Acórdão nº 922/21 de Tribunal Constitucional (Port, 09 de Dezembro de 2021

Magistrado ResponsávelCons. Teles Pereira
Data da Resolução09 de Dezembro de 2021
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 922/2021

Processo n.º 294/2021

1.ª Secção

Relator: Conselheiro José António Teles Pereira

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – A Causa

1. A. S.A. (a ora recorrente) foi condenada pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) no pagamento de uma coima no valor de €24.939,89, pela prática de uma contraordenação prevista e punida pelo artigo 17.º, n.º 1, alínea e), da Lei n.º 10/2000, de 21 de junho (regime jurídico da publicação ou difusão de sondagens e inquéritos de opinião), por referência ao artigo 7.º, n.º 2, do mesmo diploma.

1.1. Inconformada com tal decisão, a arguida impugnou-a junto do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, que, por sentença de 13/10/2020, a confirmou.

1.1.1. Desta decisão recorreu a arguida para o Tribunal da Relação de Lisboa, invocando, inter alia, que “[…] a interpretação diversa da supra exposta, no sentido de que pode ser aplicada à Recorrente, empresa jornalística, uma coima, sem que à mesma, enquanto entidade coletiva, seja evidenciada, para que se pronuncie ou impugne judicialmente, a concreta pessoa singular que, com culpa e, necessariamente, funções editoriais, lhe torna imputável o facto, é inconstitucional, por violar o disposto nos artigos 18.º, n.º 1, 32.º, n.º 10, e 38.º da Constituição da República Portuguesa (CRP). E isto quando não é menos certo que as empresas jornalísticas devem organizar-se de molde a que a atividade editorial seja exercida pelos órgãos de comunicação social com plena autonomia face ao seu proprietário, conforme decorre do disposto nos artigos 38.º, n.ºs 1, 2 alínea a) e 4 da CRP e, ainda, 20.º e 22.º da Lei de Imprensa, e 12.º do Estatuto do Jornalista” (sublinhado acrescentado).

1.1.2. Por acórdão de 23/02/2021, o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso. Dos fundamentos da decisão consta, designadamente, o seguinte:

“[…]

1.3.3. Da nulidade da decisão recorrida por omissão de identificação de qualquer pessoa singular que tenha atuado no exercício das suas funções, em nome ou por conta da Recorrente, em violação do disposto no artigo 7.º, n.º 2, do RGCO.

Entende a Recorrente que para concluir pela responsabilidade contraordenacional das pessoas coletivas, a decisão sancionatória e a sentença deveriam demonstrar quem, em concreto e no exercício das suas funções editoriais e por causa delas atuou em nome e no interesse da empresa jornalística, só assim o permitindo a imputação do ato contraordenacional à vontade da pessoa coletiva, sob pena de nulidade da decisão final e da sentença por referência ao disposto nos artigos 58.º, n.º 1, als. a) e b) do RGC0 e 379.º, n.º 1, al. a), do CPP.

Refere com maior detalhe na conclusão IX, sobre a formulação do dolo na douta sentença, “a conduta da arguida foi deliberada, tendo esta representado os deveres que sobre si impedem, conformando-se com o resultado”, que o enunciado não tem suporte em qualquer dado concreto apurado no processo ou cognoscível por uma pessoa coletiva, não podendo a empresa jornalística imiscuir-se nos conteúdos das publicações de que é proprietária.

O Ministério Público e a ERC pugnam pela improcedência do recurso neste ponto.

Vejamos.

Porque a censura nesta parte realizada à sentença se dirige, em parte, à matéria ou fundamentação de facto na sentença proferida pela primeira instância, importa aqui recordar que, nos termos do artigo 75.º do RGCO, este Tribunal da Relação não pode reapreciar a matéria de facto julgada pelo Tribunal recorrido, sem prejuízo de poder tomar conhecimento das nulidades previstas no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, que, como é sabido, estabelece que «mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: al. a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; al. b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e al. c) erro notório na apreciação da prova».

E que como decorre expressamente da letra da lei qualquer um dos elencados vícios tem de dimanar da complexidade global da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso, portanto, a quaisquer elementos que à dita decisão sejam externos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução, ou até mesmo o julgamento, salientando-se também que as regras da experiência apelam para a ideia de “descontinuidades imediatamente apreensíveis nas correlações internas entre factos, que se manifestem no plano da lógica, ou da direta e patente insustentabilidade ou arbitrariedade; descontinuidade ou incongruências ostensivas ou evidentes que um homem médio, com a sua experiência de vida e das coisas, facilmente apreenderia e delas se daria conta”

Ora, no caso dos autos, da leitura da decisão sob censura, ou da conjugação da respetiva fundamentação com as regras da experiência comum, não se extrai qualquer dos aludidos vícios, pelo que é perante os factos provados que terá de ser analisada a questão.

