Acórdão nº 34/22 de Tribunal Constitucional (Port, 18 de Janeiro de 2022

Data18 Janeiro 2022
Órgãohttp://vlex.com/desc1/2000_01,Tribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 34/2022

Processo n.º 950/2021

1.ª Secção

Relator: Conselheiro José António Teles Pereira

Acordam, em Conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – A Causa

1. A. (o ora recorrente) foi condenado, em primeira instância (processo n.º 12/19.0T9PTG, do Juízo Central Cível e Criminal de Portalegre), por acórdão de 04/12/2020, na pena de 4 anos de prisão efetiva, pela prática de um crime de violação, previsto e punido pelo artigo 164.º, n.º 1, do Código Penal (n.º 2 do mesmo artigo, à data da prática dos factos).

1.1. Inconformado com esta decisão condenatória, dela interpôs recurso o arguido para o Tribunal da Relação de Évora, invocando, designadamente, a inconstitucionalidade dos “[…] artigos 1.º, n.os 1 e 3, 2.º, n.º 2, 164.º, n.º 1, alínea a), todos do CP, no sentido de a norma incriminadora prevista no artigo 164.º, n.º 1, alínea a), do CP, na redação atual, abranger as situações que a vítima sofre e não pratica a cópula, coito anal ou oral (por violação) do princípio da legalidade e da tipicidade, nos temos do disposto nos artigos 2.º e 29.º, n.os 1, 3 e 4, da CRP”.

1.1.1. Por acórdão de 22/06/2021, o Tribunal da Relação de Évora decidiu conceder provimento parcial ao recurso, reduzindo a pena aplicada a três anos de prisão efetiva e mantendo, no mais, a decisão recorrida. Para tanto – e no que releva para o presente recurso – considerou que os factos provados consubstanciam a prática, pelo arguido, do crime de violação previsto no artigo 164.º do Código Penal (CP), seja na redação vigente à data da prática dos factos (introduzida pela Lei n.º 83/2015, de 5 de agosto), seja na redação vigente à data da condenação (introduzida pela Lei n.º 101/2019, de 6 de setembro).

1.1.2. O recorrente suscitou a nulidade desta última decisão, pretensão que não foi acolhida, por acórdão de 13/07/2021, do mesmo tribunal.

1.2. O arguido recorreu então do acórdão de 22/06/2021 para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – recurso que deu origem aos presentes autos – nos termos seguintes:

“[…]

I Fundamento do recurso

O presente recurso é impetrado do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora em 22 de junho de 2021 […].

II. Breve sinopse do processado

[…]

É consabido que o tipo legal de crime em causa sofreu avultadas alterações, ao longo dos anos, desde a redação originária do CP de 1982.

À data dos factos , vigorava a redação conferida pela Lei nº 83/2015, de 05-08, nos termos da qual:

‘Artigo 164.º

Violação

1 – Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa:

a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou

b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos; é punido com pena de prisão de três a dez anos.

2 – Quem, por meio não compreendido no número anterior, constranger outra pessoa:

a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou

b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos; é punido com pena de prisão de 1 a 6 anos.’

Fruto da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, adotada em Istambul, a 11 de maio de 2011, denominada Convenção de Istambul, aprovada e ratificada através da Resolução da Assembleia da República n.º 4/2013, e do teor do Relatório GREVIO, publicado em 21-01-2019, procedeu o legislador a nova alteração do tipo, desta feita através da Lei nº 101/2019, de 06-09, passando a ter a seguinte redação:

‘Artigo 164.º

Violação

1 – Quem constranger outra pessoa a:

a) Praticar consigo ou com outrem cópula, coito anal ou coito oral; ou

b) Praticar atos de introdução vaginal, anal ou oral de partes do corpo ou objetos; é punido com pena de prisão de um a seis anos.

2 – Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa:

a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou

b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos; é punido com pena de prisão de três a dez anos.

3 – Para efeitos do disposto no n.º 1, entende-se como constrangimento qualquer meio, não previsto no número anterior, empregue para a prática dos atos referidos nas respetivas alíneas a) e b) contra a vontade cognoscível da vítima.’

Das normas transcritas, conclui-se que o legislador deixou cair a modalidade típica objetiva passiva já que aboliu da norma incriminadora o verbo sofrer .

Dito de outra forma, o crime de violação por cópula própria – ou seja, com penetração –, na sua modalidade simples, apenas pune a prática de cópula, coito anal ou oral, o que significa que a vítima tem necessariamente de ter uma conduta ativa. Já não se incrimina, assim, a cópula sofrida pela vítima, em que esta não adota qualquer comportamento ativo no ato sexual não consentido. Não se diga que sendo a vítima constrangida, o vocábulo praticar consigo ou com outrem cópula abrange as situações em que assume uma postura passiva.

