.º, n.º 2, que «[a] declaração do estado de sítio ou do estado e emergência só pode alterar a normalidade constitucional nos termos previstos na própria Constituição e na presente lei, não podendo, nomeadamente afetar a aplicação das regras constitucionais relativas à competência e ao funcionamento dos órgãos de soberania (…)», dela não constando, obviamente, qualquer disposição que contrarie esta asserção ou que autorize o Governo a legislar em matéria de reserva relativa de competência da Assembleia da República.

17. Para além disto, atendendo ao conteúdo da norma desaplicada ou, melhor dizendo, cuja aplicação foi recusada, devemos ainda concluir que a mesma tem caráter inovatório, uma vez que, apesar de estatuir que a agravação determinada ocorre «nos termos do n.º 4 do artigo 6.º da Lei n.º 27/2006, de 3 de julho» – a Lei de Bases da Proteção Civil –, o certo é que os pressupostos de que o legislador ordinário faz depender a agravação da moldura penal não se encontravam previstos, previamente, em qualquer outra norma aprovada pela Assembleia da República ou por ela autorizada.

18. Com efeito, determina a Lei de Bases da Proteção Civil no n.º 4 do seu artigo 6.º que “[a] desobediência e a resistência às ordens legítimas das entidades competentes, quando praticadas em situação de alerta, contingência ou calamidade, são sancionadas nos termos da lei penal e as respetivas penas são sempre agravadas em um terço, nos seus limites mínimo e máximo”, determinando o agravamento, para além do mais, da moldura penal do crime de desobediência apenas quando a prática dos factos que dele são pressuposto ocorram em situação de alerta, contingência ou calamidade, as três situações que, no quadro daquele diploma legal, se destinam a dar resposta a acidentes graves ou calamidades.

19. Ou seja, a previsão legal para a qual a norma contestada remete, enquanto aparente suporte da sua conformidade jurídico-constitucional, apenas define a moldura penal aplicável à desobediência praticada nas situações de alerta, contingência ou calamidade, sendo, porém, omissa no que respeita a factos idênticos cometidos em contexto de estado de emergência.

20. Consequentemente, não sendo aplicável às situações abrangidas pelo Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de abril, nomeadamente as que constituem pressuposto do regulado pelo n.º 6 do seu artigo 43.º, e não se limitando a reproduzir uma norma que reitere uma outra validamente aprovada pela Assembleia da República, só poderemos inferir que a norma naquele contida apresenta caráter inovador.

21. Sobre esta dimensão da possível compatibilidade constitucional de normas produzidas pelo Governo, por via da mera reprodução de normas preexistentes emanadas da Assembleia da...

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