A Recorrente foi condenada pela prática da contraordenação prevista e punida nos artigos 7.º, n.º 2, e 17º, n.º 1, al. e), da Lei n.º 10/2000, de 21.06, cujos elementos objetivos e subjetivos se mostram adequadamente descritos na decisão recorrida, pelo que aqui nos dispensamos de os voltar a mencionar.

A pretensão recursiva dirige-se à imputabilidade dos factos à própria Recorrente sem demonstração de quem, em concreto e no exercício de funções ao seu serviço, atuou.

Vejamos.

É certo que no artigo 7.º, n.º 1, do RGCO é previsto o princípio da responsabilidade contraordenacional das pessoas coletivas, abandonando-se o princípio “societas delinquere non potest”, determinando o n.º 2 do mesmo preceito os termos dessa responsabilidade, nos seguintes moldes: “as pessoas coletivas ou equiparadas serão responsáveis pelas contraordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções”, parecendo consagrar o “modelo de imputação orgânica”.

Temos interpretado o preceito em consonância com o Parecer da Procuradoria-Geral da República n.º 11/2013, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 178, de 16.09.2013, e considerado que o próprio n.º 2 do artigo 7.º do RGCO deve ser interpretado no sentido de «passando de um modelo de imputação orgânica para um modelo de imputação funcional, em que o sentido da expressão “órgão no exercício das funções” usado no artigo 7.º do RGCO é entendido como incluindo os “trabalhadores ao serviço da pessoa coletiva ou equiparada, desde que atuem no exercício das suas funções ou por causa delas, exceto quando atuem contra ordens expressas ou em seu interesse exclusivo”».

No direito contraordenacional as ponderações permissivas de uma maior responsabilização das pessoas coletivas têm que se considerar justificadas.

Assim, o artigo 7.º, n.º 2, do RGCO tem que ser lido numa aceção de alargamento dos conceitos de “órgãos” e de “no exercício de funções”, para abranger quem quer que atue em nome e em proveito da pessoa coletiva, incluindo, portanto, os membros dos órgãos diretivos, trabalhadores e quem quer que tenha um dever de vigilância e fiscalização – a responsabilidade das pessoas coletivas só é excluída quando o agente atue contra ordens ou instruções expressas daquela e a invalidade e a ineficácia jurídicas dos atos em que se funde a relação entre o agente individual e o ente coletivo não obstam a que seja aplicado o amplo regime sancionatório.

No caso, porém, perante a interpretação dos preceitos referidos da Lei das Sondagens – designadamente dos artigos 7.º e 17.º – entendeu-se, e bem, que essa interpretação não é sequer necessária, porquanto, nessa sede, é expressivamente adotado o modelo de imputação de contraordenação dirigida, primeiramente, à pessoa coletiva, não se contemplando qualquer exigência de imputação primária a pessoa singular ou, em se fazendo depender a responsabilidade daquela de qualquer atuação individual.

Acolheu-se um critério de imputação amplo, de modo a abranger os factos praticados no exercício de funções ou em nome e no interesse da pessoa coletiva, pelos seus órgãos sociais, mandatários, representantes, trabalhadores.

E se este é o quadro legal não tinha o Tribunal (nem a ERC) de indagar quem, em concreto, agiu ou omitiu e se não tinha de indagar pois que bastava a afirmação de que:

«(…)

2. A Arguida é proprietária da publicação periódica semanal Expresso;

3. O jornal Expresso publicou, na sua edição impressa (páginas 20 e 21 do seu suplemento de economia), do dia 1 de novembro de 2014, resultados de uma sondagem de opinião intitulada «O que as empresas querem»; (…)

8. a arguida atua no mercado da comunicação social há vários anos, publicando sondagens de opinião com regularidade, conhecendo, por via da sua atividade, as normas constantes da Lei das Sondagens;

9. À conduta da arguida foi deliberada, tendo esta representado os deveres que sobre si impendem, conformando-se com o resultado;

10. A arguida agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que deveria ter publicado o estudo «o que as empresas querem», acompanhado dos elementos da ficha técnica devidos; (…)»

para imputar a comissão da contraordenação.

No caso, pois, a conduta vem imputada à Recorrente enquanto proprietária do jornal Expresso, que publicou a referida sondagem de opinião, sendo que apenas por absurdo se pode admitir que tal publicação possa deixar de ter sido promovida por colaborador do “mesmo, agindo no exercício de funções e no interesse da Recorrente”; como bem refere o Ministério Público, “a publicação teve o de ser decidida e feita por administrador/funcionário/colaborador do mesmo,...

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