Destarte, o legislador continua a distinguir os atos sexuais praticados daqueles sofridos na modalidade qualificada – vide artigo 164.º, n.º 2, alínea a), do CP, na redação atual, pelo que forçoso será de concluir que o legislador de 2019 retirou do elemento típico objetivo a cópula, coito anal e oral sofridos pela vítima.

Assim, as modalidades de ação praticar e sofrer abarcam situações fácticas distintas.

Tal tem particular relevo considerando que se trata de um crime de execução vinculada. Ora, atendendo ao princípio da legalidade e da tipicidade, consagrado no artigo 1.º, n.os 1 e 3, do CP, respaldo infra legem do postulado no artigo 29.º, n.os 1, 3 e 4, da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP), associado ao princípio da segurança jurídica consagrado no artigo 2.º, da Lei Fundamental, ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou a omissão, recusando-se o recurso à interpretação analógica para definição das condutas típicas.

Consagram tais normativos o princípio nullum crimen, nulla poena sine lege, decorrência, de resto, do Estado de Direito Democrático.

Corolário de tal princípio, entre outros, emerge a proibição da retroatividade e o princípio da retroatividade in mitius, como deflui do disposto no artigo 29.º, n.º 4, da CRP.

[…]

A lacuna de punibilidade que a norma incriminadora hoje apresenta fere o sentido de Justiça que brota em todos nós.

Sem embargo, os princípios acima elencados, na sua vertente dissuasora do agente do crime em potência, manifestação de um Estado de Direito Democrático em que a tutela dos bens jurídicos fundamentais deve ser expressamente elencada, levam a que a questão deva ser suscitada.

Posto isto,

Dos factos dados como provados – com os quais o recorrente não se conforma, como adiante melhor explanará –, ressumbra que a ofendida […] não praticou, mas sim sofreu o ato sexual de cópula por parte do recorrente .

Leia-se o ponto 12 dos factos provados: De seguida, o arguido despiu as calças e as cuecas que trazia vestidas, e deitou-se sobre a ofendida, que se encontrava deitada no banco da frente do passageiro e, introduziu o pénis ereto na vagina da ofendida, com força, ao mesmo tempo que a ofendida lhe pedia para parar.

Do exposto, ressumbra que o Tribunal a quo deveria ter lançado mão do disposto no artigo 2.º, n.º 2, do CP, o que não fez, violando, desta forma, o disposto nos artigos 1.º, n.os 1 e 3, 2.º, n.º 2, 164.º, n.º 1, alínea a), todos do CP e nos artigos 2.º e 29.º, n.os 1, 3 e 4, ambos da CRP.

Por conseguinte, deverá o Acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que faça correta aplicação do disposto nos preceitos contidos nos artigos 1.º, n.os 1 e 3, 2.º, n.º 2, 164.º, n.º 1, alínea a), todos do CP e nos artigos 2.º e 29.º, n.os 1, 3 e 4, ambos da CRP.

A interpretação e aplicação do disposto normativos ínsitos nos artigos 1.º, n.os 1 e 3, 2.º, n.º 2, 164.º, n.º 1, alínea a), todos do CP, no sentido de a norma incriminadora prevista no 164.º, n.º 1, alínea a), do CP, na redação atual, abranger as situações que a vítima sofre e não pratica a cópula, coito anal ou oral é ilegal e inconstitucional porque violadora do princípio da legalidade e da tipicidade, nos temos do disposto nos artigos 2.º e 29.º, n.os 1, 3 e 4, ambos da CRP, normas estas outrossim violadas;

[…];

Não obstante,

C. O recorrente viu o seu recurso parcialmente proceder, quanto à medida concreta da pena aplicada, sendo que, no que diz respeito às inconstitucionalidades invocadas, consignou o Tribunal ora recorrido, o seguinte:

(…)

Atendendo às explanações retro e analisados os factos provados, dúvidas não restam em como o arguido praticou o crime pelo qual se mostra acusado, porquanto, contra a vontade da ofendida, constrangendo-a, teve com a mesma relação de cópula. Isto é, contrariamente ao afirmado pelo mesmo, manteve relações sexuais com a […], não consentidas, mas constrangidas e dolorosas.

Pois que, como é, assertivamente, referido no acórdão recorrido, “tendo em consideração o supra explanado, e a matéria de facto provada, nomeadamente a constante nos n.os 7 a 13, não existem dúvidas que o arguido A. praticou um crime de violação, p. e p. pelo art. 164.º, n.º 1, do Código Penal, na redação atual, n.º 2, à data da prática dos factos, sendo autor dos factos típicos traduzidos na prática de cópula,...

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