Acórdão nº 921/21 de Tribunal Constitucional (Port, 09 de Dezembro de 2021

Magistrado ResponsávelCons. Teles Pereira
Data da Resolução09 de Dezembro de 2021
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 921/2021

Processo n.º 984/2020

1.ª Secção

Relator: Conselheiro José António Teles Pereira

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – A Causa

1. Interpõe o presente recurso o Exm.º Magistrado do Ministério Público (doravante o recorrente), com base na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), confrontado que foi com a decisão de recusa de fls. 55/65, que adiante será transcrita no item 1.2.. São, pois, as incidências processuais conducentes a esse recurso que seguidamente relataremos.

1.1. A. foi acusado, em vista do seu julgamento em processo abreviado, no âmbito do processo n.º 23/20.3PJOER, do Departamento de Investigação e Ação Penal de Oeiras, pela prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea a), por referência ao disposto no artigo 3.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, do Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de abril, e aos Decretos do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, e 17-A/2020, de 2 de abril, e ao Despacho n.º 3103-A/2020, de 9 de março.

1.2. Realizou-se, no Juízo Local Criminal de Oeiras, a correspondente audiência de julgamento, culminando a mesma na prolação de sentença, datada de 25/09/2020 – trata-se da decisão objeto do presente recurso –, pela qual foi o arguido absolvido. Da respetiva fundamentação consta, designadamente, o seguinte:

“[…]

Factos provados

Com relevância e interesse para a decisão da causa resultaram provados os seguintes factos:

1. No dia 30 de março de 2020, Judite F.M. Catarino, Autoridade de Saúde da Unidade de Saúde Pública do ACES do Estuário do Tejo, em cumprimento das medidas decretadas pelo Estado de Emergência, determinou o isolamento profilático do arguido, pelo período 30 de março de 2020 a 13 de abril de 2020.

2. Tal decisão foi tomada após conhecimento de que o arguido havia estado em contacto com uma pessoa a quem foi diagnosticado COVID-19, sendo determinado o seu isolamento, por perigo de contágio e como medida de contenção do referido vírus.

3. Não obstante, estar ciente de que devia permanecer em isolamento na sua residência, sita na Praceta …., n.º .., …, em Carnaxide, até ao dia 13/04/2020, o arguido ausentou-se da mesma no dia 11 de abril de 2020, pelo menos, entre as 14h45 e as 16h30.

4. O arguido sabia que estava obrigado a permanecer no seu domicílio e que tal ordem tinha sido determinada por Autoridade de Saúde competente para o efeito, como medida preventiva face à pandemia causada pela COVID-19.

5. O arguido atuou de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei penal.

[…]

B. Fundamentação de direito

Ao arguido é imputada a prática como autor material de um crime de desobediência p. e p. pelo artigo 348.º n.º 1, alínea a), por referência ao disposto no artigo 3.º n.º 1, alínea b) e n.º 2, do Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de abril da Presidência do Conselho de Ministros, aos Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março e 17-A/2020, de 2 de abril e Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março da Presidência do Conselho de Ministro e do Despacho n.º 3103A/2020, de 9 de março.

O artigo 348.º n.º 1 al. a) dispõe que quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias se uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples.

Por sua vez, o artigo 3.º n.º 1, alínea b) e n.º 2, do Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de abril da Presidência do Conselho de Ministros, aos Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março e 17-A/2020, de 2 de abril e Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março da Presidência do Conselho de Ministro e do Despacho n.º 3103-A/2020, de 9 de março comina com o crime de desobediência, o não cumprimento da ordem de confinamento profilático emitida pela autoridade de saúde competente.

Efetivamente, estabelece o artigo 3.º n.º 1, alínea b) e n.º 2, do Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de abril, da Presidência do Conselho de Ministros, sob a epígrafe «Confinamento obrigatório» que,

«1 – Ficam em confinamento obrigatório, em estabelecimento de saúde, no respetivo domicílio ou noutro local definido pelas autoridades de saúde: […] b) Os cidadãos relativamente a quem a autoridade de saúde ou outros profissionais de saúde tenham determinado a vigilância ativa.

2 – A violação da obrigação de confinamento, nos casos previstos no número anterior, constitui crime de desobediência.»

Provou-se que o arguido, sabendo que se devia manter na sua residência no período compreendido entre 30 de março de 2020 e 14 de abril de 2020, em virtude de ter sido determinado o seu confinamento profilático em virtude de ter tido contacto com uma pessoa infetada com o vírus SARS-CoV2, ausentou-se da mesma no dia 11 de abril de 2020, entre as 14h45 e as 16h30.

Decorrendo ainda provado que tal decisão foi tomada após conhecimento de que o arguido havia estado em contacto com uma pessoa a quem foi diagnosticada COVID-19, sendo determinado o seu isolamento, por perigo de contágio e como medida de contenção do referido vírus e que por isso o arguido sabia que estava obrigado a permanecer no seu domicílio e que tal ordem tinha sido determinada por Autoridade de Saúde competente para o efeito, como medida preventiva face à pandemia que nos assola, dúvidas não restam que a conduta do arguido preencheu tanto o elemento objetivo, quer subjetivo da previsão do normativo em apreço.

Sucede que, a previsão de tal norma, já anteriormente constante do Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março, no diploma em apreço, um Decreto proveniente do Governo, suscita-nos dúvidas em termos de (in)constitucionalidade.

Portugal, em particular, foi atingido por uma situação de crise pandémica originada pelo vírus SARS-CoV2, agente etiológico da doença COVID-19. Situação essa que, à data da prática dos factos, em 11.04.2020, já se verificava.

Tal situação, conjugada com a declaração do Estado de Emergência, determinou uma mudança na vida dos cidadãos portugueses e, ainda, uma alteração de vários diplomas legislativos.

Por Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, autorizado pela Resolução da Assembleia da República n.º 15-A/2020, de 18 de março, e executado pelo Decreto Governamental n.º 2-A/2020, de 20 de março, foi estabelecido um período de 45 dias de estado de emergência, que vigorou de 19 de março a 2 de abril de 2020. Posteriormente, por via do Decreto Presidencial n.º 17A/2020, de 2 de abril, e da Resolução Parlamentar n.º 22-A/2020, de 2 de abril, executado pelo Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de abril, foi estabelecida uma primeira prorrogação, que vigorou de 3 a 17 de abril de 2020.

Na resolução de execução emitida pelo Governo nos termos do artigo 17.º do Regime do Estado de Sítio e do Estado de Emergência (doravante RESEE), como já supra se referiu, o Decreto nº 2-A/2020, de 20 de março e, posteriormente, o Decreto nº 2-B/2020 e o Decreto n.º 2-C/2020, estabeleceram as medidas de execução do estado de emergência, aplicável a todo o território nacional (artigo 2.º). Através do Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março, foi restringida, no mais, a liberdade de circulação, permitindo-se a circulação dos cidadãos que não se encontrassem numa situação especial (em concreto, de confinamento obrigatório sobre os quais incida um dever especial de proteção (arts. 3.º e 4.º do Decreto n.º 2-A/2020).

Por sua vez, no artigo 5.º, n.º 1, do Decreto n.º 2-B/2020, de 02 de abril, foi também restringida a liberdade de circulação, tendo a fiscalização do seu cumprimento sido acometida às forças e serviços de segurança e à polícia municipal.

Sucede que, os decretos presidenciais emanados durante o estado de emergência, nada referem quanto à criminalização de condutas, enquanto que, os decretos executivos que os regulamentaram previram expressamente, nos termos do artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, somente a punição por desobediência do dever de confinamento obrigatório artigo 3.º, n.º 2.

Quanto aos demais deveres comuns a todos os decretos executivos regulamentadores, como sejam o dever geral de recolhimento domiciliário, configuram a prática do crime de desobediência, mas só se precedido da cominação a que alude o artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal [cfr. artigo 32.º, n.º 1, alínea b), do Decreto n.º 2-A/2020, artigo 43.º, n.º 1, alínea d), do Decreto n.º 2B/2020 e artigo 46.º, n.º 1, alínea d), do Decreto n.º 2-C/2020].

Temos, pois, em causa, o crime de desobediência nas suas duas modalidades típicas das alíneas a) e b), do n.º 1, do artigo 348.º, do Código Penal, conjugado com o extenso normativo dos vários diplomas supramencionados.

Face ao exposto, algumas vozes dissonantes se pronunciaram e tomaram como tema a (in) constitucionalidade do conjunto de normas formado por aqueles decretos presidenciais e executivos, na medida em estes foram emanados ao abrigo da competência administrativa prevista no artigo 199.º, al. g), da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual ‘compete ao Conselho de Ministros deliberar sobre outros assuntos da competência do Governo que lhe sejam atribuídos por lei ou apresentados pelo Primeiro-Ministro ou qualquer Ministro’.

De facto, questiona-se se o Governo podia criar, de forma geral e abstrata, aquele crime em específico, sem uma lei de autorização por parte da Assembleia da República, isto é, se tal decreto estará ou não em violação com a reserva (relativa) de competência da Assembleia da República; e, ainda, se tal não violará o princípio da legalidade na vertente nulla poene sine lege [artigo 29.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e o artigo 1.º, n.º 1, do Código Penal...

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